Interdisciplinaridade

A CONSTRUÇÃO DE UMA ALFABETIZAÇÃO INTERDISCIPLINAR – ENSAIO

Interdisciplinaridade é uma exigência natural e interna das ciências, no sentido de uma melhor compreensão da realidade que elas nos fazem conhecer. Impõe-se tanto à formação do homem como às necessidades de ação, principalmente do educador.

Essa compreensão da realidade numa busca de interdisciplinaridade nas questões da alfabetização pressupõe um comprometimento com a totalidade, isto é, quando se pensa na construção de um projeto interdisciplinar para a alfabetização, é necessário pensar-se na possibilidade de traçar uma linha de demarcação entre as pretensões ideológicas e a realidade de que é sintoma.

Ao dizermos pretensões ideológicas, estamos nos referindo a certos “modismos” que de repente invadem nossas propostas educacionais, a certos paradigmas às vezes traçados para a alfabetização que acabam por dar a impressão ao professor de que a forma pela qual ele alfabetiza é retrógrada, errônea e precisa ser totalmente reformulada, na contingência de que não o sendo causará danos irreversíveis ao futuro aprendizado da criança. Nesse sentido, esse professor-alfabetizador, a cada modelo que chega, vê traçado seu “perfil de incompetência”, tornar-se um “navegador sem bússola”, em que o seu cotidiano, às vezes bem-sucedido, deixa de ter sentido.

Iludido por um novo paradigma sente-se muitas vezes não lhe é explicado nem o como, nem o para quê. Atônito, perplexo ante a perspectiva de mudança, nosso navegador torna-se um “náufrago sem rumo”, podendo, muitas vezes, afogar-se, e com ele, todo o barco que conduz (seus alunos e sua sala de aula).

Análise do trabalho de alfabetização que já vem sendo executado é, pois, o primeiro pressuposto para pensar-se num projeto interdisciplinar para a alfabetização, pois o mesmo precisa alicerçar-se no envolvimento, no engajamento do professor, e não existe envolvimento de imediato; é um processo demorado, construído a partir de sucessivos questionamentos à prática efetiva.

O projeto interdisciplinar parte da dúvida, da pergunta, das indagações, do diálogo, da troca, da reciprocidade. Iniciando-se por questionar quem é esse professor-alfabetizador, surge à oportunidade de questionar-se a qualidade de seu trabalho, como poderia fazer para melhorá-lo, que recursos, técnicas ou teorias têm sido desenvolvidos para que a alfabetização possa realizar-se mais plenamente.

O professor-alfabetizador, muitas vezes, desconhece o fato de existirem estudos que explicam o porquê de algumas crianças aprenderem mais lentamente do que outras, de medidas a serem tomadas com essas crianças “denominadas lentas”, ou ainda, de como prosseguir com os que caminham mais rapidamente.

Outra questão diretamente ligada às relações entre interdisciplinaridade e alfabetização é a questão da formação do professor-alfabetizador.

O professor-alfabetizador foi, em sua maioria, alfabetizado numa prática positivista, em que um método era sugerido, em geral, sintético, analítico, silábico ou global, com um instrumento único para todas as classes, uma cartilha, em que os passos da mesma eram rigorosamente seguidos.

Essa marca em seu processo de alfabetização faz parte constitutiva de sua memória, e não pode ser apagada facilmente tal como alguns teóricos da alfabetização acreditam, principalmente quando ela foi reforçada no Curso Normal, ou em outros cursos em que foi tratada a questão da alfabetização segundo as técnicas enunciadas.

Num projeto interdisciplinar, o resgate desse momento em que o professor foi alfabetizado torna-se fundamental para seu trabalho com os alunos.

Um espaço para ele dizer as marcas advindas do mesmo possibilitará uma reconstrução histórica de seu itinerário na apreensão da leitura e da escrita, e revelará inclusive as causas de ele ser hoje um bom ou mau leitor, ou mau escritor (no sentido de verificar sua facilidade ou dificuldade) no domínio da língua escrita ou falada.

Os atuais estudos sobre a linguagem tanto do ponto de vista psicológico, lingüístico ou sociológico contribuíram fundamentalmente para a compreensão do significado da alfabetização e de como ela se processa.

A ideologia da deficiência cultural foi superada pelos teóricos, principalmente pelos estudiosos da sociolingüística que passaram a considerar as então chamadas deficiências como diferenças. Nesse sentido, um avanço na compreensão do fracasso escolar, já que a criança vive, e que a escola em vez de tentar apagar essa marca de origem deve procurar fazer bom uso dela – isso não significando que aprender a norma culta também não seja importante, mas que as duas formas de linguagem são igualmente representativas, se quisermos desenvolver o gosto pela leitura ( dos textos e do mundo).

Esse avanço deveu-se sobretudo ao contato com estudos na antropologia, que demonstraram que a questão da língua se liga, antes de mais nada, ao lugar e ao grupo étnico e social a que o indivíduo pertence e que as diferenças lingüísticas são diferenças, sobretudo, decorrentes dele. Assim sendo, podemos por exemplo encontrar crianças retratando o seu universo, a sua realidade, de uma forma mais concreta ou abstrata, dependendo a mesma de suas vivências. As crianças provenientes de um meio cultural letrado possuem um nível de abstração maior, o que não significa que sejam mais criativas, originais ou com raciocínio mais bem desenvolvido.

O acesso do educador ao conhecimento teoricamente produzido permite que ele passe a ter um conhecimento diferenciado da realidade educacional, que é múltipla em sua origem, portanto, interdisciplinar. Não existem fórmulas mágicas para alfabetizar melhor. Perguntar, pesquisar e aprender com as diferentes ciências é tarefa que se impõe ao professor-alfabetizador. Apreender diferentes instrumentais fará parte de seu cotidiano. A mágica estará no adequar o instrumento correto ao momento certo.

Tratando ainda das relações entre interdisciplinaridade e alfabetização, precisamos discutir a questão do papel da instituição num processo interdisciplinar. Numa mesma instituição temos professores com diferentes práticas. Se a instituição propicia espaço, tempo e incentivo ao diálogo, é possível ao professor aprender com seus colegas. Muitas vezes, a solução de um problema, que para ele é difícil ou até mesmo insolúvel, torna-se simples, quando se estabelece a troca com o outro.

Em nossas instituições escolares, infelizmente, encontramos muros, paredes intransponíveis – as das salas de aula. Ninguém, a não ser o professor e seus alunos, acaba por saber o que lá ocorre, pois a coordenação pedagógica na maior parte das vezes chega somente até o limite das mesmas.

Em nome do respeito à individualidade do trabalho do professor, muitas vezes o tornamos “prisioneiro de sua solidão”. A questão interdisciplinar não se resolve na invasão da sala de aula, ou no policiamento do trabalho do professor, pelo contrário, isso iria contra toda a proposta de abertura e de reciprocidade a que a questão da interdisciplinaridade estaria vinculada.

O pressuposto básico para o desenvolvimento da interdisciplinaridade é a comunicação, e a comunicação envolve sobretudo participação. A participação individual (do professor) só será garantida na medida em que a instituição (escola) compreender que o espaço para a “troca” é fundamental.

Como último ponto para reflexão, gostaríamos de lembrar que a alfabetização não termina com o domínio dos rudimentos da leitura e da escrita. É algo que acompanha o indivíduo por toda á vida. Inicia-se num primeiro olhar para as coisas do mundo, pela primeira pergunta realizada. O ver mais e melhor e o duvidar para poder questionar precisam acompanhar sempre esse adulto que por circunstâncias especiais tornou-se alfabetizador.

DICIONÁRIO:

Rudimentos: base

Paradigma: modelo

Atônito: espantado, admirado.


Publicado por: Renata Gonçalves

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