Educação Física e Capoeira: Cultura Popular e Indústria Cultural no Jogo de Roda

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1. Resumo

Esta pesquisa pretende contribuir de forma preliminar e modesta para a afirmação dos fundamentos pedagógicos africanos presentes na Capoeira Angola como justificativa à sua inserção nas aulas de Educação Física escolar na condição de componente da cultura corporal de movimento. Procura fornecer o aporte necessário ao entendimento dos interesses hegemônicos que se aglutinaram na modernidade - e ainda continuam se aglutinando na pós-modernidade - em torno das questões culturais.

Este trabalho estudou bibliograficamente a Capoeira como meio de intervenção pedagógica nas aulas de Educação Física, em uma perspectiva histórica, cultural e dialética, tendo a preocupação de interrogar o passado à busca do respeito ao ancestral, aos "antigos mestres" angoleiros, tidos como guardiões da sabedoria comunitária. Desta perspectiva emana o respeito devido ao outro, inspirando um projeto pedagógico que, para além da proclamada “sociedade do conhecimento” visualiza a escola como lócus privilegiado da educação.

Procurei me concentrar na pesquisa do itinerário histórico da capoeiragem no período da transição entre os séculos XIX e XX até os dias atuais, interrogando as apropriações da Capoeira pela indústria cultural, pelo eugenismo/militarismo - do nacionalismo preconizado na Era Vargas -, pelo processo de esportivização da cultura corporal de movimento e, finalmente, pela globalização. Pude constatar que a Capoeira assimilou os discursos e métodos gerados no interior da Educação Física. Ao longo do percurso histórico da capoeiragem, envolto nos diálogos entre o mundo da cultura popular e a sua transgressão pela lógica do capital, se impõe o momento específico da dicotomização da Capoeira em Capoeira Angola e Capoeira Regional.

A Capoeira Regional, obediente aos apelos dos poderes sociais hegemônicos, incorpora os proclames do mercado ressignificando-se em esporte nacional. Sob os olhares atentos de uma perspectiva crítica e emancipatória para a Educação Física, a inserção da capoeiragem na escola, deve refutar os proclames sedutores e falaciosos da indústria cultural em processo de mundialização. Neste sentido, a Capoeira Angola, fiel à tradição de um passado de lutas por libertação e contra a segregação não só racial, mas, fundamentalmente econômica, comparece como possibilidade inequívoca de espaço de criticidade e superação das agruras sociais e humanas. A Capoeira Angola, fiel à tradição da busca por libertação e contra a segregação não só racial, mas, fundamentalmente econômica, comparece como possibilidade inequívoca de espaço de criticidade e superação das agruras sociais e humanas. Não existe angoleiro sem afetividade, sem toque, sem contato corporal, sem mandinga. Do toque entre os corpos sobrevém o outro, através do contato, da mandinga, da ginga, do abraço, do aperto de mão.

Crianças não se alimentam de medalhas, mas de carinho, de contato, de respeito, de justiça social.

Palavras-chave: Capoeira Angola, Mercadoria, Educação Física e Libertação.

INTRODUÇÃO

A mão escondida do mercado nunca trabalhará sem um pulso escondido — McDonalds não pode crescer sem McDonnell Douglas, o construtor do F-15. E o punho invisível que mantém o mundo livre da tecnologia da Silicon Valley, é o exército dos Estados Unidos, a Força Aérea, a Marinha e o Corpo de Fuzileiros Navais.

(Thomas L. Friedman, "A Manifesto for the Fast World", Revista The New York Times, 28 de março de 1999— citado em Kroker e Kroker, 1999)

Luiza, minha filha de quatro anos de idade, acostumou-se a me perguntar: “Papai, o que você trouxe prá mim hoje?” Sempre que a buscava na escola, ao final da tarde, ouvia sua pergunta rotineira. Um dia fui surpreendido: “Papai, você tem dinheiro?” “Prá que dinheiro?”, perguntei. “Prá comprar uma coisa prá mim”, respondeu a Luiza. Esta era uma resposta já reeditada. A seqüência é que me deixou perplexo. Continuei a perguntar: “E que coisa você quer que eu compre?” Ao que ela respondeu: “Humm, deixa eu ver...” A Luiza não queria, não precisava de nada em particular. Mas queria ter, precisava adquirir alguma coisa, qualquer coisa que fosse. Uma criança de quatro anos já presa e enclausurada dentro da armadilha do consumismo.

Como cenas tragicômicas de um fantástico teatro grego emerso dos tempos antigos, os “desejos” consumistas de Luiza são emblemáticos da paradoxalidade presente na aventura de existir na aurora da globalização. Uma existência reluzente, mas frustrante. Que promete sem jamais cumprir o que prometeu, tornando refém do “querer ter”, desde a mais tenra idade, o ser humano urbanizado/industrializado que, no rumo desses fatos, se perde de si mesmo e revoga de sua existência a perspectiva do “querer ser”. Não por acaso, imagens televisivas, jogos eletrônicos, computadores e internet compõem o cotidiano de crianças, adolescentes e, não raro, adultos infantilizados que, abarcados cotidianamente pelos valores éticos e estéticos da sociedade urbana/industrial, tornam-se escravos felizes de um sistema de dominação que aporta, para além de suas consciências alienadas e reificadas, na mercantilização da cultura.

O ser humano pós-moderno se encontra mergulhado num mundo que proclama a si mesmo como redentor da humanidade pelo espraiamento da comunicação (cultura). Contudo, para além do véu das aparências, não abdica da exploração econômica, da injustiça e da desigualdade. Sob a égide do capital, um contínuo e assustador surgimento de conceitos inéditos destitui os valores tradicionais em nome de um questionável relativismo onde as éticas, os fatos e a própria realidade parecem estar num verdadeiro corredor da morte. Na esteira destes procedimentos o indivíduo pós-moderno tem se tornado cada vez mais exigente consigo mesmo e com o outro. Está adaptado a um imenso e sufocante mundo aligeirado, em contínuo estado de pressão e urgência, envolto em sensações vazias, em estados depressivos e de irritabilidade. Em uma busca unilateral de si mesmo o ser humano contemporâneo se depara esquizofrenicamente com a revogação de sua identidade e com o seu próprio esgotamento existencial. 

Saudoso dos valores perdidos, o homem urbanizado busca pelo contato com a natureza; pelo não-tumulto do espaço não-industrializado/não-urbano; pela apreciação ética e estética da paisagem; pelo retorno ao silêncio à paz e à temporalidade não aligeirada; busca pelo retorno a si mesmo e encontra sua cultura ancestral. Neste trabalho interrogo bibliograficamente as possibilidades de recusa aos apelos do mercado e convido o leitor a um olhar reflexivo e esperançoso rumo à escola. No escopo destas questões, comparecem as possibilidades da cultura popular articular conhecimentos e sabedorias presentes na ancestralidade, na formação da cultura, na pedagogia e na ritualidade cultural afro-brasileira. Para tal tarefa, escolhi a Capoeira Angola, manifestação da cultura afro-brasileira das mais significativas, como campo privilegiado de estudo, na tentativa de buscar os sentidos e significados históricos da formação cultural do povo afro-descendente em nosso país e oportunizá-los ao trato pedagógico nas aulas de Educação Física escolar, numa perspectiva de subsidiar o educando com os meios e elementos necessários à sua emancipação social e humana.

Esta pesquisa bibliográfica pretende contribuir de forma preliminar e modesta para uma discussão dos fundamentos pedagógicos africanos presentes na Capoeira Angola como possibilidade de sua inserção nas aulas de Educação Física escolar na condição de componente da cultura corporal de movimento. No itinerário desta proposição, procura investigar os diálogos mantidos entre a cultura popular e as formas de transgressão de seus saberes através da indústria cultural e suas repercussões na vida escolar. Para a realização de tal tarefa, traz à mesa de reflexões o percurso dicotômico dos mundos heterogêneos da capoeiragem e as perspectivas de sua inserção na escola através da Educação Física.

A escolha da construção de uma pesquisa que abarca temas complexos e densos como multiculturalismo, indústria cultural, pós-modernidade, racismo, globalização, militarismo, esportivização, cultura corporal de movimento, capoeiragem, educação escolar e Educação Física, como material didático de intervenção na escola, procurou potencializar o ideal político do PDE (Programa de Desenvolvimento Educacional) no que se refere à forma inusitada de capacitação continuada das professoras e professores da rede pública estadual de ensino do estado do Paraná. Aproveitar radicalmente a chance de estudar significou, pra mim, a obrigação inexoravelmente prazerosa de devolver à SEED (Secretaria de Estado da Educação do Estado do Paraná), à escola, à Educação Física e ao aluno uma produção à altura da expectativa e confiança depositadas no educador, historicamente vitimado pela carência absoluta de oportunidades desta envergadura.

Axé ao PDE!

Iê, Capoeira. Vamos à luta!

2. CAPÍTULO 1

2.1. Identidade cultural e as fronteiras do pertencimento no mundo da globalização

Tratarei, neste capítulo, de uma questão que vem ganhando vulto nas reflexões produzidas pelo mundo acadêmico: o problema da relação entre cultura e identidade. O mundo contemporâneo, marcado vigorosamente pela globalização, em grande parte devido ao vertiginoso desenvolvimento das tecnologias da comunicação, vem abalando todas as sólidas convicções quanto à identidade cultural. Na medida em que pretendo desenvolver, através deste trabalho, um debate cultural que privilegia reflexões sobre a capoeira angola como um caminho viável para a educação física brasileira, numa perspectiva emancipatória, penso ser necessário discutir o mal-estar estabelecido recentemente entre identidade cultural e desenvolvimento.

 Ao escrever “A Era dos Extremos”, Eric Hobsbawm nos descreve os excessos da conduta humana que se colocaram à mostra no século XX.  À frente das diversas faces daquilo que o autor chamou de "extremos", está o absurdo abismo mundial entre riqueza e miséria, avanços tecnológicos e barbárie. O século que produziu uma opulência tecnológica, econômica e material sem precedentes também a confinou em pequenos espaços do globo, e mesmo ali em poucas mãos. Nunca houve tantos com tão pouco e tão poucos com tanto. Se houve relativa facilidade em batizar o século XVIII como o "Século das Luzes" e o século XIX como o "Século da Razão", o mesmo não será verdadeiro com relação ao século XX. Afinal, foi o século do automóvel, do avião, do telefone, da televisão, da viagem à lua, da engenharia genética, da internet. Mas foi também o século de duas guerras mundiais, das fórmulas de destruição em massa, do holocausto, da bomba atômica e da completa intolerância com o diferente.

A invenção dos tantos meios capazes de aproximar a humanidade não conseguiu aproximar os seres humanos; eles nunca estiveram tão distantes uns dos outros.  Mais do que nunca vale lembrar McLuhan: "Os homens criam as ferramentas e as ferramentas recriam os homens." (JORNAL DE DEBATES, 2007). Ou, metaforizando as palavras de Marx e Engels, “Os produtos de suas cabeças acabaram por se impor às suas próprias cabeças. Eles, os criadores, renderam-se às suas próprias criações.” (MARX; ENGELS, 1991, p. 17).

Emergindo do século XX, o mundo desponta para o século XXI como um lugar caótico, violento, paradoxal e imprevisível. É como se a humanidade acordasse do pesadelo nuclear para encontrar seus piores medos realizados na forma mundializada da fome e da miséria, mesmo com a indústria produzindo muito mais do que a população humana é capaz de consumir. Hobsbawm aproxima-se de Schopenhauer ao afirmar que o homem não tem do que se orgulhar: para a maior parte da humanidade, o mundo é um pecado, a vida é trabalhar e a morte é a redenção. (HOBSBAWN, 1995). Ironia a mais: nunca fomos tantos, vivemos tanto e em tantos lugares do planeta produzindo as tantas riquezas a mais que obviamente serão usurpadas de nossas mãos. E é exatamente neste ponto que o debate em torno dos diálogos culturais torna-se extremamente precioso. Para além de uma pieguice fácil e confortável, o que há de nos salvar de nós mesmos, apesar de toda bestialidade, intolerância e destruição, é a incrível capacidade humana de ainda acreditar. A humanidade é, de fato, uma grávida de possibilidades.

Estou ciente das lacunas deixadas neste trabalho pela ausência de alguns autores e algumas reflexões que muito contribuíram para o debate em torno da construção do conceito de cultura. Esclareço, todavia, que realizarei, neste momento, uma discussão de caráter introdutório. Seria interessante, por exemplo, o estudo de Antonio Gramsci, que via na cultura popular um campo potencialmente rico para a luta social. Entretanto, diante da impossibilidade de esgotar as discussões a respeito, espero poder contribuir para um maior esclarecimento sobre o tema. A partir de uma análise das aproximações entre escola, cultura e identidade, acredito na relevância de se investigar a possibilidade da prática do jogo de capoeira angola, em termos de seus rituais, de suas características identidárias e das possíveis contribuições para uma educação física que se coloque numa perspectiva emancipatória.

Na medida em que as culturas nacionais constituem uma das principais fontes daquilo que se convencionou definir como identidade cultural, parece pertinente começar por uma busca de definição para o tão amplo e complexo conceito de cultura, uma vez que este conceito é de fundamental importância à compreensão das questões culturais e identidárias submergidas das páginas do passado e ressignificadas na pós-modernidade. De fato, o debate sobre cultura já se fazia presente nas palavras de Confúcio, o pensador chinês, quatro séculos antes de Cristo: “a natureza dos homens é a mesma, são seus hábitos que os mantém separados”. (CONFÚCIO, Apud LARAIA, 1986, p. 10).

  Especificamente no que se refere à conceituação de cultura, é preciso reconhecer que este é um termo esquivo, dado a diversidade de suas definições e, portanto, repleto de ambigüidades. Nesse sentido, procurarei circunscrever essa expressão de modo a não deixá-la demasiadamente ampla e imprecisa. Se tomasse como definição o que dizem os dicionários, correria o risco de não avançar muito. Isso porque tanto no Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa como no Dicionário Eletrônico Houaiss de Língua Portuguesa, encontrei, primeiramente, a idéia de cultura ligada ao cultivo agrícola. Somente nas acepções posteriores a idéia de "cultura" se associou, embora de forma vaga e imprecisa, a outras esferas da produção humana. Provavelmente, o antropólogo evolucionista Edward Burnett Tylor, tenha sido o primeiro a conceituar cientificamente a cultura. Em seu trabalho Cultura primitiva, de 1871, baseado nas teorias evolucionistas de Charles Darwin, ele afirmou que a cultura é um complexo total de conhecimentos, crenças, artes, moral, leis, costumes e quaisquer outros aptidões e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade (TYLOR, 1988). Peter Burke nos fala de uma ampliação do conceito em tempos mais ou menos recentes. Segundo o historiador, até o século XIX

O termo cultura tendia a referir-se à arte, literatura e música (...) hoje, contudo, seguindo o exemplo dos antropólogos, os historiadores e outros usam o termo "cultura" muito mais amplamente, para referir-se a quase tudo que pode ser apreendido em uma dada sociedade, como comer, beber, andar, falar, silenciar e assim por diante (BURKE,1989, p. 25).

Em sua obra “Conformismo e Resistência: aspectos da cultura popular no Brasil”, Marilena Chauí inicia buscando pela origem etimológica da palavra. De acordo com a autora, o termo “cultura” tem origem no latim colere, querendo significar o ato agrícola de “cultivar”, isto é, fazer na terra o necessário para que ela possa produzir. Logo, invocando a fonte de herança, tem-se cultura como tudo aquilo que se pode produzir, inequivocamente através das relações materiais travadas, historicamente, pelos homens em sociedade (CHAUÍ, 1986).

 É possível dizer que cultura é toda produção humana que pode ser partilhada por esses mesmos indivíduos dentro de seu grupo de pertencimento, o que pressupõe a estes indivíduos uma identidade. Assim, a cultura é relativa, pois, a cultura do Brasil não é igual à cultura da China, por exemplo. Os povos desses países produzem diferentes modos de se vestir, de agir, de crer, de se comportar, de se relacionar com o mundo e com o outro. Os diferentes comportamentos sociais, modos de ver o mundo, apreciações valorativas e morais e mesmo as posturas corporais podem ser entendidas como heranças culturais particulares ao povo que os criou. E esses modos culturais se tornam – em certa medida – hegemonizados no interior de cada sociedade, através de vários meios de educação, tais como a família, a escola, o trabalho, as instituições religiosas, as relações de amizade e, particularmente nas últimas décadas,  os meios de comunicação de massa.

É interessante perceber que a partir do século XVIII, época em que, segundo Burke (1992, p. 12) houve uma generalização no conceito de cultura, ocorre a consolidação dos estados nacionais. Esse é, também, o momento da Revolução Industrial e de uma urbanização radical da vida social européia que, depois, se estendeu para todo o planeta. Estes episódios promovem uma intersecção entre si para, depois, redesenhar as formas pelas quais os homens se organizam em sociedade. Neste processo, os grupos que, até então, se viam como diferentes vão adquirir um sentimento de identidade, uma noção de pertencimento a um mesmo estado, a uma mesma nação. De acordo com Hall (1998, p. 51),

As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre “a nação”, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas.

 A aquisição de identidades nacionais implicou, ao mesmo tempo, no fortalecimento e no combate às tradições populares. A identidade nacional resgatou a cultura tradicional popular (em termos políticos de unificação nacional) e a combateu (para eliminar o efeito negativo da existência de pequenos grupos identidários). A constituição de cada estado-nação se contrapôs às unidades culturais existentes no sentido de homogeneizá-las e dissolve-las no interior da nova realidade social. Paradoxalmente, a cultura popular se prestou, num mesmo mecanismo, à unificação dos estados e à resistência a esta mesma unificação. Exemplo disso é o caso das ditas “nações sem estado”, como o pais basco, na Espanha, e a Irlanda do Norte, no Reino Unido, que acabam por se constituir em entraves à consolidação daqueles estados.

A experiência da unificação nacional de diversas identidades culturais implica num procedimento narcísico, em que o outro é desconstruído e assimilado por uma cultura homogeneizadora, confundido-se com ela, perdendo o direito à sua alteridade, isto é, à condição de ser único, outro, diferente e ganhando uma alteridade falaciosa. Como considera Bhabha (1998, p. 34)

Onde se traça a linha divisória entre as línguas? Entre as culturas? Entre as disciplinas? Entre os povos? Propus aqui que uma linha política subversiva e traçada em uma certa poética da "invisibilidade", da "elipse", do mau olho e da pessoa desaparecida - todos instâncias do "subalterno" no sentido derridiano, e próximos o suficiente do sentido que Gramsci dá ao conceito: "[não simplesmente um grupo oprimido] mas sem autonomia, sujeito a influência ou hegemonia de outro grupo social, não possuindo sua própria posição hegemônica". É com essa diferença entre os dois usos que as noções de autonomia e dominação dentro do hegemônico teriam de ser cuidadosamente repensadas à luz do que eu disse sobre a natureza vicária de qualquer aspiração à presença ou à autonomia. No entanto, o que está implícito em ambos os conceitos do subalterno, e na minha opinião, é uma estratégia de ambivalência na estrutura de identificação que ocorre precisamente no intervalo elíptico, onde a sombra do outro cai sobre o eu. [...] É o "entre" que é articulado na subversão camuflada do "mau-olhado" e na mímica transgressora da "pessoa desaparecida". A força da diferença cultural e, como disse Barthes certa vez sobre a prática da metonímia, "violação do limite de espaço significante, ela permite no próprio nível do discurso uma contra-divisão de objetos, usos, significados, espaços e propriedades (grifo meu).

A natureza vicariante do processo social de hegemonização da pessoa, que se torna desaparecida, sem autonomia, sem identidade, culturalmente invisibilizada e, finalmente, subjugada pelas influências do outro documenta o caso do indígena brasileiro, que carrega consigo, ao mesmo tempo, a própria cultura indígena reprimida e minimizada e uma outra cultura espetaculosa que é a própria identidade recalcada pela introdução autoritária da cultura homogeneizadora e narcísica européia. Quanto mais o índio negar o europeu que traz em seu interior, maior será sua força identidária, e vice-versa. De acordo com Brandão (1986, p. 91-92),

A história dos homens tem o poder de quase sempre negar a retórica de seus discursos oficiais. Brancos civilizaram os índios que sobraram depois de lhes tirar as terras e reduzi-los a força de trabalho a seu serviço. A “aculturação” e “mudança social” não são processos sociais desligados de outros processos que, mais do que paralelos, são, muitas vezes, parte da determinação da “mudança”. Uma tribo de índios não altera o estilo e a estrutura das casas onde vivem as suas famílias porque elas aprendem com os brancos a fazer uma casa melhor. A mudança das casas e a disposição delas na tribo podem ter sido decididas por imposições “modernizantes” de missionários ou de autoridades inidigenistas. Podem ter sido provocadas pelo fato de que os índios aos poucos perderam estratégias do estilo de vida e de relações familiares que lhes exigiam as suas casas primitivas. Do mesmo modo, a tribo não altera um sistema militar de chefia interna porque aprende com o branco a “democratizar” a vida tribal. Ela é constrangida a subordinar as relações internas de poder na tribo – concretamente, nas aldeias da tribo – ao sistema regional de controle do branco sobre o índio. Quando acontece um contato entre grupos etnicamente diferentes e politicamente desiguais, o que se obtém como resultado não é o produto de um mero encontro entre duas culturas [...] que se enriquecem por trocas mútuas do que é ou passa a ser necessário para cada uma, ou do qual uma cultura sai enriquecida e a outra debilitada em alguns de seus elementos, perdidos ou desfigurados.  

            Eis aqui um bom exemplo de como tem se dado, historicamente, o diálogo entre culturas diferentes. Em substituição às formas de identidade, pertencimento e coesão das comunidades tradicionais, cujas relações se assentam na cultura oral e na proximidade, no contato real com o outro, com espaço e tempo bem definidos, aparecem as culturas nacionais, dos estados-nações, como produto dos tempos modernos.  A ruptura dos padrões tradicionais de tempo e espaço é a responsável por costurar as diversas identidades culturais em torno de uma única vida social ressignificada, que Gellner (1983 apud Hall, 2003, p. 49) chama de “teto político” do estado-nação.

As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações como a concepção que temos de nós mesmos [...] As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre “a nação”, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas (HALL, 2003, p. 50-51). 

           A partir da década de 1990, os indivíduos e as coletividades, compreendendo povos, tribos e nações, ingressam na era da globalização. O fenômeno da globalização pode ser entendido como o conjunto das transformações culturais, políticas e econômicas que vêm abalando drasticamente as estruturas sociais e mentais de indivíduos e coletividades pelo mundo todo. Na base de todas essas transformações está a integração dos mercados numa aldeia-global explorada pelas grandes corporações multinacionais. Os Estados abandonam gradativamente as barreiras tarifárias para proteger sua produção da concorrência dos produtos estrangeiros e abrem-se ao comércio e ao capital exterior. Uma intensa revolução nas tecnologias da comunicação acompanha esse processo. De acordo com Lastres; Cassiolato; Maldonado; Vargas (1998, p. 01),

A emergência de um novo paradigma tecnológico e a globalização financeira são os traços mais marcantes da economia mundial nos últimos 15 anos. Estreitou-se ainda mais a integração da economia mundial, enquanto a revolução tecnológica se difundia rapidamente, porém de forma desigual, mesmo entre as principais economias avançadas. Em tal quadro, a competitividade de firmas e nações parece estar cada vez mais correlacionada à sua capacidade inovativa, cenário onde a mudança tecnológica tem se acelerado significativamente e as direções que tomam tais mudanças são muito mais complexas. No contexto internacional da década de 1990, uma das características principais das intensas mudanças observadas nos processos produtivos relaciona-se à crescente intensidade de investimentos em conhecimento. De fato, observa-se uma transformação fundamental no significado relativo dos investimentos em conhecimento e investimentos em capital fixo. Como uma conseqüência, em vários setores os gastos anuais em P&D das empresas líderes já são maiores que seus investimentos em capital fixo, o que requer uma mudança de perspectiva também fundamental para quem está acostumado a ver o investimento em capital fixo como o motor do crescimento econômico. 

           No mundo globalizado, os limites nacionais encontram-se cada vez mais imprecisos. Diante desta constatação, se torna ilusório pensar no brasileiro como possuidor de uma identidade única. As inovações tecnológicas incessantes aplicadas ao mundo das comunicações tendem à supressão das fronteiras nacionais inventadas, que separam nós e os outros. As trocas de bens culturais instabilizam antigos e consagrados sentimentos de pertencimento. De acordo com Hall (1998), como decorrência dos processos mundiais de globalização, que esfacelam tempo e espaço, a identidade encontra-se descentrada, deslocada e fragmentada, com sensível abalo em seu quadro de referências.

O sujeito pós-moderno, [...] não tem uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. '' (HALL, 2003, p.12-13)

   A transgressão reformulativa do sentimento comunitário de pertencimento pelas razões contemporâneas do mercado torna o sujeito pós-moderno num produto de um mundo globalizado que destrói e reconstrói identidades permanentemente.

As velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno. A assim chamada “crise de identidade”'' é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social. (HALL, 2003, p.7)

O homem global é um ser fragmentado e transformado num híbrido cultural que assume várias identidades, numa perspectiva de provisoriedade, estando sujeito aos ventos da lógica do capital atual que constrói e destrói formas culturais mercadologizadas. Essa nova configuração identidária do ser humano em sociedade é o produto inequívoco do desenvolvimento da indústria cultural e de sua lógica massificadora que já na primeira metade do século passado forneciam indícios pressagiosos sobre os procedimentos mundializantes que sua última década iria inaugurar. 

Em síntese, a concepção de identidade está associada à idéia de convívio, de aproximação, de relações de igualdade e pertencimento.

[...] a identidade é uma realidade sempre presente em todas as sociedades humanas.  Qualquer grupo humano, através do seu sistema axiológico sempre selecionou alguns aspectos pertinentes de sua cultura para definir-se em contraposição ao alheio.  A definição de si (autodefinição) e a definição dos outros (identidade atribuída) têm funções conhecidas: a defesa da unidade do grupo, a proteção do território contra inimigos externos, as manipulações ideológicas por interesses econômicos, políticos, psicológicos, etc.” (MUNANGA, 1994:177-178) 

A identidade está impregnada de uma força vaga, espiritual, ampla, que diz respeito ao encontro, ao sentimento comunitário. A propósito, Rubem Alves, no vídeo “Viva a Cultura Popular Brasileira”, ao assistir uma apresentação de dança popular faz a seguinte citação:

Isso aqui é uma arca de Noé. Tem bicho de tudo quanto é jeito. Cada bicho canta de um jeito. Cada bicho tem sua dança. Isso é (a cultura do) Brasil. Pra que serve isso? Pra nada! Absolutamente nada. Isso não tem a menor serventia. Mas, por que a gente faz essas coisas? Pelo prazer de fazer. Quando a gente escuta os nordestinos cantando e os violeiros cegos, pra que serve? Pra nada. Mas é bonito. Dá sentido à vida. Dá sentido de brasilidade. E essa é uma das coisas que precisam ser reintroduzidas na escola.

 Na vida no campo, onde se encontra inserido o comentário de Rubem Alves, ainda existe – e resiste - a identidade enquanto o sentimento de pertencimento social. Não qualquer identidade, mas a identidade cultural do povo, genuína, espontânea, que dá sentido de aproximação, de comunidade. A apologia da técnica, como prerrogativa de desenvolvimento, afastamento do rural, rumo à civilização, à cidade e à indústria, exige o esgotamento do homem no esforço de trabalhar; exige que o indivíduo vá aderir a uma vida destituída de espontaneidade. E é nesse ponto que podemos iniciar uma reflexão sobre os laços entre cultura e identidade.

Historicamente, vão ser construídos sentidos díspares para o significado de identidade cultural, que vão se estabelecer positiva ou negativamente, conforme a linha de pensamento. Rosseau, representando os pensadores do romantismo, entendia a cultura, no sentido da "bondade natural, interioridade espiritual” (ROSSEAU, apud CHAUÌ, 1986, p. 12), enquanto para os pensadores iluministas a cultura era a medida de uma civilização. E a civilização estaria ligada ao desenvolvimento da razão no domínio da natureza para criar uma sociedade superior (civilizada), contra a ignorância e a superstição (Chauí, 1986:13).

Ao contrário dos iluministas que pensavam a cultura politicamente, os pensadores do romantismo (naturalismo) viam a cultura como algo espontâneo, baseado na vida comunitária e na simplicidade. A busca dos romantistas para encontrar essa pureza e essa vida orgânica do povo, faria frente aos artificialismos da vida burguesa preconizada pelos iluministas. “Visto que homem algum tem direito sobre seus semelhantes e que a força não produz direito nenhum, só restam as convenções como base de toda a autoridade legítima existente entre os homens.” (Rosseau, 2000, p. 61). Toda essa discussão travada pelos românticos e iluministas ocorreu no século XVIII. Contudo, a passagem dos séculos não trouxe animosidade aos entendimentos. Antes, acirrou os conflitos interpretativos da identidade cultural, como fenômeno tipicamente atual.

Nas palavras de COUTINHO (1973, p. 24), a nacionalização “é um processo intenso e persistente de busca da identidade nacional, de integração e globalização da realidade” (social). O Brasil se insere tardiamente no mundo capitalista e, consequentemente, só vai iniciar sua busca por uma identidade nacional no século XIX. Mas, afinal, como e a partir de quais elementos pode-se dizer da existência de uma identidade nacional brasileira? O que é ser brasileiro? É possível afirmar a existência da nação brasileira? Se forem focalizados apenas os aspectos geográficos, jurídicos ou políticos a resposta é fácil. Mas, é preciso verificar um pouco mais do que isso para se definir a identidade brasileira, como, por exemplo, o conjunto dos indivíduos que vivem dentro do Brasil. Como avaliar, por exemplo, numa perspectiva identidária, as diversas especificidades regionais que diferenciam grandemente formas culturais populares de norte a sul do país. Efetivamente, não se pode dizer que a cultura gaúcha tenha o mesmo conteúdo que a cultura baiana. Também é difícil se avistar consenso num país tão marcado, historicamente, por consideráveis desigualdades econômicas, culturais e políticas. Documenta esta afirmação o fenômeno relativamente recente no país do enclausuramento da classe média alta em seus “condomínios fechados”, fenômeno que parece assinalar uma sociedade com forte vocação parta a estratificação social.

Não se pode esquecer que a invenção do estado-nação exigiu a criação de uma ligação forte entre populações muito diferentes. Nações homogêneas são, na verdade, a exceção, não a regra. A idéia de algo nacional surge para satisfazer as exigências da indústria. Nesse sentido, uma questão que se coloca desde o processo de formação dos estados-nações até os dias atuais é que eles tendem a homogeneizar identidades heterogêneas no interior de um mesmo estado. Todavia, no que se refere, ao menos, à sociedade brasileira, as extravagantes oposições de classe e as diferenças culturais regionais sugerem a impossibilidade de se estabelecer uma igualdade identidária. A torcida pela vitória da seleção brasileira de futebol estabelece uma forma de auto-afirmação popular que concede um sentimento de vitória a muito mais gente do que o pequeno grupo de atletas diretamente envolvido com o jogo no gramado. Existe nisso um sentimento de identidade artificial que constrói uma forma de protesto inconsciente (sem que o sujeito perceba sua ação) contra as impossibilidades de gratificação real de uma população já miserabilizada, para além das condições econômicas, em sua condição humana. Este é um processo que não faz distinção de classes sociais. Com efeito, a miséria humana não é tanto uma miséria econômica; é, sobretudo, uma miséria de consciências. A apregoada defesa dos “valores nacionais” não se pergunta sobre os esforços que vem empreendendo para alimentar os “membros da nação” sem que essas medidas ensejem detrimento a outros povos.

Em face às dificuldades de se desfrutar de uma existência digna e autêntica, resta a opção de aderir a um sentimento coletivizado de vitória, onde o efêmero substitui o essencial e o imaginário cria uma catarse social coletiva que permite as populações miserabilizadas continuar suportando as agruras da vida real que, de outro modo seria insuportável, caracterizada, esta última, por separações, antagonismos e hierarquias sociais.

A partir dessas reflexões é possível concluir que a identidade nacional brasileira não é uma só, diferentemente daquilo que acreditava Gilberto Freyre, para quem existe certa tolerância mutua entre as classes sociais e as diversas cultura (FREIRE, 1992). Se há, de fato, no Brasil, uma conciliação, esta, longe de se definir pela tolerância mútua, descansa na cooptação coercitiva do menos poderoso pelo mais poderoso. A idéia de que existe uma cultura nacional identidária é simultaneamente folclorizada e, no limite, turistificada pelos recursos midiáticos da indústria cultural brasileira em torno de valores de origens afro-descendentes, onde despontam como premissas falaciosas de uma suposta identidade nacional, dentre outros, o pagode, o axé, o funk e a figura desnuda da mulata como carne humana exposta no açougue catártico das purgações de fevereiro.

 A diversidade identidária brasileira existe desde o período anterior ao seu descobrimento. Os povos indígenas que aqui viviam pertenciam a grupos diversos, com culturas diversas. Depois, vieram os portugueses que trouxeram da África escravos de diferentes regiões, etnias e culturas. No século XIX aqui chegaram imigrantes italianos, alemães e japoneses.  A mistura entre as diferentes etnias criou não apenas uma miscelânea multicultural, mas uma síntese intercultural. O diálogo entre as culturas superou o relativismo cultural crasso e enriqueceu o povo brasileiro com valores universais. Por outro lado, o mundo atual, infelizmente, não apresenta um jogo simples, equilibrado ou mesmo leal no que se refere à difusão das formas culturais. A globalização apresenta-se como uma preocupante tendência à hegemonização cultural.

   É preciso diversificar. A diversidade cultural é, em certo sentido, o próprio reflexo da múltipla diversidade de vidas na natureza, a fim de que esta possa renovar-se e sobreviver. A diversidade cultural supõe uma relação com o diferente. E essa diferença pode ser antagônica ou não. Só pode haver diálogo e parceria quando as diferenças culturais não são antagônicas. Caso contrário, a tendência é de que a cultura mais elaborada, agressiva ou desenvolvida destrua outras culturas com as quais se relaciona.  A questão indígena em nosso país é um bom exemplo disso. Quando o branco aqui chegou, encontrou mais de seis milhões de índios, distribuídos em 900 nações, com suas tradições, costumes e crenças, suas formas de “viver bem”. Entre eles não haviam ricos e pobres. Sabiam fazer o manejo adequado da natureza. Criavam suas crianças de forma libertária e destinavam um tratamento respeitando as mulheres, com especial reverência aos idosos, tidos como fonte de sabedoria e patrimônio vivo das futuras gerações. Após o contato com o branco nada disso teve valor. Os índios ficaram sabendo que eram “pobres” e “pecadores”, que a sua forma de vida e sua religião não prestavam.  Vítimas de um verdadeiro genocídio que se pautou por inúmeras malsucedidas tentativas de escravizá-los, poucos sobreviveram e hoje restam somente cerca de 400 mil aborígines brasileiros, distribuídos em 200 nações, que vêm sofrendo desde então um gradativo processo de transformação de sua forma cultural numa cultura cada vez mais mercadológica.

De acordo com RUMNEY e MAIER, (1968, p. 96-98), a menor unidade da cultura é o chamado “traço cultural”, representado, por exemplo, pelo costume religioso, de transporte, político, bélico ou arquitetônico de uma determinada sociedade. Os traços culturais combinados formam o que se chama de “complexo cultural”. Existe um “complexo do samba” entre os cariocas, um “complexo do chimarrão’, entre os gaúchos e/ou um “complexo do carnaval” entre os baianos. Por sua vez, o termo “padrão cultural” indica que o comportamento das pessoas não é acidental. Exprime características peculiares, que obedecem às condições históricas, étnicas, religiosas, éticas e econômicas que lhes conferiram existência. Nesse sentido, a cultura norte-americana, por exemplo, parece ser assinalada por um padrão cultural cimentado na luta pela conquista de status social e econômico, valorização exagerada do dinheiro, apologia da competitividade em substituição à cooperação, busca de conforto material, valorização pragmática da família, segregação racial e econômica, espírito colonizador, predador e imperialista em relação aos demais países, em especial aos do terceiro mundo, predileção por aparelhos e artifícios mecânicos, além de uma tendência em querer impressionar pelo tamanho e quantidade.

De um modo geral, o padrão cultural de uma determinada sociedade pode ser definido como agressivo ou pacifista, autoritário ou democrata, competitivo ou cooperativo. Não pode haver diálogo e parceria entre uma cultura cooperativa e pacifista e uma outra agressiva e competitiva. A relação entre essas culturas será sempre de dominação de uma sobre a outra, pois a cultura mais agressiva tende a dominar e destruir as outras culturas que toca.

A cultura é a “natureza” do homem. Penso que a diversidade cultural pode muito bem ser entendida como a “biodiversidade” da humanidade, isto é, aquela que deve ser defendida diante de um mundo globalizado e desprovido dos conteúdos, valores, símbolos e identidades que nos dizem respeito intimamente. O grande paradoxo paradigmático da lógica mundializante do mundo globalizado está no fato de que ele aproxima, virtualmente, pessoas localizadas em partes diferentes do planeta, ao mesmo tempo em que as distancia em termos reais.

O brasileiro é, em geral, considerado um povo nacionalista, orgulhoso de ser brasileiro. Expressões como “jeitinho brasileiro” e “Deus é brasileiro” podem documentar essa afirmação. Mas, o que significa, hoje, ser brasileiro? Como Darcy Ribeiro chegou a afirmar, o que é marcante em nosso povo é sua ninguendade: somos tantas culturas, tantos brasis, tantas misturas, que se pode dizer que somos ninguém. Segundo Carlos Drumond de Andrade, “nenhum Brasil existe”.

[...] Precisamos adorar o Brasil! 
Se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens, 
por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão
de seus sofrimentos. 
 
Precisamos, precisamos esquecer o Brasil! 
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado, 
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos. 
O Brasil não nos quer! Está farto de nós! 
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil. 
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?[...] 

           As metafóricas querelas da nacionalidade constroem uma admirável orgia retórica de interpretações díspares daquilo que vem a ser ou não brasilidade.  Provocadora, essa afirmação é um recurso que mobiliza a poesia de Drumond sobre a formação da identidade brasileira. Mas, além disso, tal provocação ultrapassa os aspectos poéticos do pensamento e invade um acidentado território povoado por bem mais embaraçosas questões: a partir de qual Brasil se solidifica a idéia nacional? Existe um Brasil “profundo e verdadeiro” que serve como medida para avaliar quem possui maior ou menor brasilidade? Aliás, exatamente, quem é ou o que é o Brasil? Ou, ainda, a identidade brasileira capturou mais enfaticamente alguma das tantas vozes dos inúmeros povos que para cá vieram, com todas as suas identidades?

Todas essas indagações me levam ao reconhecimento das dificuldades intelectuais de se encontrar uma resposta universal para a interminável discussão, bastante atualizada, sobre a existência de uma identidade cultural brasileira. Sem que isso, obviamente, signifique renunciar à possibilidade de encontrar — malgrado simpatias ou antipatias pessoais — a verdade científica acerca da brasilidade. A importância da investigação científica, neste caso, está justamente no fato de renunciar a respostas fáceis ou já consagradas para qualquer uma das indagações acima. 

O viés do interesse contemporâneo, voltado para o infindável debate sobre a cultura, a mundialização e a identidade, tem pavimentado as controversas reflexões que procuram definir o que é o Brasil. Teóricos de todos os tipos circulam ao redor do duradouro diálogo sobre quem somos nós, os brasileiros. Ribeiro (2005, p 19), considera que:

Surgimos da confluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor português com índios silvícolas e campineiros e com negros africanos, uns e outros aliciados como escravos. Nessa confluência, que se dá sob a regência dos portugueses, matrizes raciais díspares, tradições culturais distintas, formações sociais defasadas se enfrentam e se fundem para dar lugar a um povo novo [...]. 

             De acordo com Santos (2002, p. 23-31) a lógica da vida urbana possibilita diferentes identidades culturais conviverem no interior da mesma nação, criando diferentes meios para lograr seus objetivos. No Brasil, com o intuito de sobreviver e viver livremente, o negro desenvolveu mecanismos culturais ligados à formação de grupos sociais distintos da classe dominante.

[...] a adoção do sincretismo religioso, para fazer sobreviver o Candomblé, a criação da Capoeira, a fundação dos quilombos e os distintos movimentos revolucionários, [...] foram mecanismos de resistência a um sistema opressor. [...] O Candomblé [...] permitiu que os escravos se agrupassem e construíssem entre si uma semelhança. A diferença com a classe dominante ficou assim concretizada de forma imediata, utilizando o sincretismo religioso. (SANTOS, 2002, p. 30-31) 

O pêndulo de todas as indagações acerca da definição das identidades vê-se finalmente firmado sobre um ponto situado para além da brasilidade, nas brasilidades. O sentimento de identidade brasileira vem se nutrindo e justificando no pragmatismo político que atende, historicamente, à necessidade burguesa da construção dos estados-nações e que se ilude e compraz hoje diante da propaganda nacionalista.

A rígida estrutura de classes e a imobilidade social deste país não se abalam, senão tardiamente, com os ventos que sopram de além-mar. Há um Brasil que se lembra do mundo e outro que se esquece de si mesmo. Em “Querelas do Brasil”, uma composição musical de Maurício Tapajós e Aldir Blanc, Elis Regina repete, poética e sintomaticamente, o refrão o Brasil não conhece o Brasil. Ou, emprestando as palavras de Darcy Ribeiro, poder-se-ia, talvez, dizer: O Brasil não conhece os Brasis. Penso logo em pelo menos dois deles, separados por um abismo econômico e cultural. Um Brasil miserável e outro rico: há um Brasil formado por um encontro formidável de culturas, onde existem museus com Van Goghs e há um outro Brasil que reflete ainda hoje as conseqüências maléficas de seu processo histórico de descoberta e colonização. Contra a paradoxalidade existente entre esses dois Brasis, levanta-se uma poética crítica no samba “O Gás Acabou” (1970), de Luiz Américo e Braguinha, diante da terrível e sedutora realidade social brasileira, que exala um doce suor amargo.

O gás acabou, tem pouca comida,
Acabou meu dinheiro 
Pagamento está longe,
Ainda não pintou o décimo terceiro 
As pratinhas do Zé
Que ele juntou pra comprar a chuteira 
Se o vale gorar 
Já dá pra inteirar a despesa da feira 
 
E aqui estou eu 
Pedindo carona pra ir trabalhar 
Pensando na nega mãe dos meus moleques 
Que nunca se queixa 
E está sempre a cantar 
Seja lá o que Deus quiser 
Pobre é esse sofrimento 
Recebe só vale no seu pagamento. 

 Todas as formas de arte são depoimentos do espaço e do tempo em que existem. A arte, refletindo os extremos alcançados pela massificação, pelo consumismo, pela banalização da condição humana, denuncia a violência e torna-se um instrumento de reflexão contra a sociedade da exploração e do absurdo. Nos dizeres do crítico Mário Pedrosa, a arte é o "exercício experimental da liberdade”. Renato Cohen, pensador-criador do teatro experimental, de performance, aponta para um procedimento particular da criação artística que revela na arte um diálogo com a realidade.

O artista é antes de mais nada um relator de seu tempo. Um relator privilegiado, que tem a condição de captar e transmitir aquilo que todos estão sentindo, mas não conseguem materializar em discurso ou obra. [...] Cabe ao artista captar uma série de informações que estão no ar e codificar essas informações, através da arte, em mensagem para o público. Essa codificação não implica limitação, mas, isto sim, retransformação através de outros canais. (COHEN, 2004, p. 87). 

           A antropofagia, inaugurada na Semana de Arte Moderna de 1922 por Tarsila do Amaral, Mario de Andrade, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Oswald de Andrade e Brecheret, consagrou uma definição étnica e cultural brasileira a partir da associação de distintos grupos indígenas, europeus e africanos. É sabido que somos uma mistura de etnias. Mas é só isso? O que é o brasileiro? Cabe aqui recorrermos a Darcy Ribeiro para uma explicação mais satisfatória. O autor fala de cinco Brasis: 1) o Brasil da cultura sertaneja do nordeste e do centro, baseada na produção do couro e do gado; 2) o Brasil da cultura crioula do litoral, baseada nos engenhos de açúcar; 3) o Brasil da cultura cabocla da Amazônia, baseada nos seringais e na pesca dos rios; 4) o Brasil caipira do sudeste e centro, baseado na economia do café e da subsistência e nascida dos bandeirantes; 5) o Brasil da cultura gaúcha das estâncias de gado e da cultura agrícola dos imigrantes no sul do país. (RIBEIRO, 2005) Estes cinco brasis se construíram a partir da união das diferenças e da capacidade de integração entre etnias e culturas em meio à desigualdade social.

Nossa tipologia das classes sociais vê na cúpula dois corpos conflitantes, mas mutuamente complementares. O patronato de empresários, cujo poder vem da riqueza através da exploração econômica; e o patriciado, cujo mando decorre do desempenho de cargos, tal como o general, o deputado, o bispo, o líder sindical e tantíssimos outros. Naturalmente, cada patrício enriquecido quer ser patrão e cada patrão aspira às glórias de um mandato que lhe dê, além de riqueza, o poder de determinar o destino alheio. Nas últimas décadas surgiu e se expandiu um corpo estranho nessa cúpula. É oestamento gerencial das empresas estrangeiras, que passou a constituir o setor predominante das classes dominantes. Ele emprega os tecnocratas mais competentes e controla a mídia, conformando a opinião pública. Ele elege parlamentares e governantes. Ele manda, enfim, com desfaçatez cada vez mais desabrida. Abaixo dessa cúpula ficam as classes intermediárias, feitas de pequenos oficiais, profissionais liberais, policiais, professores, o baixo-clero e similares. Todos eles propensos a prestar homenagem às classes dominantes, procurando tirar disso alguma vantagem. (...) Seguem-se as classes subalternas, formadas por um bolsão da aristocracia operária, que têm empregos estáveis, sobretudo os trabalhadores especializados, e por outro bolsão que é formado por pequenos proprietários, arrendatários, gerentes de grandes propriedades rurais etc. Abaixo desses bolsões, formando a linha mais ampla do losango das classes sociais brasileiras, fica a grande massa das classes oprimidas dos chamados marginais, principalmente negros e mulatos, moradores das favelas e periferias da cidade. São os enxadeiros, os bóias-frias, os empregados na limpeza, as empregadas domésticas, as pequenas prostitutas, quase todos analfabetos e incapazes de organizar-se para reivindicar. Seu desígnio histórico é entrar no sistema, o que sendo impraticável, os situa na condição da classe intrinsecamente oprimida, cuja luta terá de ser a de romper com a estrutura de classes. Desfazer a sociedade para refazê-la. (RIBEIRO, 2005, p. 208-209) 

         Se o Brasil se livrou do escravismo, em troca, não perdeu de vista o oprimido. Esta constatação alude à proximidade entre paraíso e inferno e à sua equivalência num Brasil de onde ecoam, nas diversas formas da cultura popular, vozes, mitos e acordes de uma brasilidade riquíssima, retornada, paradoxalmente, à condição ibérico-medieval da miserabilidade e da ignorância.

Na exposição das vicissitudes da realidade brasileira, o discurso poético descreve a realidade à luz de uma estética metafórica, onde os padrões sociais de beleza dialogam com um panorama de lutas pela difícil sobrevivência. Nesse aspecto, penso que a globalização conseguiu o inusitado: tornou o mundo capitalista um lugar ainda mais difícil para se viver. O processo de globalização prometeu ao homem sua liberdade social através da universalização dos bens culturais da humanidade, numa perspectiva de democratização dos saberes como via de acesso à igualdade de oportunidades e condições para todos. Entretanto, a globalização não conseguiu libertar o homem de seus antigos fantasmas, pelo contrário, a despeito de tamanha vastidão de informações, o homem pós-moderno é uma criatura solitária e angustiada.

A ciência quer desvelar o mundo; não há limites para sua gana. Tudo se faz num processo de urgência, como se para além da globalização nada mais restasse, senão o fim da humanidade. A ânsia de substituir o homem pelo computador não só na produção, mas em todas as esferas da vida social demonstram que a tão proclamada redenção pelos saberes apontam sempre para a desqualificação do que já existe, numa velocidade vertiginosa que estabelece um confronto direto entre o imaginário e o real, entre o desenvolvimento técnico-científico e a própria existência humana. Nessa dança interminável de invenções, o “homem do povo” torna-se sujeito passivo de uma nova e estranha constelação de signos e conceituações globalizantes: mundialização, interculturalismo, multiculturalismo, internet. De acordo com SILVEIRA (2001, p. 92),

Essa multiplicidade significa criar um simulacro da sociedade perfeita, onde a máquina realiza tudo, ou quase tudo, diminuindo os erros de produção e mantendo o controle absoluto de todas as fases do processo. Essa parafernália aumenta o sistema de controle, de dominação das elites sobre o homem do povo, uma vez que os grupos organizados - o político, o econômico e a mídia - são os agentes transformadores, com acesso privilegiado ao novo discurso. a vanguarda desenvolvimentista cria novos modelos mentais através da mídia. O homem do povo sabe apenas dizer/falar o nome das novas descobertas, porque a mídia se encarregou de propalá-las, mas desconhece o esquema comunicativo do discurso. A incorporação do discurso implica o acesso ao centro das decisões da nova ordem, nas diferentes modalidades de participação, o que não interessa aos grupos dominantes. O novo discurso é poder e poder não se partilha. Concentram-se riquezas, status e poder em centros de controle, como estratégia de ação. O homem do povo só sofre os reflexos da nova ordem global, ele consome o pacote pronto, tanto as novas tecnologias, como as influências das novas categorias epistemológicas. (...) Uma parte considerável do povo, no Brasil e nos países marcados pelo estigma da pobreza, são os excluídos. (...) legiões de miseráveis povoam as favelas dos grandes centros, crianças famintas e maltrapilhas perambulam pelas ruas e praças, num espetáculo de horror. O desemprego em escala, filho bastardo da nova ordem, se alastra como uma praga incontrolável. Como conseqüência, a violência toma conta das cidades, do campo e, nos grandes centros urbanos, a vida humana tem um valor meramente simbólico e, ao final de cada semana, os imls se enchem de cadáveres, como resultado da falência do estado na área da segurança pública. Enquanto isso, o poder público alardeia a criação de programas para a erradicação da miséria absoluta que nunca chegam.

Chamo Globalização ao conjunto de transformações culturais, políticas e econômicas mundiais que vem acontecendo marcadamente a partir da década de 1990. Em seu itinerário consta a integração dos mercados numa "aldeia-global", explorada pelas grandes corporações internacionais e que vem acompanhada de uma intensa transformação nas tecnologias de informação e comunicação. Esses fatores tem oportunizado a quebra dos limites de tempo e espaço, ensejando uma homogeneização cultural entre os Estados. Notadamente, a cadeia de fast food McDonald's, por exemplo,

é uma das maiores e mais poderosas marcas globais para consumo de massa. Presente em 119 países, com 31.129 lanchonetes e 48 milhões de clientes diários – dados de dezembro de 2005, disponíveis em www.mcdonalds.com.br –, a marca constitui-se na maior cadeia de fast food do mundo. (FONTENELLE, 2006, p. 01)

Alguns autores falam em “aldeia global”, pois parece que o planeta está ficando menor e todos se conhecem. Isto significaria que todos os indivíduos poderiam fazer parte de um mesmo mundo, de uma mesma realidade social, política, cultural e econômica. ORTIZ (2005, p. 16), nos define o conceito de globalização como sendo:

...a produção, distribuição e consumo de bens e serviços, organizados a partir de uma estratégia mundial e voltados para um mercado mundial. Ele corresponde a um nível e a uma complexidade da história econômica na qual as partes, antes internacionais, se fundem, agora, numa mesma síntese: o mercado mundial.

 Um elemento essencial para análise das vicissitudes da realidade atual deve ser a permanente consciência acerca do indissociável vínculo que há entre a lógica do capital e o poder político. Não se pode pretender compreender a sociedade brasileira, nem qualquer outra sociedade atual, sem a compreensão de que o Estado, tal como o mercado, é um elemento constitutivo da dinâmica do capital. Assim, é conveniente recordar que a origem dos atuais Estados nacionais encontra-se intimamente ligada à busca de autonomia do capital mercantil como meio e conseqüência da superação da crise do modo de produção feudal, que se deu no século XIV. Até então, os Estados eram territoriais, ou seja, se definiam pela extensão da soberania exercida sobre os súditos. Como considera CAMPOS (2002, p. 01), “É o Estado-nação que possibilita a presença política na estruturação do estado moderno, a partir da secularização da política, da separação entre Igreja e Estado".

O Estado-nação surge com o objetivo de circunscrever um território para a acumulação do capital, gerando instituições e formas culturais apropriadas, surgidas com apoio popular e em oposição à hierarquia feudal. A partir desta constatação, uma armadilha ao encontro da qual podem ir intelectuais postados à esquerda é a de ver na crise atual dos Estados um elemento associativo à questão identidária, aderindo ao multiculturalismo em detrimento das perspectivas identidárias.

A despeito do discurso oficial, o objetivo das políticas multiculturais nunca foi o de preservar identidade cultural alguma, mas o de proteger as formas globais de expansão do capital. A globalização pressupõe o fim dos Estados-nação.

A idéia predominante subjacente ao termo globalização econômica é que se caminharia para um mundo sem fronteiras, com a predominância de um sistema internacional autônomo e socialmente sem raízes, onde os mercados de bens e serviços se tornam crescentemente globais. Nesta perspectiva, sustenta-se que a economia mundial é dominada por “forças de mercado incontroláveis”, cujos principais atores econômicos são grandes corporações transnacionais que não devem lealdade a nenhum Estadonação e que se estabelecem em qualquer parte do planeta, exclusivamente, em função de vantagens oferecidas pelos diferentes mercados. Assim, apregoa-se que a única forma de evitar se tornar um perdedor - seja como nação, empresa ou indivíduo - é ser o mais articulado e competitivo possível no cenário global. Neste quadro, o papel dos Estados nacionais, particularmente da periferia menos desenvolvida, é descrito como extremamente diminuído senão anulado, só lhes restando a aceitação incondicional e o azeitamento do crescente processo de desenvolvimento das forças econômicas em escala global. Paralelamente, a ideologia da globalização tem servido aos governos como bode expiatório, ao se transferir a responsabilidade pelas vicissitudes econômicas e sociais nacionais para o âmbito das forças supranacionais, fora de seu controle. (LASTRES; CASSIOLATO; MALDONADO; VARGAS, 1998, p. 05). 

Não se trata de defender a soberania nacional, mas de preservar as diversas identidades dos diversos povos que existem no interior do Estado contra os crescentes influxos de filmes, músicas, comidas, vestes e outras “culturas” estrangeiras, em sua maior parte, americanizadas, colonizadoras e constituídas pela indústria cultural, com fins unicamente de mercado.

  As identidades culturais – como tudo o que é humano – são dinâmicas, estão em constante transformação e não podem existir imunes aos ventos e tempestades de outras culturas. Entretanto, é preciso remeter um olhar crítico para as sedutoras propostas de redenção proclamadas pelo mundo global.  Só pode haver liberdade numa sociedade igualitária, onde não haja lugar para grandes desigualdades entre as pessoas. E não me parece ser esse o ideário das sociedades construídas a partir do modo de produção capitalista. Assim entendendo, e num rápido balanço destas últimas décadas, seria legítimo afirmar que a globalização estaria permitindo as mesmas oportunidades a todos? Ou estaria ela concedendo privilégios a pequenos grupos sociais economicamente abastados?

 O Relatório Sobre o Desenvolvimento Humano, divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD, 2004), revela um quadro bastante negativo para o período de 1990 a 1995, anos que apresentaram ao mundo os primeiros resultados do processo de globalização. Segundo este relatório, o nível de pobreza mundial aumentou no período. Antes se concentrava na América Latina, no sul da Ásia e na África. Depois, a miséria abocanhou os países da Europa Oriental e os da antiga União Soviética. Até mesmo os países ricos experimentaram um aumento significativo em seus índices de pobreza, inundados que foram pelas levas de estrangeiros refugiados da miséria. Quase 20% da população mundial sobrevive hoje com menos de um dólar por dia, segundo o relatório Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, divulgado pela Organização das Nações Unida (ONU), em 13 de agosto de 2007. Isso significa que mais de um bilhão de pessoas está abaixo da linha da pobreza em todo o mundo. Em 1990, o número era bem maior: aproximadamente um terço da população mundial vivia em condições de miséria. Embora positivo, o progresso demonstrado pelo relatório não é uma uniformidade entre as diversas regiões do planeta. Enquanto países como a China alcançaram melhorias significativas nos últimos anos, na África Subsaariana, aproximadamente 40% da população continua vivendo em condições de extrema pobreza e na América Latina e Caribe, 8,7% da população vive com menos de um dólar por dia (dados de 2004). Em 1990, a taxa era de 10,3%.

 As relações sociais de dominação, reinventadas no mundo globalizado, precisam ser analisadas com olhares mais inquiridores. Afinal, "o que possibilita a existência da sociedade?" Responder à pergunta clássica da Sociologia torna-se imprescindível quando se observa que as experiências de vida de diferentes setores da população são tão díspares quanto incomensuráveis. O brasileiro que passeia sossegadamente na Avenida Champs-Élysées e depois almoça no restaurante Jules Verne, a 57 metros de altura na torre Eiffel, degustando o famoso e caro vinho Romanée Conti, tem muito pouco de semelhança com o brasileiro que trabalha como operário da construção civil em São Paulo.

“Em Roma faça como os romanos”, diz o ditado. As pessoas buscam as proximidades, as afinidades com o grupo em que estão naquele momento. Quem reforça as identidades contra as diferenças com os outros são os interessados nos embates, que precisam fortalecer a unidade inquestionável destes contra aqueles. “Nós somos iguais, temos objetivos comuns. Eles são diferentes; são uma ameaça ao nosso estilo de vida, à nossa existência”. Vejo muito mais afinidades entre os gaúchos do Uruguai, da Argentina e do Rio Grande do Sul do que entre estes e os baianos ou entre os baianos e os mineiros ou entre os mineiros e os cariocas. O português falado em Santa Catarina se parece mais com o falado em Lisboa do que com o que se fala entre os pernambucanos. A Lambada paraense é mais parecida com a Salsa cubana do que com o Samba. A fisionomia étnica e cultural dos baianos está mais próxima dos cubanos do que do restante dos brasileiros. As identidades nacionais se pautam pela artificialidade. O que não significa que as identidades não existem. Elas se encontram nos grupos de pertencimento e desconhecem as fronteiras entre os Estados.

Esse poder do capitalismo de reinventar o mundo real, tornando iguais desejos e realidade, ao invés de propiciar o desenvolvimento digno de um ego que se afirme em sua diferença relativa ao todo social, enfatiza a identidade a partir de sua dissolução no todo social. A partir dessa pseudo-identidade, tem-se uma desconstrução das vicissitudes humanas com a própria anulação do indivíduo diante de uma realidade onde o mundo capitalista mostra o quanto sua essência se esgota na finalidade de gerar lucro. É emblemático o apelo das tantas formas de loteria e sorteio que advogam a possibilidade de qualquer um ascender socialmente. Em que pese a ínfima e desprezível quantidade de ganhadores em relação ao universo vastíssimo daqueles apostadores que permanecem toda uma existência sem ganhar nada, a própria imagem da possibilidade de ganho por qualquer um já é usufruída pelos indivíduos como o próprio prêmio: uma fantástica realização do desejo não realizado.

A lógica do capital orienta-se para a manutenção dos conflitos e incertezas sociais produzindo conceitos que mais enganam que esclarecem. O senso comum e os modismos culturais apreendem dos eventos modernos e pós-modernos a impressão de atualização, de contemporaneidade, sugerindo sua aceitação como naturais e, portanto, inelutáveis. São assim mesmo, como sempre foram e não há como mudá-los. Acontecimentos como a guerra do Iraque ou os atentados suicidas do Oriente Médio documentam duramente a violência e o ódio existentes no mundo todo. Eis a grande contradição da globalização: de um lado suas forças parecem unir o mundo em torno de aspectos comunicativos e de mercado; de outro, essas mesmas forças separam os seres humanos ainda mais. A abolição midiática das distâncias aproxima virtualmente, mas fornece, num mesmo mecanismo, um distanciamento real. 

Penso estar bastante claro que a capacidade de empatia decresce na medida em que cresce a distancia social em relação ao outro. Se a estratificação econômica pressupõe a diferença, então não pode haver mesmo cooperação, igualdade e, finalmente, identidade no interior de um modo de produção que se orienta de acordo a preservação do status ontológico da sociedade de classes. A degeneração do senso de pertencimento, solidariedade e autonomia encontram-se danificados no interior de uma sociedade que, reascendendo as antigas formas de dominação escravocrata, instiga o conformismo diante de uma existência pauperizada onde prolifera a renúncia ao esforço da reflexão crítica.

Com a conclusão dessas primeiras observações, no próximo capítulo procurarei por uma análise reflexiva sobre as possibilidades de reconstrução identidária diante das forças emanadas da indústria cultural associadas aos procedimentos da globalização. Em que pese a multiplicidade de diferenças entre o processo de globalização do mundo contemporâneo e os estágios anteriores do modo de produção capitalista, ainda pairam sobre a humanidade as promessas (neo)liberais de que todos estão livres para fazer o que quiserem de suas existências. Perdurando desde a década de 1940, as tecnologias da indústria cultural ainda tendem a dispensar aos consumidores um tratamento orientado no sentido da sua manutenção em um estado permanente de menoridade e manipulação. Desde o colapso do modo de produção feudal e a traumática consolidação do modo de produção capitalista paira sobre a humanidade a crença fraudulenta de que a imensa rede de indústrias ainda possibilita espaço para o exercício da liberdade individual.

3. CAPÍTULO 2

3.1. Metáforas poéticas nas identidades culturais brasileiras

Abancado à escrivaninha em São Paulo

Na minha casa da Rua Lopes Chaves

De sopetão senti um friúme por dentro.

Fiquei trêmulo, muito comovido,

Com o livro palerma olhando pra mim.

Não vê que me lembrei lá no norte, meu Deus!

[muito longe de mim],

Na escuridão ativa da noite que caiu,

Um homem pálido, magro de cabelo escorrendo nos olhos,

Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,

Faz pouco se deitou, está dormindo.

Esse homem é brasileiro que nem eu...

(“Descobrimento”, Mário de Andrade)

No trecho acima, do poema “Descobrimento”, me parece bastante razoável dizer que o lugar de afirmação poética é aquele em que o autor, apesar do seu distanciamento geográfico, social e cultural, sensibiliza-se, comove-se, identifica-se e busca compreender a existência e a relevância do significado do outro. Diante das tantas promessas pós-modernas de satisfação grandiosa das necessidades humanas pela mundialização cultural, o sentimento de alteridade é paradoxal e gradativamente arrancado, substituído, por pseudo-culturas degeneradas em mercadorias e que acabam por condenar as identidades culturais populares a um processo que, num mesmo mecanismo, aniquila sua capacidade de sedução e a substitui por um simulacro de sedução para o consumo fictício dessa mesma sedução. Num mundo virtualizado, onde a fantasia adquire status sacro-santificado, as pessoas consomem a ficção de sua própria satisfação como se fora realidade.

[...] Brasil, esquentai vossos pandeiros
Iluminai os terreiros
Que nós queremos sambar. [...]

O trecho da música “Brasil Pandeiro”, de Assis Valente, é instigador: o sentimento identidário precisa voltar a querer sambar; querer o pandeiro, o surdo, o cavaquinho, o tamborim, o réco-réco e o violão. E querer também o Maculelê, a Ciranda, o Samba-de-roda, o Bumba-meu-boi, o Côco-de-Roda, o Jongo, o Caxambu, a Folia de Reis, o Maracatu, a Congada, o Frevo, o Forró, a Marujada, o Caboclinho, a Catira, o Cateretê, a Capoeira... Tantas festas, tantos momentos populares de encontro e pertencimento. É na alteridade de suas diferentes identidades culturais que o brasileiro precisa ver-se novamente refletido, resistindo à lógica pós-moderna do capitalismo contemporâneo que postula o fim das identidades, coisificando-as, banalizando-as e, finalmente, descartando-as como um mero detrito de um mundo que se decompõem a olhos vistos.

O pêndulo de todas as indagações acerca da definição das identidades vê-se finalmente firmado sobre um ponto situado para além da brasilidade, nas brasilidades. O sentimento de identidade brasileira vem se nutrindo e justificando no pragmatismo político que atende, historicamente, à necessidade burguesa da construção dos Estados-nações e que se ilude e compraz hoje diante da propaganda nacionalista. Há um Brasil que se lembra do mundo e outro que se esquece de si mesmo. Em “Querelas do Brasil”, uma composição musical de Maurício Tapajós e Aldir Blanc, Elis Regina repete, poética e sintomaticamente, o refrão “o Brasil não conhece o Brasil”. Ou, emprestando as palavras de Darcy Ribeiro, poder-se-ia, talvez, dizer: O Brasil não conhece os Brasis. Penso logo em pelo menos dois deles, separados por um abismo econômico e cultural. Um Brasil miserável e outro rico: há um Brasil formado por um encontro formidável de culturas, onde existem museus com Van Goghs e há um outro Brasil que reflete ainda hoje as conseqüências maléficas de seu processo histórico de descoberta e colonização. Contra a paradoxalidade existente entre esses dois Brasis, que exalam um doce suor amargo, levanta-se uma poética crítica no Rock “A Novidade”, de Gilberto Gil, Bi Ribeiro, Herbert Vianna e João Barone, de 1986:

A novidade veio dar à praia
Na qualidade rara de sereia
Metade, o busto de uma deusa maia
Metade, um grande rabo de baleia

A novidade era o máximo
Do paradoxo estendido na areia
Alguns a desejar seus beijos de deusa
Outros a desejar seu rabo pra ceia

Ó, mundo tão desigual
Tudo é tão desigual
Ó, de um lado este carnaval
Do outro a fome total

[...] A novidade era a guerra
Entre o feliz poeta e o esfomeado
Estraçalhando uma sereia bonita
Despedaçando o sonho pra cada lado.

Na exposição das vicissitudes brasileiras, a arte do discurso poético descreve a realidade à luz de uma estética metafórica, onde os padrões sociais de beleza dialogam com um panorama de lutas pela difícil sobrevivência. Todas as formas de arte são depoimentos do espaço e do tempo em que existem. A arte, refletindo os extremos alcançados pela massificação, pelo consumismo, pela banalização da condição humana, denuncia a violência e torna-se um instrumento de reflexão contra a sociedade da exploração e do absurdo. Nos dizeres do crítico Mário Pedrosa (apud COHEN, 2004), a arte é o "exercício experimental da liberdade”. Renato Cohen, pensador-criador do teatro experimental, de performance, aponta para um procedimento particular da criação artística que revela na arte um diálogo com a realidade:

O artista é antes de mais nada um relator de seu tempo. Um relator privilegiado, que tem a condição de captar e transmitir aquilo que todos estão sentindo, mas não conseguem materializar em discurso ou obra. (...) Cabe ao artista captar uma série de informações que estão no ar e codificar essas informações, através da arte, em mensagem para o público. Essa codificação não implica limitação, mas, isto sim, retransformação através de outros canais. (COHEN, 2004, p. 87).

A antropofagia, inaugurada na Semana de Arte Moderna de 1922 por Tarsila do Amaral, Mario de Andrade, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Oswald de Andrade e Brecheret, consagrou uma definição étnica e cultural brasileira a partir da associação de distintos grupos indígenas, europeus e africanos. É sabido que somos uma mistura de etnias. Mas é só isso que é o brasileiro? Cabe aqui recorrermos mais uma vez a Darcy Ribeiro para uma explicação mais satisfatória. O autor fala de cinco Brasis: 1) o Brasil da cultura sertaneja do nordeste e do centro, baseada na produção do couro e do gado; 2) o Brasil da cultura crioula do litoral, baseada nos engenhos de açúcar; 3) o Brasil da cultura cabocla da Amazônia, baseada nos seringais e na pesca dos rios; 4) o Brasil caipira do sudeste e centro, baseado na economia do café e da subsistência e nascida dos bandeirantes; 5) o Brasil da cultura gaúcha das estâncias de gado e da cultura agrícola dos imigrantes no sul do país. (RIBEIRO, 2005) Estes cinco “Brasis” se construíram a partir da união das diferenças e da capacidade de integração entre etnias e culturas em meio à desigualdade social.

Nossa tipologia das classes sociais vê na cúpula dois corpos conflitantes, mas mutuamente complementares. O patronato de empresários, cujo poder vem da riqueza através da exploração econômica; e o patriciado, cujo mando decorre do desempenho de cargos, tal como o general, o deputado, o bispo, o líder sindical e tantíssimos outros. Naturalmente, cada patrício enriquecido quer ser patrão e cada patrão aspira às glórias de um mandato que lhe dê, além de riqueza, o poder de determinar o destino alheio. Nas últimas décadas surgiu e se expandiu um corpo estranho nessa cúpula. É oestamento gerencial das empresas estrangeiras, que passou a constituir o setor predominante das classes dominantes. Ele emprega os tecnocratas mais competentes e controla a mídia, conformando a opinião pública. Ele elege parlamentares e governantes. Ele manda, enfim, com desfaçatez cada vez mais desabrida. Abaixo dessa cúpula ficam as classes intermediárias, feitas de pequenos oficiais, profissionais liberais, policiais, professores, o baixo-clero e similares. Todos eles propensos a prestar homenagem às classes dominantes, procurando tirar disso alguma vantagem. [...] Seguem-se as classes subalternas, formadas por um bolsão da aristocracia operária, que têm empregos estáveis, sobretudo os trabalhadores especializados, e por outro bolsão que é formado por pequenos proprietários, arrendatários, gerentes de grandes propriedades rurais etc. Abaixo desses bolsões, formando a linha mais ampla do losango das classes sociais brasileiras, fica a grande massa das classes oprimidas dos chamados marginais, principalmente negros e mulatos, moradores das favelas e periferias da cidade. São os enxadeiros, os bóias-frias, os empregados na limpeza, as empregadas domésticas, as pequenas prostitutas, quase todos analfabetos e incapazes de organizar-se para reivindicar. Seu desígnio histórico é entrar no sistema, o que sendo impraticável, os situa na condição da classe intrinsecamente oprimida, cuja luta terá de ser a de romper com a estrutura de classes. Desfazer a sociedade para refazê-la. (RIBEIRO, 2005, p. 208-209)

Se o Brasil se livrou do escravismo, em troca, não perdeu de vista o oprimido. Esta constatação alude à proximidade entre paraíso e inferno e à sua equivalência num Brasil de onde ecoam, nas diversas formas da cultura popular, vozes, mitos e acordes de uma brasilidade riquíssima, retornada, paradoxalmente, à condição ibérico-medieval da miserabilidade e da ignorância. No Samba “O Gás Acabou”, de Luiz Américo e Braguinha, de 1970, a arte proclama seu perene protesto contra a opressão da desigualdade social diante da terrível e sedutora realidade brasileira:

O gás acabou, tem pouca comida,
Acabou meu dinheiro
Pagamento está longe,
Ainda não pintou o décimo terceiro
As pratinhas do Zé
Que ele juntou pra comprar a chuteira
Se o vale gorar
Já dá pra inteirar a despesa da feira

E aqui estou eu
Pedindo carona pra ir trabalhar
Pensando na nega mãe do meu moleque
Que nunca se queixa
E está sempre a cantar
Seja lá o que Deus quiser
Pobre é esse sofrimento
Recebe só vale no seu pagamento.

Nesse aspecto, penso que a globalização conseguiu o inusitado: tornou o mundo capitalista um lugar ainda mais difícil para se viver. O processo de globalização prometeu ao homem sua liberdade social através da universalização dos bens culturais da humanidade, numa perspectiva de democratização dos saberes como via de acesso à igualdade de oportunidades e condições para todos. Entretanto, a globalização não conseguiu libertar o homem de seus antigos fantasmas, pelo contrário, a despeito de tamanha vastidão de informações, o homem pós-moderno é uma criatura solitária e angustiada.

A ciência quer desvelar o mundo; não há limites para sua gana. Tudo se faz num processo de urgência, como se para além da globalização nada mais restasse, senão o fim da humanidade. A ânsia de substituir o homem pelo computador não só na produção, mas em todas as esferas da vida social demonstram que a tão proclamada redenção pelos saberes apontam sempre para a desqualificação do que já existe, numa velocidade vertiginosa que estabelece um confronto direto entre o imaginário e o real, entre o desenvolvimento técnico-científico e a própria existência humana. Nessa dança interminável de invenções, ohomem do povo” torna-se sujeito passivo de uma nova e estranha constelação de signos e conceituações: globalização, mundialização, interculturalismo, multiculturalismo, internet. De acordo com SILVEIRA (2001, p. 92),

Essa multiplicidade sígnica cria um simulacro da sociedade perfeita, onde a máquina realiza tudo, ou quase tudo, diminuindo os erros de produção e mantendo o controle absoluto de todas as fases do processo. Essa parafernália aumenta o sistema de controle, de dominação das elites sobre o homem do povo, uma vez que os grupos organizados - o político, o econômico e a mídia - são os agentes transformadores, com acesso privilegiado ao novo discurso. A vanguarda desenvolvimentista cria novos modelos mentais através da mídia. O homem do povo sabe apenas dizer/falar o nome das novas descobertas, porque a mídia se encarregou de propalá-las, mas desconhece o esquema comunicativo do discurso. A incorporação do discurso implica o acesso ao centro das decisões da nova ordem, nas diferentes modalidades de participação, o que não interessa aos grupos dominantes. O novo discurso é poder e poder não se partilha. Concentram-se riquezas, status e poder em centros de controle, como estratégia de ação. O homem do povo só sofre os reflexos da nova ordem global, ele consome o pacote pronto, tanto as novas tecnologias, como as influências das novas categorias epistemológicas. (...) Uma parte considerável do povo, no Brasil e nos países marcados pelo estigma da pobreza, são os excluídos. (...) legiões de miseráveis povoam as favelas dos grandes centros, crianças famintas e maltrapilhas perambulam pelas ruas e praças, num espetáculo de horror. O desemprego em escala, filho bastardo da nova ordem, se alastra como uma praga incontrolável. Como conseqüência, a violência toma conta das cidades, do campo e, nos grandes centros urbanos, a vida humana tem um valor meramente simbólico e, ao final de cada semana, os imls se enchem de cadáveres, como resultado da falência do estado na área da segurança pública. Enquanto isso, o poder público alardeia a criação de programas para a erradicação da miséria absoluta que nunca chegam.

Chama-se globalização, ou mundialização, o crescimento da interdependência de todos os povos e países da superfície terrestre. Alguns autores falam em “aldeia global”, pois parece que o planeta está ficando menor e todos se conhecem. Isto significaria que todos os indivíduos poderiam fazer parte de um mesmo mundo, de uma mesma realidade social, política, cultural e econômica. ORTIZ (2005, p. 16), nos define o conceito de globalização como sendo:

[...] a produção, distribuição e consumo de bens e serviços, organizados a partir de uma estratégia mundial e voltados para um mercado mundial. Ele corresponde a um nível e a uma complexidade da história econômica na qual as partes, antes internacionais, se fundem, agora, numa mesma síntese: o mercado mundial.

Um elemento essencial para análise das vicissitudes da realidade atual deve ser a permanente consciência do indissociável vínculo que há entre a lógica do capital e o poder político. Não se pode pretender compreender a sociedade brasileira, nem qualquer outra sociedade, sem a compreensão de que o Estado, tal como o mercado, é um elemento constitutivo da dinâmica do capital. Assim, é conveniente recordar que a origem dos atuais Estados nacionais encontra-se intimamente ligada à busca de autonomia do capital mercantil como meio e conseqüência da superação da crise do modo de produção feudal, que se deu no século XIV. Até então, os Estados eram territoriais, ou seja, se definiam pela extensão da soberania exercida sobre os súditos. O Estado-nação surge com o objetivo de circunscrever um território para a acumulação do capital, gerando instituições e formas culturais apropriadas, surgidas com apoio popular e em oposição à hierarquia feudal. A partir desta constatação, uma armadilha ao encontro da qual podem ir intelectuais postados à esquerda é a de ver na crise atual dos Estados um elemento associativo das identidades, aderindo ao multiculturalismo em detrimento das perspectivas identidárias.

As nefastas conseqüências do excludente processo da globalização, herdado dos últimos anos do século XX como resultado inequívoco de uma política econômica premeditada, buscaram liberar a economia de todo controle e submeter os Estados - e os indivíduos dentro deles - às forças assim liberadas. Nas palavras de Bourdieu (2001, p. 90), esse processo pode ser entendido como:

[...] a máscara justificadora de uma política que visa universalizar os interesses e a tradição particulares das potências econômicas e politicamente dominantes, sobretudo os Estados Unidos, e estender ao conjunto do mundo o modelo econômico e cultural mais favorável a essas potências, apresentando-o ao mesmo tempo como norma, um tem-que-ser e um fatalismo, destino universal, de modo a obter adesão ou, pelo menos resignação universais.

O desaparecimento gradativo, rítmico e renitente dos universos autônomos de produção cultural, exigido pela lógica estadosunidense de mundialização do capital, destitui os indivíduos de suas instâncias coletivas de pertencimento e identidade. A perspectiva da morte identidária é geradora de um sentimento de niilismo sobre o qual os indivíduos descobrem, em desespero, sua própria impotência e esquizofrenia social. Na exasperação da busca de si mesmo, de uma identidade, o indivíduo é sugado pelo processo de globalização da indústria cultural, metáfora midiática da sociedade contemporânea, descrita Lucien Sfez como: esquizofrênica, tautológica e autista. (SFEZ, 1990)

Como efeito colateral das crescentes desigualdades econômicas e humanas entre os países e no interior de cada um deles, disseminadas pela “máquina infernal” (BORDIEU, 1998) da globalização, como simulacro de sepulcro dos sentimentos humanos de empatia e alteridade, situam-se, os emblemáticos atos terroristas de 11 de setembro de 2001. As trágicas imagens das Torres Gêmeas expuseram ao mundo a vulnerabilidade dos Estados Unidos, arvorado em divindade do capitalismo e autoconsagrado, sob a égide do capital, em Estado dominante do planeta. Da exposição de sua vulnerabilidade, redundaram reações xenofóbicas de racismo e perseguição, as mais extravagantes, que perspectivaram evitar novos atentados e preservar a segurança do atual arranjo social do mundo ocidental, baseado na atitude economicamente predatória. Tais reações, todavia, poderiam ser muito bem substituídas – e com melhores resultados – por uma política que considerasse o direito do outro à dignidade humana, à igualdade de condições e, dentro dela, à especificidade e à diferença.

O multiculturalismo, apoiando-se sobre as novas tecnologias de comunicação do mundo globalizado, McDonaldizou as identidades culturais do mundo todo. Privadas do seu território, do local onde praticam os seus costumes, e finalmente, industrializadas, essas identidades culturais transgredidas perfazem uma homogeneização cultural estadosunidense voraz e violenta que afasta o indivíduo de suas raízes em nome de um relativismo axiológico. O multiculturalismo não levou ao internacionalismo, mas a uma nova forma de nacionalismo onde os EUA tendem a impor sua identidade sob a camuflagem de um discurso com vocação para a alteridade. A luz no final do túnel proclamada pela multiculturalidade não foi outra senão a de um trem vindo em alta velocidade e no sentido contrário.

A despeito do discurso oficial, o objetivo das políticas multiculturais nunca foi o de preservar identidade cultural alguma, mas o de proteger as formas de expansão do capital. Não se trata aqui de defender a soberania nacional, mas de preservar as diversas identidades dos diversos povos que existem no interior do Estado contra os crescentes influxos de filmes, músicas, comidas, vestes e outras “culturas” estrangeiras, em sua maior parte, americanizadas, colonizadoras e constituídas pela indústria cultural, com fins unicamente de mercado. As identidades culturais – como tudo o que é humano – são dinâmicas, estão em constante transformação e não podem existir imunes aos ventos e tempestades de outras culturas. Entretanto, é preciso remeter um olhar crítico para as sedutoras propostas de redenção proclamadas pelo mundo global. Só pode haver liberdade numa sociedade igualitária, onde não haja lugar para grandes desigualdades entre as pessoas. E não me parece ser esse o ideário das sociedades construídas a partir do modo de produção capitalista. Assim entendendo, e num rápido balanço destas últimas décadas, seria legítimo afirmar que a globalização estaria permitindo as mesmas oportunidades a todos? Ou estaria ela concedendo privilégios a pequenos grupos sociais economicamente abastados?

Os gurus da globalização a defendem como prolongamento do universal pela democratização da informação e da alteridade cultural. Para mim, há uma ruptura entre a globalização e a realização integral do ser humano, ligada à transcendência, ao domínio simbólico das utopias, ao “ir além” do que está posto. Da transcendência participam os estados alterados de consciência comumente experimentados no jogo de Capoeira, onde não há perda da consciência, mas uma iluminação da percepção que potencializa os sentimentos e a consciência do capoeirista. No mundo atual, existe uma aniquilação dos valores universais, onde os lugares para a transcendência tornam-se rarefeitos.

É estarrecedor perceber que a humanidade tem hoje as condições objetivas para erradicar da face da terra a fome e a miséria, mas que, entretanto, opta por reproduzir o sofrimento e a opressão. Não é fácil recusar aplausos à racionalidade inerente à sociedade tecnológica. Contudo, não se pode aplaudir a humilhação dos instintos e a revogação social da dignidade humana, da igualdade, da justiça e da felicidade para todos. Pensar o mundo de hoje é pensar o mundo da danação; um mundo do descartável, onde as próprias pessoas são vistas como peças substituíveis. A lógica do capital é metabólica: a forma com que se explora o trabalho hoje é diferente daquela do século XIX. Hoje ela é mais sutil. Se na Revolução Industrial os trabalhadores eram chicoteados pelo gerente de produção, hoje são eles mesmos que chicoteiam uns aos outros.

Ensejadas pelo processo de industrialização do campo, vultosas quantidades de brasileiros partem, em meados do século XX, de suas casas, culturas e tradições rumo à cidade. Esse processo de urbanização da vida social reúne em torno de si uma disparidade ímpar de identidades culturais oriundas dos mais longínquos recônditos do Brasil. São muitos “tches”, “uais” e “ôchentes” que se encontram de forma artificiosa, insegura e hesitante num lugar que não é seu, com uma gente que não é sua, por motivos que não são seus. De imediato, não há unidade possível entre as culturas dessas gentes. Aproveitando-se do fato, a indústria cultural oferece aos medos e esperanças de toda essa coletividade disforme um construto cultural condensado à força de valores mercadológicos que homogeneíza as inomogeneidades e propõem a liberdade dentro da nova prisão. No poema "Eu, etiqueta", Carlos Drummond de Andrade apresenta uma análise poética da influência do consumismo nos comportamentos cotidianos:

Em minha calça está grudado um nome

Que não é meu de batismo ou de cartório

Um nome... estranho.

Meu blusão traz lembrete de bebida

Que jamais pus na boca, nessa vida,

Em minha camiseta, a marca de cigarro

Que não fumo, até hoje não fumei.

Minhas meias falam de produtos

Que nunca experimentei

Mas são comunicados a meus pés.

Meu tênis é proclama colorido

De alguma coisa não provada

Por este provador de longa idade.

Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,

Minha gravata e cinto e escova e pente,

Meu copo, minha xícara,

Minha toalha de banho e sabonete,

Meu isso, meu aquilo.

Desde a cabeça ao bico dos sapatos,

São mensagens,

Letras falantes,

Gritos visuais,

Ordens de uso, abuso, reincidências.

Costume, hábito, permência,

Indispensabilidade,

E fazem de mim homem-anúncio itinerante,

Escravo da matéria anunciada.

Estou, estou na moda.

É duro andar na moda, ainda que a moda

Seja negar minha identidade [...]

Por me ostentar assim, tão orgulhoso

De ser não eu, mas artigo industrial,

Peço que meu nome retifiquem.

Já não me convém o título de homem.

Meu nome novo é Coisa.

Um dos princípios mais peculiares e menos aceitáveis da indústria cultural está justamente no fato de que ela se constrói/qualifica a partir da desconstrução/desqualificação da cultura popular. Nas sociedades industriais, a cultura popular é substituída por uma forma cultural degenerada que coisifica, banaliza, massifica e, finalmente, se orienta no sentido da descartabilidade não só das coisas, mas, especialmente, dos próprios seres humanos por ela coisificados. Esse processo encontra nos meios de comunicação de massas seu principal veículo de propagação. Embora jocosamente, a poesia de Drumond descreve com muita propriedade a subversão, na pessoa humana, de sua humanidade, fazendo-a coisa, banalizando sua identidade, que é transgredida, destruída e, finalmente, reinventada no interior da lógica mercadologizadora do capital.

Diante do absurdo mundo contemporâneo, a desbarbarização da humanidade é o pressuposto imediato de sua sobrevivência. A necessária resistência às falaciosas ofertas atuais do capital remete à urgência de se enfrentar o seu vasto emaranhado de conceitos pós-modernos, na perspectiva de que se possa atingir um satisfatório entendimento do mundo e dos homens dentro dele. Para tanto, faz-se necessário olhar este mundo com os olhos da história, buscando nos cantos esquecidos das páginas do passado os meios e elementos que o tornaram tal como ele se apresenta hoje. Mas, o que pode, afinal, a história dizer às sociedades contemporâneas, na medida em que elas são muito diferentes daquelas do passado? Para responder a esta pergunta, recorrerei a Hobsbawn (2000, p. 42-43), que faz a seguinte consideração:

[...] o objetivo de se traçar a evolução histórica da humanidade não é antever o que acontecerá no futuro, ainda que o conhecimento e o entendimento históricos sejam essenciais a todo aquele que deseja basear suas ações e projetos em algo melhor que a clarividência, a astrologia ou o franco voluntarismo. [...] A história não é uma escatologia secular, quer concebamos seu objetivo como um progresso universal interminável, como uma sociedade comunista ou o que seja. Isso são coisas que lemos nela, mas não podemos deduzir dela. O que ela pode fazer é descobrir os padrões e mecanismos de mudança histórica em geral, e mais particularmente das transformações das sociedades humanas durante os últimos séculos de mudança radicalmente aceleradas e abrangentes. Em lugar de previsões ou esperanças, é isso que é diretamente relevante para a sociedade contemporânea e suas perspectivas.

A Europa saiu da Primeira Grande Guerra em ruínas. Mais de dez milhões de pessoas morreram e cerca de trinta milhões ficaram feridas. A esses números assombrosos deve ser acrescentado um não menos assombroso custo econômico. Houve não só prejuízo pela falta de crescimento da produção, mas também endividamento dos países beligerantes. Na maior parte do mundo europeu, o potencial industrial ficou reduzido à metade.

Vale lembrar que os Estados Unidos, embalados pelo fordismo-taylorismo, aproveitaram-se da degeneração econômica da Europa para despontar, no período pós-guerra, como a mais poderosa potência econômica mundial. Todavia, os Estados europeus retomaram sua produção e as mercadorias norte-americanas não encontraram mais os mesmos mercados. O preço da produção tornou-se maciçamente maior que o da venda. A crise da superprodução teve como um dos seus grandes marcos o dia 29 de outubro de 1929, do crack da bolsa de valores de Nova York, que funcionava como termômetro econômico do mundo capitalista. As ações das grandes empresas caíram vertiginosamente, perdendo quase todo seu valor. Inúmeras indústrias e bancos faliram da noite para o dia. Quem não faliu reduziu ao máximo o ritmo de produção. Houve demissões em massa e a crise alcançou o mundo.

Os primeiros e longos anos que se seguiram à quebra da bolsa de valores de Nova York, levaram os Estados Unidos à adoção de severas medidas econômicas destinadas à superação da crise, que ficaram conhecidas por New Deal (novo acordo), inspiradas nas idéias do economista inglês John Keynes. O caminho escolhido foi controlar a produção para não estocar grandes quantidades de mercadorias. A excelência na produção, agora, é voltada a implantação no comportamento do consumidor de uma cultura do descartável. No âmbito do mercado, o consumidor tem a impressão de que expressa livre escolha sobre o que adquire e consome. Contudo, um poderoso sistema de sugestão atua para aumentar constantemente o apetite do consumidor para mercadorias diferentes, ditadas pela moda. De acordo com Adorno (2000, p. 81),

[...] se o indivíduo liquidado aceita realmente e com paixão a exterioridade consumada das convenções como critério, deve-se dizer que a época áurea do gosto irrompeu num momento em que não há mais gosto algum. As obras que sucumbem ao fetichismo e se transformam em bens de cultura sofrem, mediante este processo, alterações constitutivas. Tornam-se depravadas. O consumo, destituído de relação, faz com que se corrompam.

Para que este sistema de consumo tenha êxito, as pessoas precisam ser adaptadas às necessidades da indústria. A indústria cultural se nutre de seres humanos cooperativos, que se sintam livres e felizes dentro de suas prisões. Referindo-se à forma de organização do sistema de produção/consumo inerente à indústria Fromm (apud NEILL, 1978, p. XVIII-XIX), considera que:

O trabalhador individual torna-se apenas um parafuso em tal máquina. Nessa organização de produção o indivíduo é dirigido e manipulado. Na esfera do consumo, (na qual se tem a impressão de que o indivíduo expressa livre escolha), também ele é dirigido e manipulado. Se no consumo de comida, de roupas, de bebidas, de cigarros, de propagandas de rádio e televisão, um poderoso aparelho de sugestão trabalha com dois propósitos: aumentar constantemente o apetite individual para novas comodidades, e, segundo lugar, dirigir tal apetite aos canais mais proveitosos para a indústria. O homem é transformado no consumidor, no eterno pimpolho da mama, cujo único desejo é consumir, cada vez mais, “melhores” coisas. Nosso sistema econômico precisa criar homens que se adaptem às suas necessidades, homens que cooperem harmoniosamente, homens que desejem consumir cada vez mais. Nosso sistema precisa criar homens cujos gostos sejam padronizados, homens que possam ser influenciados com facilidade, homens cujas necessidades possam ser conhecidas com antecipação. Nosso sistema precisa de homens que se sintam livres e independentes, mas que, apesar disso, estejam dispostos a fazer o que deles se espera [...], que possam ser guiados sem o emprego da força.

A criação de uma sociedade de consumidores cujo consentimento é obtido para além de sua consciência, uma sociedade de seres humanos liderados sem líderes, de escravos felizes, vitimizados por uma manipulação dissimulada que preconiza o individualismo e a avareza em substituição ao sentimento de coletivismo, de pertencimento e partilha. É a sociedade do “quero tudo pra mim”, onde se o meu objetivo é “ter” eu “sou” tanto mais quanto mais “tiver”. Diante desta nova ética do convívio social o outro é percebido como um oponente a quem devo iludir. Não existe limite para o desejo de querer ter. O indivíduo é orientado para sentir inveja daqueles que têm mais e receio daqueles que têm menos, ao mesmo tempo em que se vê obrigado a reprimir estes sentimentos para poder revelar-se aos outros como um ser humano comedido, atencioso, racional, sincero e amável. A esta linha de reflexão, o psicanalista Wilhelm Reich (1972, p. XVII), fornece a seguinte referência:

Uma longa e árdua prática terapêutica com o caráter humano levou-me à conclusão de que, na avaliação das reações humanas é necessário considerar três níveis diferentes da estrutura biopsíquica. Estes níveis da estrutura do caráter são, conforme tive a oportunidade de expor na minha obra “Análise do Caráter”, depósitos, com funcionamento próprio, do desenvolvimento social. No nível superficial da personalidade, o homem médio é comedido, atencioso, compassível, responsável, consciencioso. Não haveria nenhuma tragédia social do animal humano se este nível superficial da personalidade estivesse em contato direto com o cerne natural profundo. Mas, infelizmente, não é esse o caso: o nível superficial da cooperação social não se encontra em contato com o cerne biológico profundo do indivíduo; ela se apóia num segundo nível de caráter intermediário, constituído por impulsos cruéis, sádicos, lascivos, sanguinários e invejosos. É o “inconsciente”, ou “reprimido” de Freud, isto é, o conjunto daquilo que se designa, na linguagem da economia sexual, por “impulsos secundários”.

Nos relatos de Reich (1972), esta infeliz estrutura psíquica do ser humano, transportada para a esfera social, vai corresponder a diversos agrupamentos políticos e ideológicos. As necessidades biológicas do ser humano, transgredidas pelas circunstâncias inerentes à “civilização autoritária da máquina” (REICH, 1972, p. XX), passam a fazer parte da estrutura de caráter do ser humano, reproduzindo a estrutura social sob a forma de ideologias. Com efeito, o cerne biológico do homem, onde se encontram os impulsos de cooperação e solidariedade, não encontra representação social desde o colapso traumático do modo de produção do “Comunismo Primitivo”, há coisa de dez mil anos. Nos ideais éticos e sociais do capitalismo, vemos representadas as características do nível superficial do caráter: autodomínio e tolerância. Com o fito de reprimir o “monstro” que habita a condição humana, representado pelos impulsos do nível intermediário da estrutura psíquica reichiana (inconsciente freudiano), o liberalismo enfatiza sua ética no combate à perversão do caráter humano. Finalmente, o fascismo, em oposição ao liberalismo e à cooperação voluntária, representa o nível intermediário dos impulsos secundários. De acordo com Reich (1972, p. XVIII),

É absolutamente impossível conseguir-se uma flexibilidade da estrutura do caráter do homem atual, através da penetração dessa camada mais profunda e tão promissora, sem primeiro eliminar-se a superfície social espúria e não-genuína. Mas, ao cair a máscara das boas-maneiras, o que primeiro surge não é a sociabilidade natural, mas sim o nível de caráter perverso-sádico.

A barbárie é a atitude fascista do ser humano oprimido, reprimido, subjugado, sedento de autoridade e, ao mesmo tempo, revoltado. Ela colhe das massas de seres humanos duramente reprimidos o comportamento grotesco e vil necessário à composição dos eventos históricos de atrocidades espetaculosas contra a vida, como foi o caso do holocausto nazista.

Está claro, hoje em dia, que o “fascismo” não é obra de um Hitler ou de um Mussolini, mas sim a expressão da estrutura irracional do homem da massa. [...] Estamos hoje mais próximos da compreensão do anseio orgástico das massas do que estávamos há dez anos, e já se generalizou a impressão de que o misticismo fascista é o anseio orgástico restringido pela inibição mística e pela inibição da sexualidade natural. (REICH, 1972, p. XXVII)

De conformidade, Zuin, Pucci e Ramos-de-Oliveira (2000, p. 51), observam que:

Também não é por acaso que Adorno, no texto Educação após Auschwitz, afirmou que Freud tinha muito mais razão do que supunha, quando disse a civilização produz a anticivilização e a reforça progressivamente. Os impulsos encontram-se longe da satisfação das suas necessidades, que são cotidianamente subordinadas aos anseios do consumo. Se os homens no capitalismo podem igualar-se entre si, pois as relações de mercado na maioria das vezes dispensam saber suas origens sociais, e se esse fato possui uma dimensão positiva se comparado com as rígidas estruturas sociais feudais, por outro lado, os indivíduos enquanto consumidores se afastam do controle de suas potencialidades, já que são subsumidas aos objetos produzidos pelos próprios homens e se transformam em mercadorias intercambiáveis.

A indústria cultural vai aspirar diretamente do inconsciente reprimido os impulsos necessários a uma venda aumentada. A ânsia por satisfação vai contentar-se, momentaneamente, com imagens ofuscantes, sons ensurdecedores, cenas de violência e pornografia. Esta “cultura do agressivo” tem excelentes predicados no mercado, porque faz a ponte de ligação entre o desejo reprimido e as falsas promessas de sua satisfação. Como consideram Loureiro e Della Fonte (2003, p. 58-59),

Adorno e Horkheimer (1985) argumentam que a indústria cultural é uma indústria de diversão. Ela estende a lógica do trabalho para o lazer e ocupa “os sentidos dos homens da saída da fábrica, à noitinha, até a chegada do relógio ponto na manhã seguinte...” (p.123) Assim, a diversão acaba se apresentando como o prolongamento do trabalho no capitalismo tardio. Quem quer escapar ao processo de trabalho mecanizado e massacrante, para se pôr em condições de enfrentá-lo, procura na diversão o encontro com a “felicidade”, sempre prometida, mas nunca alcançada.

Entrementes, o processo da competição social exaure as possibilidades das pessoas confiarem umas nas outras, enquanto que a cultura mercadológica, baseada na descartabilidade das coisas, vai incidir também sobre as relações pessoais. A existência de casamentos infelizes que duravam uma vida toda são drasticamente substituídos, num extremo oposto, pelo “ficar”. Ocorre uma “coisificação” das pessoas, que banaliza a relação e impossibilita definitivamente a entrega. A existência torna-se tão metamorfa que a necessidade do capital agora pode ser entendida como a necessidade de destruir coisas e pessoas “coisificadas”.

Com a robotização, a partir da década de 1980, o operário torna-se apenas um vigia da máquina, que incorpora, substitui e descarta o trabalho de dezenas de operários. Enquanto Taylor, no século XIX, preconizava a busca do trabalhador absolutamente ajustado, disciplinado, docilizado, de pouco intelecto, homens do tipo “bovino”: robustos e dóceis, ajustáveis, portanto, às necessidades de obediência, tão pretendidas pela Revolução Industrial, o mundo atual vai necessitar de um vigia da máquina altamente especializado e que possa conhecer o TODO do processo de produção. A produção em massa Fordista-Taylorista, é substituída pela produção para um mercado restrito. O Japão é prisioneiro deste tipo de produção. As mercadorias não estão disponíveis para pronta entrega. Não podem ser estocadas. Isto explica as grandes liquidações de início de ano. É o que se convencionou chamar de produção enxuta. Taishi Ono é o grande pensador japonês que teve esta idéia. Esse processo ficou conhecido como Toyotismo.

Quando se diz que a produção é enxuta queremos dizer que ela é enxuta, inclusive, de seres humanos. O menor número de trabalhadores possível. Não é mais necessária a figura do capataz de produção, carrasco, autoritário. Agora, a equipe de trabalhadores na produção é que controla a ausência ou o desempenho de seus colegas. Assim, mesmo doente, o trabalhador vai se esforçar para não se ausentar do serviço, pois, pode ser enxovalhado, humilhado, condenado, delatado e perseguido por seus próprios colegas de trabalho, sendo, finalmente, demitido. O capital inaugura um novo tempo na produção, onde a responsabilidade pelo controle dos trabalhadores, transferida aos próprios trabalhadores, não admite a possibilidade de solidariedade alguma entre colegas de trabalho. O controle deixou de se tão manifesto como no modelo Fordista, tornando-se anônimo – e, verdadeiramente, diabólico.

No Brasil, as empresas adotam o Toyotismo a partir da década de 1990. Por esses idos, instala-se na escola, o projeto de “Qualidade Total na Educação”. Assim, verifica-se uma lógica que transporta a mecânica do setor produtivo para o setor de serviços. Ora, a escola não produz parafusos, arruelas ou sensores óticos. Produz pessoas. Assim mesmo, os professores tornam-se vigias severos do trabalho uns dos outros. Se no século XIX era o gerente de produção a chicotear os trabalhadores na linha de montagem, hoje são os próprios trabalhadores a chicotearem-se uns aos outros.

Para competir com as fábricas japonesas, o modelo de produção norte-americano, ainda Fordista-Taylorista-Keynesianista, vai se instalar nos países do terceiro mundo – como é o caso do Brasil -, sob a forma de empresas multinacionais, onde se alimenta de mão-de-obra barata, o que diminui muito os custos da produção. Assim, fundam um “imperialismo industrial” que visa a exportação do seu lixo cultural para os países colonizados econômica e culturalmente.

A terceira Revolução Industrial, da Informática, do micro-chip, da internet, permite uma intensificação do processo de produção. É a chamada mecatrônica. Há uma precarização das condições de trabalho. Reduzem-se as funções e, em conseqüência, o número de trabalhadores necessários. O crescimento tecnológico, neste caso, implica num aumento do desemprego. E não ao contrário. As pessoas sobrevivem das formas mais precárias possíveis. No Brasil, os resquícios das relações escravistas na produção, somados à instalação das empresas multinacionais vão transformar-nos numa das sociedades mais desigualitárias do planeta. Sataniza-se a condição humana perante uma fragmentação dos empregos que perpetua a existência de um enorme abismo social, diferenciando brutalmente ricos e pobres.

O trabalho dignifica o homem. Nada mais falso. O pedreiro que constrói a mansão volta ao final do dia para a favela, onde não consegue ao menos colocar muro em frente de sua casa. O rebaixamento da força de trabalho (subemprego) subsidia a expansão capitalista e a existência de um mundo onde proliferam as empresas multinacionais e no qual o ser humano torna-se cada vez mais um objeto descartável. Entrementes,

A relevância do final trágico dos malfeitores serve como advertência do que acontece aos que infringem a norma social do “sempre igual”. Os indivíduos introjetam comportamentos que os identificam como cidadãos honestos, permitindo, num processo de catarse, a explicação da revolta contra os desonestos. Na realidade, no exercício da vontade individual já está presente a vicissitude que resta: o conformismo com o fato de que a própria debilidade é atenuada mediante a percepção de que certamente alguém se encontra em pior estado. [...] O fim do desespero geral condiciona-se à esperança de que, ao comprar determinada mercadoria, o indivíduo obtém, concomitantemente, os atributos propagandeados pelos comerciais de rádio, cinema e, principalmente, televisão. (ZUIN, PUCCI E RAMOS-DE-OLIVEIRA, 2000, p. 63).

As florestas de antenas parabólicas sobre os barracos urbanos que se amontoam nas favelas ilustram o mais poderoso narcótico nacional, enquanto a miséria econômica se reproduz viralmente a uma velocidade vertiginosa. Diante das atuais condições de se eliminar a fome da face da terra, a reprodução cotidiana da miséria e da barbárie continua sendo uma verdade paradoxal. Possuímos tecnologia suficiente para garantir a tão sonhada liberdade, porém optamos pela perene reprodução das desigualdades. A construção de uma sociedade justa e igualitária depende da capacidade humana em estranhar o mundo da desigualdade. Na sociedade atual há uma produção cultural, mas uma produção cultural de cunho notadamente mercadológico, que difunde uma produção simbólica voltada para a resignação e o conformismo, subjugando a possibilidade emancipatória, que se torna “travada”, porém não destruída.

Num mundo tecnologizado, que procura debilitar no indivíduo as condições materiais e espirituais de sua existência, bem como a qualidade de juízo sobre o mundo e sobre si mesmo, a cultura popular espontânea, autêntica, configura uma possibilidade concreta de resistência através do protesto do individual contra a generalidade, a coisificação e a descartabilidade dos seres humanos coisificados. Referindo-se às palavras de Adorno Zuin, Pucci e Ramos-de-Oliveira (2000, p. 65), relatam que: [...] “a cultura ‘é o perene protesto do particular frente à generalidade, na medida em que esta se mantém irreconciliada com o particular”.

Nos moldes ditados pela indústria é que são cunhadas as contemporâneas relações travadas pelos homens em sociedade. A técnica reduz o homem ao silêncio. O outro, esforçando-se em vão pelo contato, já se torna um fraco e a inteligência transforma-se em ingenuidade. Estabelecida, a debilidade intelectual aparece como prerrogativa da própria existência e o comprometimento com a técnica minimiza e faz cair, à força da gravidade, tudo o que é humano. Reformulando-se nos meandros da globalização, os encontros, portadores de vicissitudes cambiáveis, tornam-se efêmeros. Reificados, nestes processos, despem-se os homens de seus traços humanos mais profundos. “A tecnificação torna, entrementes, rudes os gestos, e com isso os homens.” (ADORNO, 1993, p. 33).

Os meios de comunicação de massas ocupam hoje o lugar que a “autoridade manifesta” (FROMM, apud NEILL, 1978, p. XVIII) ocupou nos séculos XVIII e XIX: é preponderantemente por seu intermédio que se realiza atualmente o relato doutrinário da cultura mercadológica. A televisão fornece as imagens e os sons que irão ficar na memória coletiva, assegurando a homogeneização do imaginário social. As decisões da coletividade encontram-se, assim, a mercê deste discurso. A rigor, o comprometimento do documento comunicativo com os poderes sociais dominantes, o transforma de documento em monumento.

O final da situação de desespero do ser social condiciona-se à esperança vã de que ao adquirir uma determinada mercadoria o indivíduo obtém juntamente os atributos propagandeados pelos cartazes nas ruas, pelos alt-doors, pelos comerciais de rádio, pelo cinema e, principalmente, pela televisão. A capacidade dos indivíduos exercerem reflexão crítica sobre a realidade rarifica-se, numa sociedade que promete sem jamais cumprir o que prometeu. Na família, nas escolas, nas salas de aula, nos meios de comunicação de massas, há, de fato, uma educação, mas uma educação bastante danificada. Aqueles que aprendem não se tornam sujeitos de seus atos, apenas adquirem a ilusão disso. Continuam alijados de cultura, com sua adesão viciada, compulsiva, a uma cultura industrializada que inibe a possibilidade da real emancipação.

4. CAPÍTULO 3

4.1. Identidades urbanizadas

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

[...] Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que disfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá. 

A "Canção do Exílio", escrita em 1843, em Coimbra, pelo poeta Gonçalves Dias, transformou-se em um ícone do sentimento de nacionalismo num país que acabara de conquistar sua independência política. Contudo, se o esclarecimento já não permite a defesa dos valores que rodeiam o conceito de “identidade nacional”, a perspectiva identidária deve lançar olhares, isto sim, rumo as possibilidades de se defender a vocação coletivista das tantas identidades comunitárias que afloram Brasil afora. Neste capítulo discorrerei sobre o fenômeno social da fragmentação das formas populares de sociabilidade cultural na realidade urbana, engendrado pelo processo de industrialização da vida social brasileira.

O estudo de qualquer componente do tecido urbano necessita, invariavelmente, de uma análise paralela do conjunto dos seres humanos envolvidos. A cidade não existe por geração espontânea. Ela é simultaneamente produto e (re)produtora de complexas e díspares dinâmicas sociais. A configuração urbana de novos espaços de sociabilidade cultural, em substituição aos antigos locais campesinos de encontro e pertencimento, se espelha no shopping center como o novo lugar específico onde são reformuladas as relações sociais de reconhecimento identidário.

A necessidade de transacionar a enorme massa de consumidores constituídos nas áreas urbanas a partir do êxodo rural induziu a criação de espaços culturais vocacionados para o consumo de formas culturais industrializadas. O processo de urbanização da vida social, além de destituir os indivíduos dos seus meios culturais particulares de coesão comunitária, utiliza o lugar vacante do encontro identidário para implantar o mais rápido e eficazmente possível o hábito do consumo da cultura de massas. Assim, não será de estranhar o impacto do consumismo explicitado nos alarmantes níveis de endividamento de certas franjas da população urbana e pela proliferação de instrumentos e espaços de consumo, encontro e identidade, como o shopping center, a rigor, a grande capela ritualística da indústria cultural.

Reedita-se, contemporaneamente, a antropofagia instaurada na primeira metade do século XX pela indústria cultural, onde seres humanos miserabilizados por uma civilidade oca e inconsistente devoram avidamente sua própria miséria nas formas culturais miseráveis que consomem, num procedimento comum a ricos e pobres. A acelerada industrialização das últimas décadas substitui a máquina pela informação, propagando costumes, idéias e juízos éticos e estéticos que sistematizam um novo modo de entender e lidar com uma realidade onde os procedimentos da globalização, inseridos na indústria cultural, veiculam informações inexoravelmente atreladas ao consumismo.

O processo de mundialização da informação pressupõe o inusitado: à luz das aparências, transcende os valores individualistas do capitalismo e irmana-se a princípios coletivistas, preconizados, historicamente, pelas idéias socialistas. A floresta de parabólicas que se erguem dentre os casebres e barracos pendurados nos morros favelados das grandes metrópoles sintomatizam a paradoxalidade de uma existência pós-moderna onde congregam o mesmo espaço miséria e informação.

Em que pese a dificuldade de se conceituar a pós-modernidade, segundo Loureiro e Della Fonte (2003, p. 15-16),

Tornou-se comum a afirmação de que vivemos em um contexto “pós-moderno” marcado por constantes e profundas transformações em várias facetas da vida humana. A caracterização clássica do conceito de pós-moderno é a de Loyotard (2000). Segundo esse autor, o advento do pós-moderno se relaciona a mudanças amplas ocorridas a partir do final dos anos 50: o saber muda o estatuto ao mesmo tempo em que as sociedades entram na “idade pós-industrial” e a cultura na idade “pós-moderna”. O termo pós-moderno designa o estado da cultura após as transformações que afetaram as regras dos jogos das ciências, da literatura e das artes a partir do século XIX. [...] Para se justificar, a ciência moderna recorre a narrativas baseadas em ideais iluministas, como a evolução do espírito, progresso, desenvolvimento da riqueza, emancipação do sujeito racional ou do trabalhador. Essas metanarrativas dispensam provas ou argumentações. Por isso, na análise loyotardiana, a ciência moderna cai na armadilha de usar o que condena: narrativas autolegitimadoras. [...] Lyotard considera pós-moderna a incredulidade em relação aos metarrelatos [...], do apelo da ciência a idéias de progresso e emancipação.

De acordo com Jameson (1985, p. 26) "a emergência da pós-modernidade está estritamente relacionada à emergência desta nova fase do capitalismo avançado, multinacional e de consumo”. O perfil pós-moderno do modo de produção capitalista caracteriza um período onde as mudanças tecnológicas são tão amplas e rápidas que transgridem a capacidade humana de pensá-las, senti-las e ponderar sobre elas. Prepondera na pós-modernidade uma ética narcisista, onde o mercado regula tudo e a todos. Os seres humanos perderam, principalmente nos grandes centros urbanos, o sentido social; eles não mais se socializam, ou se socializam de um modo minimizado e artificial. Não há lugar mais para os sentimentos de empatia e alteridade; os homens se tornaram indiferentes uns aos outros na marcha rumo a ao consumo. Para Loureiro e Della Fonte (2003, p. 66-67),

[...] a causa da dissolução das individualidades, nas últimas décadas, tem a ver com o alcance hegemônico da economia de mercado sobre as pessoas, num universo onde as crianças aparecem como usuários. [...] O menino diz que possuir um Pentium é seu sonho. Meses mais tarde, a mãe do garoto, que também é consumida pelo consumo e só pensa em ganhar mais dinheiro para possuir “coisas”, realizada, diz: “Compramos o Pentium. Agora, ele tem uma companhia. Sei que é uma máquina, mas não deixa de ser uma companhia. Ele tem momentos de alegria com seu micro mais do que comigo, que tenho tanta dificuldade de descobrir o meu instinto materno.” [...] A famosa frase “Penso, logo existo!”, de Descartes, poderia ser modificada para “Consumo, logo existo!”.

Com base num cotidiano fundamentado na novidade, as falsas promessas de prazeres absolutos, pronunciadas pelo fetiche das formas culturais industrializadas, se apresentam ao público no palco privilegiado do encontro virtual, que adquire status norteador da vida urbana, onde já perdura, por antecipação, um paradigma comportamental cimentado no consumismo. Como considera Adorno (1992, p. 51)

A experiência, a continuidade da consciência em que perdura o não presente e em que o exercício e a associação fundamentam uma tradição no indivíduo, fica substituída por um estado informativo pontual, desvalorizado, intercambiável e efêmero e que se deve destacar que ficará borrado no próximo instante por outras informações.

Dentro da perspectiva identidária urbana, desautoriza-se a memória. E a identidade, desmemoriada, se perde de si mesma. Como lembra Hobsbawn,

A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje cresceram num presente contínuo sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem [...].

A vida social urbana partilha espaços nos quais se industrializa uma série de vivências culturais de consumo sem que, todavia, tenham sido desenvolvidas formas reais de convívio e relacionamento. Os meios de comunicação de massas simulam encontros virtuais no lugar vacante das antigas conversas nas praças e calçadas, das visitas aos visinhos, das rodas de capoeira, das festas e danças populares onde se misturavam harmoniosamente o sagrado e o profano. Tudo isso praticamente não existe mais. Diante da televisão, o outro se torna intocável e o encontro se virtualiza. O hábito dos antigos “bate-papos” de fim de tarde metamorfoseou-se na marginalidade, na insegurança, no trânsito caótico, na poluição e nas verdadeiras colméias de prédios que, paradoxalmente, obstaculizam o encontro. A barulhenta sociedade industrial, onde prepondera o efêmero, orienta o ser humano para a indiferença em relação ao outro e uma existência baseada na artificialidade e na banalização do sentimento de empatia. Na urbe, com a ajuda da antena parabólica, o homem simples conheceu, com seus próprios olhos, as mazelas da sociedade em que vive. As novas feições urbanas não conseguiram demover o triste espetáculo das desigualdades sociais. Mas conseguiram transgredir o belo e a capacidade humana de senti-lo e de pensar sobre ele. No texto “Eu sei, mas não devia”, a escritora Marina Colasanti descreve o ser humano treinado para se defender da própria existência diante das armadilhas de um mundo baseado na revogação da condição humana.

Eu sei que a gente se acostuma, mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. [...]

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que se necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E, a saber, que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

[...] A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial do ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam da luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta. [...]

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

A crônica acima (COLASANTI, 1996) fornece espaço para uma reflexão sobre o divórcio entre o prazer e o cotidiano vivenciado pelo homem contemporâneo aislado de si mesmo e do outro através do rareamento do tempo necessário à aproximação e ao contato, cujas possibilidades acham-se minimizadas e substituídas por uma existência fictícia proclamada pela indústria cultural e propiciada pela virtualização da realidade oferecida, em especial, pela televisão.

A substituição da identidade nacional – responsável pela estabilidade do mundo capitalista moderno - por novas identidades, caracterizadas, dentre outras coisas, pela fragmentação do indivíduo na pós-modernidade, como resultado de mudanças estruturais e institucionais nas sociedades, torna o processo de identificação instável e provisório, fazendo da identidade algo inconstante. “O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente”. (HALL, 2003, p. 13) Este fenômeno pode ser identificado na composição e recomposição constantes das torcidas de futebol ou nas tribos urbanas que afirmam seu narcisismo coletivo na mesma medida em que excluem, negam e perseguem os “diferentes”. Estas concepções urbanas narcísicas carregam em seu interior a potencialização do retorno à barbárie. (ZUIN, PUCCI; RAMOS-DE-OLIVEIRA, 2000, p. 119)

Esse é um processo característico da pós-modernidade. Antes da modernidade, a identidade do indivíduo encontrava-se apoiada em estruturas estáveis, tal como a tradição e a comunidade. Na modernidade emerge uma concepção nacional da identidade. Já na pós-modernidade, ou modernidade tardia, a identidade sofre mudanças radicais. Para Hall (2003), não só as identidades individuais, mas, sobretudo as identidades nacionais e culturais passam por significativas transformações a partir dos deslocamentos engendrados pela globalização. Argumenta o autor que, antes de qualquer coisa, é necessário se considerar que:

[...] as identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação [...] Segue-se que a nação não é apenas uma entidade política, mas algo que produz sentidos – um sistema de representação cultural. As pessoas não são apenas idadãos/ãs legais de uma nação; elas participam da idéia da ação tal como representada em sua cultura nacional. (p. 49)

De fato, a identidade nacional constitui um discurso específico do modo de produção capitalista característico da modernidade que organiza as ações humanas e a própria percepção que o homem tem de si mesmo no interior da sociedade. No interior dos Estados-nações, as diversas identidades que nele sobrevivem, embora possam ser qualificadas como unificadas, são marcadas, notadamente, por diferenças que não podem ser unificadas sob um conceito homogêneo de etnia, nem de cultura; [...] “as nações modernas são, todas, híbridos culturais” (HALL, 2003, p. 63). Se na urbe moderna a identidade configura-se a partir de um constructo do sentimento de nacionalidade, em seu viés pós-moderno, a partir do esfacelamento da noção espaço-temporal propiciado pela globalização, as identidades culturais/nacionais estão fragmentadas.

[...] quanto mais a vida se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem ‘flutuar livremente’. Somos confrontados por uma gama de diferentes identidades (cada qual nos fazendo apelos, ou melhor, fazendo apelos a diferentes partes de nós) (HALL, 2003, p. 75).

A globalização contesta e desloca as identidades centradas numa cultura nacional, exercendo uma influência pluralizante sobre as identidades, tornando-as híbridas e provisórias, à mercê das diferentes formas e significações que assume a indústria cultural. Dito de outro modo, “as culturas híbridas constituem um dos diversos tipos de identidade distintivamente novos produzidos na era da modernidade tardia”. (Hall, 2003, p. 89) De acordo com as conclusões defendidas por Hall, na pós-modernidade, o esfacelamento nacional dialoga com esforços contrários que buscam recuperar a unidade identidária do estado, presentes ao redor do que o autor conceituou como “Tradição”. Hall cita como exemplos o ressurgimento do nacionalismo na Europa Oriental e o crescimento do fundamentalismo. Estes são efeitos bastante inesperados, afirma o autor, pois tanto o capitalismo quanto o marxismo apostavam, de diferentes modos, na ascensão de valores e identidades mais universais. (HALL, 2003) Essa questão encerra um paradoxo bastante interessante inerente às ambigüidades trazidas pelo avanço das medidas globalizantes, de onde emergem dúvidas e questionamentos, como o trazido por Manuel Castells:

Como combinar las nuevas tecnologías y la memoria colectiva, la ciencia universal y las culturas comunitarias, la pasión y la razón (...), porque la tendencia es hacia la distancia creciente entre globalización e identidad, entre la red y el yo. (CASTELLS, apud RINCÓN, 2001, p.11).

Rebocados pela indústria cultural, os procedimentos universalizantes da globalização – especialmente os midiáticos - tendem a agir como agentes de uniformização planetária, possibilitando a emergência não só daquelas identidades produzidas a partir das relações de consumo, mas também de novas identidades políticas e culturais. Os novos contornos identidários serão dados a esse novo homem pós-moderno, narcísico e individualista, conectado aos comportamentos e valores sociais veiculados pelos meios de comunicação de massas.

Esse processo de homogeneização cultural convive com uma suposta diversidade, fabricada pelos meios de comunicação. Ao contrário da idéia de diversidade, o multiculturalismo, nas palavras de Silva (2001), é ambíguo. Se por um lado, é um movimento legítimo de reivindicação dos grupos dominados por reconhecimento e representação de suas formas culturais idiossincráticas, por outro lado, é uma solução política para os problemas que esses grupos colocam à lógica contemporânea do capital. O autor defende que é exatamente por causa dessa ambigüidade que o multiculturalismo representa uma forma de luta política. As diferenças culturais não podem ser concebidas separadamente das relações sociais de poder e dominação. É preciso não esquecer que, como adverte Woodward (2000), as diferentes identidades têm causas e conseqüências materiais. “A identidade é marcada pela diferença, mas parece que algumas diferenças [...] são vistas como mais importantes do que outras, especialmente em lugares particulares e em momentos particulares”. (p.11)

A arena particular dos conflitos sociais não é outra senão a da relação conflituosa entre o trabalho e o capital. Contudo, a caixa de Pandora do racismo brasileiro, calcificado no peculiar trajeto histórico da estrutura econômica de nosso país, se abre no cerne dos debates atuais sobre a identidade étnica e cultural afro-descendente, que parece girar em falso no vórtice das ambigüidades tipicamente contemporâneas saudadas no embate entre o geral e o específico. Nesse sentido,

A homogeneidade cultural promovida pelo mercado global pode levar ao distanciamento da identidade relativamente à comunidade e à cultura local. De forma alternativa, pode levar a uma resistência que pode fortalecer e reafirmar algumas identidades nacionais e locais ou levar ao surgimento de novas posições de identidade. (Woodward , 2000, p. 21)

A obsessão diante da alegoria da identidade nacional, mito ideológico proclamado como antídoto metafórico à nossa memória cultural, encharcada em sangue e lágrimas ancestrais, não é senão a crônica histórica de um povo que atinge o limiar do esquecimento de si próprio ao ser transplantado, carnavalescamente, para o meio urbano. O dimensionamento desta reflexão aponta para a perspectiva de que, em meio às atuais medidas sócio-político-econômicas de controle e dominação, as identidades culturais dos grupos sociais urbanos são continuamente fabricadas, destruídas e refabricadas, de modo a satisfazer os interesses da indústria. Nesse admirável mundo novo o ex-escravo é o proletário, protagonista dos processos exuberantes de exploração sobre os quais se construiu, na pós-modernidade, a globalização e suas promessas fabulosas de emancipação humana pela via do conhecimento.

Culturalmente, a década de 1990 trouxe consigo uma geração desconfiada das ideologias e confiante no mercado e no indivíduo. A comunidade, como vivência coletiva, destituída de seu lugar de encontro e pertencimento se reencontra num certo “paraíso sem limites”, cujo personagem central é o jovem da “geração coca-cola”, habitante dos shopping-centers, sem rosto e sem identidade, fruto da pós-modernidade, da globalização e do multiculturalismo. É uma geração esquizofrênica que se depara com um não saber-se ou um saber-se temporário, devorada e asfixiada pela provisoriedade dos relativismos pós-modernos.

Distante cada vez mais do outro, preenchido pelo simulacro de relação propiciado pela televisão, a contemporaneidade afunda no prazer falacioso da saturação informativa e do consumo frenético dos produtos descartáveis da indústria cultural mundializada. Para este consumidor pós-moderno qualquer bugiganga já basta para saciar seus desejos. O que reluz num shopping-center adequa-se perfeitamente às suas necessidades. Obviamente, a mídia não aborda tal fenômeno. Todavia, no mundo das idéias muito se tem escrito sobre o tema. Os títulos de algumas obras emblematizam seu conteúdo. Em “A  Era do Vazio”, Gilles Lipovetsky focaliza o enfraquecimento dos costumes sociais no indivíduo contemporâneo diante do consumo massificado e a emergência de um modo de socialização e individualização inédito na história da humanidade (LIPOVETSKY, 1993).  Alain Finkielkraut, em “A Derrota do Pensamento”, fala de um homem cada vez menos sábio, no sentido clássico do termo, que navega à deriva, sem uma bússola e sem vínculos. Este homem, numa profunda crise de afirmação cultural, está regredido às cavernas (para além de Platão), sitiado pela barbárie que promove o infantilismo e a negação da identidade cultural do indivíduo (FINKIELKRAUT, 1988). "E a vida com o pensamento cede suavemente o lugar ao face-a-face terrível e irrisório do fantástico e do zumbi" (FINKIELKRAUT, 1988, p. 159). Referindo-se aos grandes eventos massificados, este pensador francês, faz o seguinte comentário:

[...] Seu espetáculo, como o dos super-stars, esvazia as cabeças para melhor ofuscá-las e não vincula nenhuma mensagem, mas traga todos em uma grandiosa profusão de som e luz. Acreditando não ceder à moda senão formalmente, esquece ou finge esquecer que essa moda visa precisamente ao aniquilamento do significado. Com a cultura, a religião e o rock-caridade, não é a juventude que é tocada pelos grandes discursos, é o próprio universo do discurso que é substituído pelo das vibrações e da dança" (Finkielkraut, 1988, p. 156).

O fenômeno do consumo na sociedade globalizada, com suas características unificadoras, está mundializado pela propagação dos valores norte-americanos, que controlam um dos principais agentes de divulgação da cultura – o cinema – na pós-modernidade. Se, "a fábrica, suja, feia, foi o templo moderno; o shopping, feérico em luzes e cores, é o altar pós-moderno" (SANTOS, 1997, p. 10). Nesses altares, as mercadorias são dispostas de forma a provocar nos consumidores o desejo de comprar, que adquire cada vez mais um caráter fetichista, indo além da utilidade. Sobre o surgimento do fetichismo consumista, ainda no século XIX, Padilha (2006, p. 55), faz a seguinte afirmação:

O fetichismo, revestimento dos objetos para a venda com valores ideológicos, era o novo fenômeno intrínseco às primeiras lojas de departamentos. As compras passaram a ser prazerosas para os ricos, que foram deixando de mandar seus empregados ou aguardar a presença dos mercadores em suas residências. O consumo de mercadorias começa, então, a significar um mergulho em fantasias e status social, na medida em que os objetos passaram a ser adquiridos não pelo seu valor-de-uso, mas pelo significado social de sua posse.

Para a autora, as origens do atual shopping center se encontra nos EUA do período pós-guerra. Frente ao tráfego intenso de automóveis, o arquiteto americano Jhon Graham Jr. Propôs um espaço fechado para compras e com estacionamento. O primeiro shopping center foi inaugurado em Seattle, em 1950, vindo a ser adotado, posteriormente, como modelo de centro comercial por todo o mundo. Contudo, esses novos espaços comerciais se expandiram consideravelmente a partir da década de 1980, segundo a autora, para atender agregar as necessidades de lazer e descanso. Especificamente no que se refere ao Brasil, o shopping center se relaciona, ainda, de acordo com Padilha, à segurança, sendo freqüentado, quase que exclusivamente por membros das classes alta e média (PADILHA, 2006).

O shopping center faz emergir novas identificações e códigos sob o signo do consumo associado ao lazer, que solidifica o sentido do “eu” e cria novas identidades. Esses lugares migram seu status de centros comerciais para fontes de felicidade e pertencimento. Estão excluídos desse local de pertencimento, obviamente, os pobres e miseráveis. A reconfiguração das identidades a partir dos espaços urbanos, obedece, historicamente, a uma produção social. Assim, segundo Padilha (2006, p. 36), [...] “se a organização social é regida e determinada por uma racionalidade capitalista, e o capitalismo é um sistema essencialmente de contradição e de distinção entre grupos sociais, o espaço urbano sobre o capitalismo reflete contradição e distinção”.

A cidade cumpre um papel de segregação, relacionado com o processo de empoderamento e des-empoderamento dos grupos e classes sociais em razão da sua localização no espaço urbano. Dito de outro modo, a estrutura urbana releva e reproduz as desigualdades no que concerne a distribuição diferenciada de seus espaços, segundo a identidade econômica de cada um. O componente nacional urbano de segregação e exclusão visualiza as favelas (lugares de ocupação informal dos terrenos e sem urbanização adequada) como espaços de segregação e controle da população, especificamente os descendentes dos escravos e os brancos pobres. Mais do que uma técnica, o urbanismo pode ser pensado como uma ideologia apoiada em um projeto de docilização da população a partir da negação de seu acesso a uma estrutura que garanta o conforto mínimo necessário à vida urbana (água, luz, gás, transporte coletivo). Como considera Lefebvre (1969), o espaço urbano “Pressupõe encontros, confrontos das diferenças, conhecimentos e reconhecimentos recíprocos (inclusive no confronto ideológico e político) dos modos de viver, dos ‘padrões’ que coexistem na cidade”.

O projeto capitalista relega o povo à periferia da urbe, num procedimento desagregante que exaure o sentido profundo de urbano e minimiza as possibilidades de reunião e encontro não só entre as diferenças, mas, ainda, entre os semelhantes. Sem a possibilidade do encontro com o outro, as identidades se fragilizam e se fragmentam, tornando-se fictícias e provisórias. Existe uma identidade sim, mas para além do outro, focalizada na capacidade de adquirir e consumir mercadorias. O meio urbano destitui-se, desse modo, do sentido de participação na vida da coletividade. Também o ato de morar passa a ser identificado como o consumo de um imóvel/mercadoria cujo valor fetichizado se acha maximizado em relação ao valor de uso.

Resgatar o sentido de urbanidade, de convergência, encontro e participação, a ágora grega, significa buscá-la onde ela resiste aos apelos do capital, onde ela ainda acontece de forma densa e onde as identidades culturais ocorrem plenamente. Esses locais, funcionando como ágoras sociais ilhadas no processo de urbanização/industrialização da vida social, representam a urbanidade em sua essência, conferindo paradigmas de uma utopia cultural urbana a ser construída.

5. CAPÍTULO 4

5.1. O mestiço identidário e as Capoeiras no Modernismo brasileiro

1. Literatura e brasilidades – entre o Romantismo e o Naturalismo

[...] Era um sonho dantesco... o tombadilho

Que das luzernas avermelha o brilho,

Em sangue a se banhar.

Tinir de ferros... estalar de açoite...

Legiões de homens negros como a noite,

Horrendos a dançar [...]

(Castro Alves, em ”O Navio Negreiro”)

Na discussão acerca da existência de uma identidade nacional brasileira, a questão étnica, de um modo ou de outro, sempre esteve presente.

Escravidão e domínio são outros termos para contar a história colonial. Homens, plantas e animais de três continentes, sob o império dos europeus, encontraram-se e, no seu convívio obrigatório, criaram uma nova geografia nessa porção do planeta. (SANTOS; SILVEIRA, 2005, p. 32)

O Brasil da segunda metade do século XIX agitou-se sob uma efervescência intelectual e política ensejada pela eclosão da independência, pelas reivindicações abolicionistas e, finalmente, pelas idéias republicanas, marcadamente positivistas, em meio aos ventos democratas e socialistas soprados do mundo europeu. Sob o peso do influxo grandioso das novas idéias de uma elite que articula discursivamente seus interesses, é documental o libelo proferido por José Bonifácio de Andrada e Silva à Assembléia Geral Constituinte:

[…] porque só então conservando eles a esperança de virem a ser um dia nossos iguais em direitos, e começando a gozar desde já da liberdade e nobreza de alma, que só o vício é capaz de roubar-nos, eles nos servirão com fidelidade e amor; de inimigos se tornarão nossos amigos e clientes. Sejamos, pois, justos e benéficos, senhores, e sentiremos dentro da alma que não há situação mais deliciosa que a de um senhor carinhoso e humano, que vive contente e sem medo no meio de seus escravos, como no meio de sua própria família, que admira e goza do fervor com que estes desgraçados adivinham seus desejos, e obedecem a seus mandos, observa com júbilo celestial como maridos e mulheres, filhos e netos, sãos e robustos, satisfeitos e risonhos, não só cultivam suas terras para enriquecê-lo, mas vêm voluntariamente oferecer-lhe até as premissas dos frutos de suas terrinhas, de sua caça e pesca, como a um Deus tutelar. (ANDRADA E SILVA, 2000, p. 32)

Embora fortemente marcado pela onipresença de uma época tendente à fusão entre racismo e classe social, há, no discurso idílico de José Bonifácio, a descrição de uma fantástica sociedade brasileira para o século XIX, sem conflitos de classes e onde perduraria a cordialidade e o paternalismo. Pela contramão desse discurso, no bojo denunciativo da escravidão como signo de opressão e crueldade, emergirá dos romances naturalistas, como os de Aluízio Azevedo, uma crueza inaudita, interessada em relatar a sociedade “tal como ela é”, despida de fantasias ou idealizações românticas.

A visão identidária produzida pelo Romantismo brasileiro excluía o negro e idealizava a figura do índio. Naquele período, antes, portanto, da abolição da escravatura, o negro esteve completamente ausente das formulações teóricas da identidade brasileira. Somente com a abolição é que o negro emerge como personagem importante na miscigenação a partir do cruzamento de três etnias: o branco europeu, o negro africano e o índio autóctone.

O Romantismo exaltou o indígena, na figura mítica do “bom selvagem”, heroicizado não só nas páginas de nossos escritores, mas, ainda, na pintura, no teatro e na música. Carlos Gomes emblematiza a brasilidade indianista em sua ópera “O Guarani”, de 1870, inspirada no romance homônimo de José de Alencar. Posteriormente, a tela “O último Tamoio”, pintada em 1883 por Rodolfo Amoedo, onde se vê o corpo sem vida de um índio Tamoio devolvido à praia e recolhido por um padre, pode bem representar a revogação da imagem romântica do índio como protagonista da identidade nacional brasileira.

Ao final do século XIX, com a ascensão social e econômica da burguesia, o Realismo e o Naturalismo suplantaram o Romantismo. Trazendo as marcas do avanço das ciências, a intelectualidade desse período se rebelou contra a pieguice, o exagero e o nacionalismo ufanista, reivindicando uma postura crítica diante da “realidade”. O marco desse movimento é o ano de 1881, quando Machado de Assis lança “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, e Aluísio Azevedo publica “O Mulato”, inaugurando, entre nós, respectivamente, o Realismo e o Naturalismo. O retorno ao passado é abandonado e a obra de arte é invadida pelo meio, pelo momento e pela raça.

A especificidade da narrativa naturalista é marcada pela análise social a partir dos oprimidos. A influência de Darwin se faz presente na máxima naturalista segundo a qual o homem é um animal, deixando-se levar pelos instintos naturais, que não podem ser reprimidos ou transgredidos pela moral da classe dominante. Outro pensador que, requisitado do século anterior, muito inflectiu sobre as idéias correntes em fins do século XIX foi Rosseau. Marilena Chauí, referindo-se à “vida e obra de Rosseau”, na apresentação de “O Contrato Social”, em “Os Pensadores”, faz a seguinte referência:

A crítica às sociedades civilizadas e a idealização do homem primitivo, manifestadas a todo passo nas obras de Rosseau, foram vistas por muitos intérpretes como expressão de um desejo de retorno à animalidade. [...] Tal interpretação é sem dúvida incorreta [...]. O homem para Rosseau, não se regenera pela destruição da sociedade e retorno á vida no meio das florestas. Embora privado, no estado social, de muitas vantagens da Natureza, ele adquire outras: capacidade de desenvolver-se muito rapidamente, ampliação dos horizontes intelectuais, enobrecimento do sentimento e elevação total da alma. Se os abusos do estado social civilizado não o colocassem abaixo da vida primitiva, o homem deveria bendizer sem cessar o instante feliz que o arrancou para sempre da animalidade e fez de um ser estúpido e limitado uma criatura inteligente [...] o retorno á pureza de consciência natural é o dever fundamental de todo homem, segundo Rosseau. Com isso, ele retoma, de certa forma, o “conhecer-te a ti mesmo” socrático. Em Sócrates [...] o “conhecer-te a ti mesmo” [...] é tarefa intelectual à cargo da razão, e Rosseau, ao contrário, [...] aponta o sentimento, essa “outra faculdade infinitamente mais sublime”, como o verdadeiro caminho para a penetração na essência das interioridade. (CHAUÍ, apud ROSSEAU, 2000, p. 13-14)

Ousados temas sexuais, respondendo aos apelos dos instintos humanos, vêm à cena literária em obras como “A Carne”, de 1888, escrita por Júlio Ribeiro, que inserem a afro-descendência na atmosfera das discussões. O livro narra o ardente trajeto de um romance singular entre a jovem Lenita e Manuel, marcado por encontros e desencontros, prazer e violência, desejo e sadismo, batalha entre mente e carne. No final trágico, Lenita, grávida de três meses, sentindo-se traída por Manuel, resolve abandoná-lo. Manuel, não suportando o abandono, suicida-se. Eis um trecho do livro:

Lenita hauriu a sorvos largos esse ambiente embriagador, deixou-se vencer dos amavios da floresta. […] E aspirava com delícias, por entre os perfumes da mata, o odor de si própria, o cheiro bom de mulher moça que se exalava do busto. […] Lenita contemplava-se com amor próprio satisfeito, louca de sua carne. (RIBEIRO, s.d., p. 14)

Os romances naturalistas, no contrapelo do escárnio de uma sociedade positivista e sisuda, fornecem imagens fiéis dos costumes vigentes no Brasil que abolia a escravidão e que, tendo dormindo monarquista, acordou republicano.

2. Branqueamento da brasilidade nos esboços da modernidade

No Brasil do início do século XX, diante da necessidade de pensar os rumos da República, a intelectualidade vacila entre a construção de um Brasil moderno, inserido no novo mundo urbano e industrial, e a tradição conservadora dos valores da natureza e do campo, pelo repúdio ao industrialismo e à vida urbana e liberal. A resposta encontrada foi a construção de um novo conceito de nação para além do índio nostálgico que pudesse rejeitar o “passadismo” e buscar na cidade um novo sentido de brasilidade pela incorporação das novas tecnologias industriais como via de superação do atraso e garantia de inserção do país na modernidade. Híbrido do branco pobre com o negro despejado da senzala na urbe em 13 de maio de 1888, o mestiço poderia ser esse idealizado “homem brasileiro”. Todavia, para a intelectualidade da época, a mestiçagem trazia alguns inconvenientes.

O mestiço, enquanto produto do cruzamento entre raças desiguais, encerra, para os autores da época, os defeitos e taras transmitidos pela herança biológica. A apatia, a imprevidência, o desequilíbrio moral, e intelectual, a inconsistência, seriam dessa forma qualidades naturais do elemento brasileiro. A mestiçagem simbólica traduz, assim, a realidade inferiorizada do elemento mestiço concreto. Dentro dessa perspectiva a miscigenação moral, intelectual e racial do povo brasileiro só pode existir enquanto possibilidade. O ideal nacional é na verdade uma utopia a ser realizada no futuro, ou seja, no processo de branqueamento da sociedade brasileira. É na cadeia da evolução social que poderão ser eliminados os estigmas das ‘raças inferiores’, o que politicamente coloca a construção de um Estado nacional como meta e não como realidade presente (Ortiz,1994:21).

Negros e mestiços eram vistos como atrasados em relação ao branco europeu. A perceptiva identidária nacional, estabelecida a partir da herança biológica, dava pouca margem a mudanças. O grande desafio posto à intelectualidade brasileira ao final do século XIX e início do século XX era o de como elaborar uma identidade nacional num país marcado pela mestiçagem, visto como negativa. A tese do branqueamento da população foi a solução encontrada. Nas palavras de Skidmore,

[...] baseava-se na presunção da superioridade branca, às vezes, pelo uso dos eufemismos raças 'mais adiantadas' e 'menos adiantadas' e pelo fato de ficar em aberto a questão de ser a inferioridade inata. À suposição inicial, juntavam-se mais duas. Primeiro - a população negra diminuía progressivamente em relação à branca por motivos que incluíam a suposta taxa de natalidade mais baixa, a maior incidência de doenças e a desorganização social. Segundo - a miscigenação produzia 'naturalmente' uma população mais clara, em parte porque o gene branco era mais forte e em parte porque as pessoas procurassem parceiros mais claros do que elas (SKIDMORE, 1976, p. 81).

Mais adiante, o autor (SKIDMORE, 1976, p. 192), referindo-se à consolidação do ideal de branqueamento nacional, faz a seguinte citação:

Os anos de 20 e 30 no Brasil viram a consolidação do ideal de branqueamento e sua aceitação implícita pelos formuladores da doutrina e pelos críticos sociais. As dúvidas quanto à raça, expressas pela elite em anos passados, haviam perdido, entrementes, qualquer acento de convicção. Curiosamente, os escritores não se arriscaram mais a afirmar sem subterfúgios que a raça não fazia diferença e que se podia deixar de lado a questão. Diziam, ao invés, que o Brasil branqueava a olhos vistos – e que, em conseqüência, o problema caminhava para uma solução.

Essa ideologia branqueadora, na qual encontram-se tatuados os signos e as marcas do racismo, foi disseminada na mentalidade nacional e compartilhada, inclusive, por intelectuais como Monteiro Lobato:

Pois cá comigo - disse Emília- só aturo estas histórias como estudos da ignorância e burrice do povo. Prazer não sinto nenhum. Não são engraçadas, não têm humorismo. Parecem-me muito grosseiras e até bárbaras - coisa mesmo de negra beiçuda, como Tia Nastácia. Não gosto, não gosto, e não gosto! (LOBATO, 1957, p. 30)

Até a década de 1930 perdura a convicção nacional na idéia do branqueamento quando a mestiçagem ganha ares de positividade. Gilberto Freyre, em “Casa Grande e Senzala”, escrita em 1933, proclama a mestiçagem como virtude, celebrada como símbolo nacional a partir do carnaval, do Samba, do Futebol, da Feijoada, da figura do malandro e da Capoeira. Segundo a teoria de Freyre, o mestiço seria motivo de uma “superioridade racial” do brasileiro, pois congregava os pontos fortes de cada “raça”. Esse conceito de brasilidade perdura até hoje.

O surto de industrialização das primeiras décadas do século XX, associado a uma fecunda atividade intelectual, consagram, finalmente, o mestiço como representante nacional por excelência. Segundo Ortiz, a partir da obra de Gilberto Freyre, "Casa Grande e Senzala", ocorre um deslocamento do conceito de “raça” para o conceito de cultura. Referindo-se ao pensamento de Gilberto Freire, Ortiz (1994, p.41), considera que:

Gilberto Freyre transforma a negatividade do mestiço em positividade, o que permite completar definitivamente os contornos de uma identidade que há muito vinha sendo desenhada. Só que as condições sociais eram agora diferentes, a sociedade brasileira já não mais se encontrava no num período de transição, os rumos do desenvolvimento eram claros e até um novo Estado procurava orientar essas mudanças. O mito das três raças torna-se então plausível e pode se atualizar como ritual. A ideologia da mestiçagem, que estava aprisionada nas ambigüidades das teorias racistas, ao serem reelaboradas pôde difundir-se socialmente e se tornar senso comum, ritualmente celebrado nas relações do cotidiano, ou nos grandes eventos como carnaval e o futebol. O que era mestiço torna-se nacional.

A partir de 1930, quando Getúlio Vargas assume a presidência da república, no território anunciado pelo Modernismo, a cultura passa a ser vista como um importante lócus de interferência do Estado no sentido da consagração do mestiço como homem brasileiro idealizado. Entre nós, o modernismo aconteceu de forma híbrida, distinta dos países europeus, para os quais os investimentos nas questões específicas da arte dispensavam discussões acerca da identidade nacional.

Para o Brasil modernista, recuperar no passado as raízes das identidades brasileiras, os nossos mitos esquecidos, significou construir um repertório desse universo de diálogos entre as tantas identidades da gente brasileira; diálogos entre o específico e o geral. Essa preocupação foi recorrente no Brasil em face da necessidade de se edificar uma consciência nacional que, afastando o risco da assimilação cultural, fornecesse ao povo brasileiro um sentimento de identidade, tido como imprescindível ao processo de auto-afirmação nacional. Todavia, como bem lembra Peter Fry (1982), é preciso estar atento ao fato de que “a conversão de símbolos étnicos em símbolos nacionais não apenas oculta uma situação de dominação racial, mas torna muito mais difícil a tarefa de denunciá-la" (p. 53). A mestiçagem e a ideologia do “não-racismo” promovem um “racismo à brasileira” que oculta desigualdades ao invés de explicitá-las. A miscigenação tornou-se o tema central para as elites intelectuais porque fornecia filtro à leitura da problemática nacional pelo viés da raça. Neste cenário, o papel da identidade cultural afro-descendente se ressignifica como estratégico, segundo uma perspectiva social de entendimento, enfrentamento e superação das desigualdades econômicas em simbiose dialética com as circunstâncias opressoras do negro na configuração da classe proletária brasileira.

3. Meandros culturais da transformação do mestiço em malandro

O modernismo brasileiro pretendeu não só cortar as ligações entre as raízes culturais brasileiras e a Europa, como também pretendeu destruir, no homem brasileiro idealizado, o ideal de homem europeu. Nas palavras de Zilá Bernd, essa busca por uma identidade brasileira se revestir de duas funções:

[...] há a função de dessacralização, de desmontagem das engrenagens de um sistema dado, de pôr a nu os mecanismos escondidos, de desmistificar. Há também uma função de sacralização, de união da comunidade em torno de seus mitos, de suas crenças, de seu imaginário, ou de sua ideologia. (BERND, 1992, p. 17).

O caráter do brasileiro se resumiria em não ter caráter algum. Ao recusar o caráter europeu, Mário de Andrade apresenta "Macunaíma, o herói sem nenhum caráter”, escrito em 1926 e publicado em 1928. “Macunaíma” significa "grande malvado" e assim se comporta o personagem na história de Andrade: é ingênuo e ao mesmo tempo mentiroso, corajoso e também covarde, sempre camuflando sua maldade com uma piscadinha de olhos; um típico “malandro”. O mestiço transformado na figura mítica do malandro, respondendo aos apelos das convulsões sócio-político-econômicas e culturais vigorantes na época, se espraia aligeiradamente pelo imaginário popular. Como cita Chauí (1993, p. 21),

Através da ideologia são montados um imaginário e uma lógica da identificação social com a função precisa de escamotear o conflito, dissimular a dominação e ocultar a presença do particular, enquanto particular, dando-lhe a aparência de universal (Chauí,1993, p.21).

Desse modo, a narrativa ideológica objetiva:

[...] manter submissos os grupos, em sua luta contra a ordem social, como para os grupos dominantes, na sua defesa do status quo. Semelhantemente ao equipamento militar, ou à tecnologia tática, a ideologia pode ser uma arma para a vitória, mas não para um vencedor específico, pois ela é, em princípio, acessível a qualquer combatente que tenha os recursos e habilidades de adquiri-la e empregá-la. (Thompson,1995, p.73).

Assim entendida, a ideologia, de um modo mais amplo, significa sentido a serviço do poder (Thompson, 1995). Neste sentido, a malandragem, nas palavras de Da Matta (1997, p.269), está

[...] socialmente aprovada e vista entre nós como esperteza e vivacidade, ao ponto mais pesado do gesto francamente honesto. Mas, a figura do malandro também é sinônimo de irreverência, preguiça, indivíduo que canta e samba, vida de sombra e água fresca, picardia e disposição para o escárnio, etc. É certo, todavia, que as marcas da malandragem levam-nos, inevitavelmente, para uma posição dos agentes sociais marcada pela quebra com as normas vigentes na sociedade, por não integração ao universo formal ditado por princípios hierarquizantes.

O malandro, por isso mesmo, rompe com os códigos sociais, na medida em que adota um comportamento estranho aos modelos de uma totalidade social materializada na forma de regras específicas de convívio obedientes unilateralmente às leis ditadas pela indústria brasileira, em construção. Sua indolência aproxima-o de uma legião de “heróis sem caráter”, tais como o Vadinho, descrito por Jorge Amado em “Dona Flor e Seus Dois Maridos”. Na malandragem está presente a subversão que rompe com o sistema produtivo e, então,

[...] o projeto ideológico não pode permitir a continuidade da passagem da experiência histórica dos grupos dominados, a não ser mitificando-a e mascarando-a de tal forma que, ao mirar-se no espelho de seu passado, ela não mais se reconheça. (PIMENTEL, 1989, p.72).

O estereótipo do típico malandro brasileiro é mestiço e habita os guetos. Veste chapéu panamá branco, terno branco e sapatos de cores branca e preta. Usa camisa branca com gravata vermelha ou então camiseta listrada horizontalmente. Tráz a inseparável navalha no bolso do paletó. É boêmio, vive de pequenos golpes, aprecia rodas de Samba e Capoeira. Não acredita no trabalho como um modo de vida, mas é sensível, justo e sentimental, além de galante, cavalheiro e um grande amante. Na Umbanda está personificado na figura de “Seu Zé Pilintra”. Eis um ponto cantado de Zé Pilintra extraído do domínio popular:

Mulher, mulher

Não tenha medo do seu marido
Se ele é bom na faca
Eu sou no facão
Se ele e bom na reza
Eu na oração
Se ele diz que sim
Eu digo que não
Eu sou Zé Pelintra
Ele e Lampião

Não existe, obviamente, uma "teoria da malandragem" que forneça elementos para a devassa dos horizontes ideologicamente negricidas que ensejaram o surgimento da figura típica do malandro. Entretanto, parece que surge a partir da necessidade de se ter um certo “jogo de cintura” diante das agruras sociais destinadas ao descendente de escravos que uma falsa lógica do branco cobiçoso considerou inferior e excluiu. A postura, atitude e cotidiano do malandro é retratado no samba "Lenço no Pescoço", de Wilson Batista, gravado POR Silvio Caldas, em 1933, um verdadeiro "hino da malandragem brasileira": questões específicas da arte dispensavam discussões acerca da identidade nacional.

Meu chapéu do lado

Tamanco arrastando

Lenço no pescoço

Navalha no bolso

Eu passo gingando

Provoco e desafio

Eu tenho orgulho

Em ser tão vadio

Sei que eles falam

Deste meu proceder

Eu vejo quem trabalha

Andar no miserê

Eu sou vadio

Porque tive inclinação

Eu me lembro, era criança

Tirava samba-canção.

De norte a sul do país, o malandro é o típico herói brasileiro. Em “O Auto da Compadecida” Ariano Suassuna inclui dois exemplos da malandragem típicamente nacional no cenário nordestino: Pedro Malasarte e João Grilo. No imaginário popular, do sagrado ao profano, do Samba à Capoeira e à Umbanda, a malandragem existe como uma ferramenta de justiça diante das forças opressoras da sociedade. Diante das agruras impostas pela lógica do capital, o mestiço, transmutado em malandro, sobrevive manipulando pessoas, enganando autoridades e driblando leis. Em dissertação acerca da Capoeira praticada no Rio de Janeiro de 1890 a 1937, Antonio Pires afirma que “as relações de conflito e solidariedade na capoeiragem estiveram permanentemente relacionadas com os conflitos mais gerais da sociedade”. (PIRES, 1993, p. 143) questões específicas da arte dispensavam discussões acerca da identidade nacional.

No dia 10 de novembro de 1937, o presidente Getúlio Vargas anunciava o Estado Novo, em cadeia de rádio. Alegando a existência de um plano comunista para a tomada do poder (Plano Cohen), Vargas fechou o Congresso Nacional e impôs ao país uma nova Constituição, que ficaria conhecida como "Polaca", em alusão à Constituição da Polônia, de tendência fascista, na qual buscou inspiração. Com Vargas inicia-se a estruturação do parque industrial brasileiro. Nesse período, fecharam-se as portas para os malandros. Os interesses hegemônicos do capital, aliados ao fascismo político do momento, sentiam a necessidade de combater a “malandragem” e estabelecer uma sociedade disciplinada, que atendesse as expectativas da industrialização emergente. questões específicas da arte dispensavam discussões acerca da identidade nacional.

O Samba foi um desses lugares onde se travou o combate à malandragem. Impressiona o número de letras sob a forma de muros de lamentação de mulheres insatisfeitas com seus parceiros aproveitadores. Compostas, normalmente, por homens e cantadas por mulheres, esses sambas retrataram as emblemáticas figuras masculinas que se dedicaram à vadiagem. No samba-choro “Não Admito”, de Ciro de Souza e Augusto Garcez, lançado em 1940, Aurora Miranda canta a história de uma mulher indignada com o indolente que tem como companheiro:

Não, não admito

Eu digo e repito

Que não admito

Que você tenha coragem

De usar malandragem

Pra meu dinheiro tomar

 

[...] Você quer levar a vida

Tocando viola de papo pro ar

E eu me mato no trabalho

Pra você gozar

A idéia do mestiço associada sugestivamente à imagem do malandro, como uma das identidades nacionais, aparece não só no sambista, mas, ainda, no capoeirista.  Mathias Assunção, referindo-se à Capoeira como arte, aponta que devido à questões específicas da arte dispensavam discussões acerca da identidade nacional.

[...] intensa discussão, entre brasileiros, sobre o caráter e a raça nacional, não é surpreendente que os dois textos fundadores dos estudos sobre capoeira, nos 1800s - Plácido de Abreu (1886) e Mello Moraes Filho (1888) - "associem a arte com o mestiço". (ASSUNÇÃO, 2005, p.14).  

Luis Edmundo (1878-1961), em “O Rio de Janeiro do tempo dos Vice-Reis”, também faz sua apologia do mestiço: 

 O capoeira, sem ter do negro a compleição atlética, ou sequer a fisionomia rígida e sadia do fidalgo português, é, no entanto, um ser que toda gente teme e a própria justiça, por cautela, respeita.  Encarna o espírito da aventura, da malandragem, da fraude; é sereno e arrojado...  Toda sua força reside nesta destreza elástica que assombra e adiante da qual o tardo europeu vacila e, atônito, o africano se transtroca.

Da malandragem e da flexibilidade do mestiço emerge a idéia da mestiçagem não como a afirmação de uma identidade cultural espelhada num tipo nacional único, dotado de caráter próprio, mas como uma identidade brasileira contida na multiplicidade de identidades brasileiras. O mesmo pode ser dito hoje sobre a Capoeira: não existe uma única Capoeira, mas uma pluralidade de linhas e estilos. Isso se dá em função de interesses em relação ao mercado consumidor de cultura que cresce cotidianamente a uma velocidade vertiginosa, nesse concorrido “shopping cultural da pos-modernidade”. A Capoeira Angola também não está livre dessa influência, porém, ao buscar constantemente diálogos entre o sagrado e o profano nos vínculos com a ancestralidade africana e afro-brasileira emergidas das senzalas, dos quilombos, da malandragem, estabelece a possibilidade de superação do pesado fardo de procedimentos seculares de negricídio.

Também o termo "sincretismo" tem servido, muitas vezes, para designar uma mistura identidária entre as crenças, onde os diferentes se diluem para camuflar a realidade perversa na qual se deu essa mistura como única possibilidade de sobrevivência da religiosidade do escravo. Sob os auspícios da globalização, o multiculturalismo, em nome de um suposto contrato igualitário entre as diferenças culturas mundiais, realiza a assimilação e mundialização não apenas das especificidades culturais, mas de sua forma transgredida pela indústria de entretenimento, ou indústria cultural. Essas formas culturais industrializadas vão ser, depois, globalizadas, num procedimento que proclama como iguais ricos e miseráveis na sociedade da informação a serviço do capital. Como considera Melo (2001, p. 82),

[...] a globalização tem potencializado, no cenário mundial, a projeção da cultura brasileira. A indústria de entretenimento, cujas forças motrizes são a diversidade, a polivalência e o multiculturalismo, vem assegurando condições para a inserção das culturas nacionais ou regionais no contrafluxo simbólico gerado pela aldeia global.

 

Para o Brasil da década de 1930, ser brasileiro era, antes de tudo, pertencer ao território nacional. O fenômeno da identidade nacional, proclamado pelo modernismo, funda, ao lado da mestiçagem, uma territorialidade própria, que distingue o brasileiro do restante da humanidade. A lógica nacionalista focalizou na Capoeira um elemento precioso ao pensamento eugênico: a Capoeira como “ginástica nacional”.

É pertinente lembrar que a Capoeira, pertencendo à cultura corporal de movimento (BRACHT, 1999), reproduz as mesmas relações que vinculam a Educação Física ao militarismo e às propostas eugenistas de higienização racial proclamadas no início do século XX. A Educação Física desempenhou um importante papel no sentido da docilização da classe oprimida, uma vez que coube a ela uma adaptação disciplinada dos corpos de modo a satisfazer as necessidades da indústria. De acordo com Foucault (1999, p. 119),

O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se, então uma política de coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos de seus comportamentos. [...] A disciplina fabrica, assim, corpos submissos e corpos exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). [...] Se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada.

Percebe-se, no percurso histórico trilhado pela Educação Física, as influências do higienismo e do militarismo, que vão ensejar o surgimento da luta Regional de Bimba. Adensando às narrativas nacionalistas da época, a Capoeira é proclamada como ginástica nacional. Mas uma Capoeira distanciada da figura do malandro, cujos vícios morais se pretendia expurgar da nação.

Art. 402, dos vadios e Capoeiras instituía: Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporal, conhecidos pela denominação de Capoeiragem; andar em correrias, com aramas, andar com instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoas certas ou incertas, ou incutindo temor ou algum mal. Pena: Prisão celular de dois a seis meses [...] (VIEIRA, 1998, p. 93).

A estandardização do “homem brasileiro” na figura do malandro é marcada por uma ambigüidade situada entre “o bem e o mal”. O malandro é, ao mesmo tempo, herói e anti-herói. O dilema da nacionalidade esteve ancorado entre optar por um tipo de brasileiro pacato e conformado e o mestiço, conduzido pelas opressões sociais à malandragem como forma de resistência. Contudo, penso que não há pacatez possível diante da inexorabilidade da própria miséria. Se há, não pode situar-se noutro campo senão o da debilidade psíquica. De acordo com Reich (1972, p. 18),

Independentemente do fato de a estrutura psíquica derivar da existência econômica, a situação econômica tem de ser estudada com métodos diferentes daqueles a que se recorre para estudar a estrutura de caráter. [...] Para a psicologia social, a questão é colocada em termos opostos: o que se pretende explicar não é porque motivo o esfomeado rouba [...], mas por que motivo o esfomeado não rouba [...].

 

A ambigüidade comparece no cenário da transformação do malandro: em bandido, criminoso, fora da lei, aquele que converte “prazerosamente” as injustiças sociais em “jogo de cintura”, em ginga e mandinga. Uma idéia já consagrada no imaginário coletivo do brasileiro. Tão banal que só dificilmente se percebe os perigos aportados por detrás desse pensamento. Somos, afinal, um povo prazenteiro? Estamos capacitados a sofrer imunemente as agruras de uma existência pautada na exploração do homem pelo homem? Esse mito “dionisíaco” da malandragem não difere os que são diferentes. O notório mal-estar da cultura brasileira reside justamente nesta “dialética da malandragem” onde a igualdade, a liberdade e a justiça encontram ambiente imaginário num lugar que nunca chega.

O discurso do “bom racismo” tende a encobrir as tensões sociais e impedir a luta contra os mecanismos de exploração econômica que se condensam numa mesma figura miserável e afro-descendente. A instabilidade dos pontos de vista embutidos na mítica do malandro, oscilante entre ordem e desordem, dificulta a articulação do oprimido como força contra-hegemônica. As desigualdades são minimizadas à condição de meras diferenças.

A Capoeira – e, especificamente a Capoeira Angola -, eclode das convulsões angustiadas por liberdade diante das circunstancias opressoras traduzidas nos signos herdados dos “colares de ferro”, dos “troncos de castigo” e de tantos outros meios de suplício no cativeiro. Nesse itinerário histórico, assume especial relevância os decênios de 1930 e 1940, não apenas por representar o momento da consolidação da luta Regional Baiana, mas porque configura um cenário de especial efervescência. O mundo já havia conhecido a Revolução Russa de 1917, como primeira grande tentativa da humanidade em tomar nas mãos as rédeas de seu destino; as traumáticas conseqüências de uma guerra mundial; o crack da bolsa de valores de Nova York (1929) e os primeiros esboços da indústria cultural. Na Itália, Mussolini estabelece, em 1925, um Estado totalitário de extrema direita. O desemprego e a desilusão popular desencadearam, ao final da década de 1930, a Segunda Guerra Mundial que apresentou ao mundo o holocausto nazista. Na Espanha acontece uma Guerra Civil (1936-1939), com a Alemanha nazista e a Italia fascista apoiando Franco. Picasso pinta Guernica em 1937 e, em 1939, Sartre escreve seu “Diário de uma Guerra Estranha”. No ano de 1945 a Alemanha se rende e os Estados Unidos despejam duas bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagazaki.

Esse cenário explosivo aporta nas ideologias autoritárias que passaram a vigorar no Brasil daquele período. Na Capoeira Regional Baiana, a capoeiragem evoluira do malandro indisciplinado e subversivo para o ginasta disciplinado e obediente. Sobretudo, obediente à ideologia que predestina um lugar - lá embaixo - para os afro-descendentes que se comportam resignadamente. Essa recodificação da Capoeira ecoa das ideologias hegemônicas de onde se impõe uma marca visível como uma linha demarcatória que identifica, separa e oprime.

Em “Assim falou Zaratustra”, Nietzsche (s.d.) relata três transformações do espírito: como o espírito se transforma em camelo; o camelo em leão; e, finalmente, o leão em criança. O camelo representa a humildade, a submissão, o saber suportar com paciência as pesadas cargas. O leão representa o homem crítico, como niilista ativo que destrói os valores estabelecidos, que quer conquistar a liberdade e ser senhor no seu próprio deserto. E a criança representa a inocência, o jogo, o brinquedo. É o sim radical ao mundo dionisíaco. O espírito, transformado em criança, quer agora a sua vontade; o que perdeu o mundo quer o mundo. Essa criança é o malandro angoleiro, em metáfora do “Super-homem” nietzschiano.

6. CAPÍTULO 5

6.1. Educação Física e Globalização no jogo de roda

A destruição do passado - ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculavam nossa experiência pessoal à das gerações passadas - é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX.

(Erik Hobsbawn)

A inclusão da Capoeira Angola nas aulas de Educação Física, embora não represente em si fato inédito, apresenta algo de inusitado: uma manifestação oriunda das culturas oprimidas só dificilmente consegue espaço de representação social. A construção desse paradigma é fruto de uma relação íntima entre a Capoeira e o seu lugar de origem: a afro-descendência, marcadamente, alvo de preconceitos sociais guiados por motivações distintas. De acordo com Ramos (2003, p. 17),

A Cabana de Pai Thomas, de Herriet Bicher Stowe, ou toda a poesia libertária de um Castro Alves apenas despertam um vago sentimento de piedade para um povo que uma falsa lógica considerou inferior. [...] Com efeito, a abolição da escravatura nas várias partes de Toda-a-América não havia libertado o negro da pesada cadeia dos preconceitos seculares.

Conduzida pela Educação Física, a Capoeira chega à escola acompanhada de características identidárias que a definem como uma forma cultural construída na luta histórica contra mecanismos de opressão que vigoraram e continuam a vigorar na sociedade brasileira. O rastreamento do seu itinerário histórico aponta para elementos éticos e estéticos que a qualificam para a luta de resistência contra a lógica da indústria cultural no mundo da globalização. Diante das tremendas enxurradas de relativismos e incertezas que a pós-modernidade despeja na sociedade brasileira, a desbarbarização das relações humanas demanda por uma reconstrução da capacidade de empatia que empresta do capoeirista a capacidade de desvelar os estratos identidários profundos de seu povo.

As cantigas e ladainhas das rodas-de-Capoeira denunciam a existência de uma sociedade marcada por um percurso histórico de desigualdades onde ainda se rareficam as condições minimamente dignas de existência para um polpudo segmento social economicamente marginalizado e composto majoritariamente por afro-descendentes.

Treze de maio

(Mestre Moraes)

 

A história nos engana

Dizendo pelo contrário

Até diz que a abolição

Aconteceu no mês de maio

Comprovada sua mentira

E que da miséria eu não saio

Viva vinte de novembro

Momento pra se lembrar

Não vejo em treze de maio nada pra comemorar...

Na ladinha de Mestre Moraes a fantasia se desfaz ante a constatação de que a abolição da escravidão não se efetivou na pratica. A situação de exclusão étnico/econômica, propiciada pelas práticas racistas cotidianas, maximiza-se diante de um discurso falaciosamente sintonizado com as mais elevadas teses humanitárias de igualdade, justiça e liberdade.

As fabulosas promessas disponibilizadas pela industrialização dos produtos culturais reformulam uma sociedade presumidamente sem injustiças sociais, construída no esparrame mundial e aleatório de uma infindável quantidade de migalhas culturais alteradas, ressignificadas e mercadologizadas. Nesse processo, as formas culturais ficam alienadas não só de suas identidades, mas, especialmente, das necessidades humanas mais fundamentais, tais como as sócio-afetivas, de encontro com o outro. Finalmente, essas formas culturais, já degeneradas, são submetidas às regras de mercado. Segundo Zuin, Pucci e Ramos-de-Oliveira (2000, p. 54),

Adorno e Horkheimer indagam sobre uma suposta instabilidade social decorrente da dissolução dos resquícios pré-capitalistas e da decadência das imagens e de representações divinas, substituídas pela instrumentalização da razão. Este novo contexto levaria a humanidade a um verdadeiro caos cultural? Os frankfourtianos respondem que não, pois as mazelas espirituais são, na sociedade capitalista contemporânea, abrandadas por meio do contato das imagens fornecidas pela industrialização e mercantilização dos produtos simbólicos numa escala universal. Diante disso, tornam-se compreensíveis, mas não aceitáveis, argumentos que identificam como progresso o fato de que atualmente milhões de pessoas têm contato com a produção cultural. Nas sociedades capitalistas poucos podiam despender os recursos materiais e espirituais exigidos para a contemplação das manifestações artísticas, tais como concertos ou peças de teatro. Mas, será que esta massificação simbólica tem somente um caráter progressista? Será que as condições objetivas atuais proporcionam condições para que as promessas e concretizações da felicidade, imanentemente contidas na cultura possam se tornar realidade?

A lógica da indústria cultural é erigida de modo a não cumprir aquilo que promete desde seu surgimento: a garantia de uma sociedade livre e igualitária. Esta alegoria da igualdade dissimula e cimenta, como substrato dos antagonismos entre as classes, a exploração do homem negro pelo homem branco no interior da sociedade brasileira. A proclamação da existência de uma realidade bem diferente daquela que existe se apóia em hábitos ditos “civilizados” que encarnam a fraudulenta impressão de um mundo destituído de diferenças, onde as lutas por igualdade e justiça para todos se convertem em perspectivas vazias e destituídas de significação. A negação do outro pela uniformização de tudo e de todos é um princípio consagrado pela globalização.

A nova ordem elege a circularidade e a transnacionalidade como padrões de comportamento, o que justifica o acesso e a manipulação de dados como valores. Neste horizonte, operacionaliza-se uma mudança substancial do que constitui bem e riqueza, que deixam de ser representados pelo acúmulo de propriedades, para cada vez mais consolidarem-se pelo acesso à educação e informação. Aqueles que puderem ter a melhor formação educacional vão ingressar na estrutura de poder por meio do conjunto específico das profissões que o americano Robert Reich (O trabalho das nações, preparando-nos para o capitalismo do século 21, São Paulo, Educador, 1994) chamou de analistas simbólicos - cuja atividade é definida pela consultoria. Trata-se de identificar problemas e promover a venda de soluções através da manipulação de símbolos, no propósito de desenvolver recursos e transferir patrimônios financeiros de forma mais eficiente. Uma das propriedades dessa elite é a valorização do que possui um caráter global e moderno em detrimento do regional e do tradicional, que assumem, cada vez mais, feições retrógradas. (PAIVA, 1998, p. 35-36)

Não obstante as marcas de tragédia deixadas no caminho percorrido pela globalização, Paiva (1998) considera, ainda, que esta talvez não seja uma via de mão única. Este reinado de engodos não é onipotente. Por entre as frestas da indústria cultural, a Capoeira comparece como estratégia de esquiva, negativa, defesa e contra-ataque, uma vez que a fuga não é mais possível e os quilombos não se fazem mais presentes.

A Capoeira Angola se insere naquele universo de antigas formas de encontro comunitário, onde o povo faz seus investimentos afetivos mais significantes, num proceder que desterra o grandioso potencial identidário de recusa e repúdio à generalização/massificação perpetrada pela globalização dos produtos culturais industrializados. A resistência somente pode efetivar-se na medida em que se aproveite as aberturas estreitas deixadas pelas contradições do capital. Contudo, as defesas contra a massificação e em nome da especificidade não devem incorrer no erro oposto, ou seja, conceder ao particular hegemonia sobre o coletivo. Referindo-se aos diálogos entre identidade e resistência, Ribeiro Júnior (1982, p. 27), considera que

[...] a resistência é matriz, ao mesmo tempo, de reação e identidade. Identidade é a finalidade e o outro nome da resistência. Assim, em sua dimensão mais autêntica, a cultura do povo é dotada de um equilíbrio, uma coerência e não um somatório de “déficits”. A resistência-identidade se nutre das raízes culturais, da memória coletiva, dos valores e vivências já inseridos na história do grupo, das crenças mágico-místicas.

A estrutura dominante da sociedade reside na forma da economia. A partir desta constatação pode-se perceber, ainda, que os homens e suas relações sociais são construídos a partir desta premissa; o que estes são para si mesmos, o que pretendem ser, como tudo o mais, torna-se obsoleto. Nesse sentido, parece oportuno recorrer às palavras de Marx (1991, p. 17):

[...] os homens sempre fizeram falsas representações sobre si mesmos, sobre o que são ou o deveriam ser. [...] Os produtos de sua cabeça acabaram por se impor à sua própria cabeça. Eles, os criadores, renderam-se às suas próprias criações. [...] Ensinemos os homens a substituir estas fantasias por pensamentos que correspondam à essência do homem.

A estrutura das relações travadas entre os homens em sociedade alicerça-se a partir da economia, do mundo material, e não ao contrário. O que eles, os homens, imaginam ser e o que pretendem ser tornam-se secundários. Neste sentido, importa perceber os diversos conceitos contemporâneos como produto do meio onde são concebidos. As atualizadas discussões em torno do termo identidade, por exemplo, tornam-se relevantes na medida em que a dissecação desse termo ajuda a compreender as razões atuais que levam à sua própria relevância: o fundamento dos conflitos econômicos é deslocado para o terreno da cultura a fim de esvaziá-lo. Isso é discernível a partir da maneira como o multiculturalismo afirma reconhecer a exploração econômica, mas foca seu interesse nos conflitos entre as identidades culturais.

Sem embargo, reconhecer a herança identidária de um percurso histórico negricida, onde a cor é um importante limite de distinção entre oprimidos e opressores, não significa reconhecer que as raízes das desigualdades sociais estejam fundadas unilateralmente no racismo. A afro-brasilidade não está emancipada do capitalismo, imune aos ventos e tempestades da lógica do capital. De igual modo, o preconceito que costumeiramente vitimiza a mulher, o idoso, as minorias religiosas, o homossexual, encontra-se determinado, no limite, pelas necessidades peculiares ao modo de produção capitalista. Ao contrário, a lógica deste reconhecimento encontra o afro-descendente subsumido aos conflitos econômicos. O reconhecimento das diferenças étnicas e culturais não é o último horizonte da política.

1. Militarização da Capoeira Regional

O termo Capoeira Angola estabeleceu, a partir da década de 1930, um divisor de águas entre aquela Capoeira que já era praticada e a Capoeira Regional Baiana, criada por Manoel dos Reis Machado, o Mestre Bimba. “Angola” foi o termo utilizado para designar a região da África de onde vieram os negros que, mais tarde, criaram a Capoeira no Brasil com base no N’golo, ou “jogo da zebra”. De acordo com MACEDO (2006, p. 427),

Com a descriminalização implantada por Getúlio Vargas, em 1937, e a abertura do Centro Esportivo de Capoeira Angola de mestre Pastinha, em 1941, dentre outros fatores, torna-se evidente a presença da Capoeira no cenário baiano e nacional, principalmente da Capoeira enquanto esporte, como técnica militar e como manifestação cultural, quando prevalece a prática do jogo e do ritual.

A Capoeira Regional assume as particularidades de uma Educação Física higienista e militarista, cuja ênfase estava na formação de homens e mulheres fortes, sadios e disciplinados, disseminando padrões de conduta capazes de erigir uma sociedade obediente e livre das doenças infecciosas e dos presumidos “vícios morais da malandragem da época”.

No Brasil, a Educação Física já havia ingressado nos currículos escolares desde o século XIX, justificando-se, cientificamente, como promotora de saúde pela prática de uma atividade física preventiva das chamadas “doenças hipocinéticas”. Através da utilização de sistemas e métodos ginásticos, a Educação Física – até então higienista -, incorpora a partir da década de 1930, um sentido notadamente militar. Conforme relata Bracht (1999, p. 17),

O século XIX vai ser o século da sistematização dos métodos ginásticos cujo discurso científico fundamentador era predominantemente derivado das ciências biológicas, sendo os intelectuais que construíram esse discurso do campo médico e também pedagógico, sendo neste último caso a fundamentação também fortemente marcada por pressupostos biológicos. Outra instituição importante e que foi cadinho da elaboração da EF é a militar. Assim, as estruturas do pensamento, com seus pressupostos científicos e filosóficos, estavam ancoradas tanto na instituição médica quanto na militar. Neste sentido, [...] no caso brasileiro, a instituição militar constituiu, nas décadas de 30 e 40 deste século, um projeto de Educação Física para o país, articulado como um projeto para a educação brasileira como um todo.

Higiene, raça, moral e militarismo pontuam, então, as propostas pedagógicas que contemplam a Educação Física a partir de uma argumentação forjada nas

[...] noções de mérito e responsabilidade individual, elementos da ideologia igualitária. Após a Revolução Francesa, se o seu lugar permanece central nesse sistema ideológico, a função que ela exerce se altera radicalmente: a noção de aptidão, a partir daí, serve progressivamente de suporte para justificar a manutenção das desigualdades sociais e escolares que as traduzem e perpetuam. Como a nova sociedade e as instituições escolares são colocadas como igualitárias, a causa das desigualdades só pode ser atribuída a um dado “natural”. (BISSERET, 1978, p. 31)

De acordo com Guiraldelli Júnior (1988), a Educação Física daquele período, entre a Revolução de 1930 e o Estado Novo, procurou por uma formação de jovens capacitados para a guerra, tendo como pano de fundo a eliminação dos fracos e a premiação dos mais fortes, no sentido da depuração da raça. A disciplina exacerbada, inspirada no militarismo, resultaria em obediência inconteste. Para Vítor Marinho de Oliveira,

A introdução do chamado Método Francês é, também, um fato importante. Originário, ainda, de Joinville-le-Pont, foi trazido por militares franceses que vieram servir na Missão Militar Francesa. Adotado pelas Forças Armadas, a sua obrigatoriedade foi estendida à esfera escolar (1931), “enquanto não for criado o método nacional de Educação Física”. O Regulamento de Educação Física da Escola Militar de Joinville-le-Pont foi a bíblia da Educação Física brasileira por mais de duas décadas. As limitações conceituais do citado Regulamento ficam expressas quando, definindo Educação Física, rezava: “A Educação Física compreende o conjunto dos exercícios cuja prática racional e metódica é suscetível de fazer o homem atingir o mais alto grau de aperfeiçoamento físico, compatível com sua natureza.” (OLIVEIRA, 1983, p. 57-58).

A “naturalização” de uma sociedade que aspira por ordem e obediência encontrará na Educação Física do final do século XIX e início do século XX a disciplina necessária à viabilização de seu projeto. Segundo Soares (2001, p. 05),

O século XIX é particularmente importante para o entendimento da Educação Física, uma vez que é neste século que se elaboram conceitos básicos sobre o corpo e sobre a sua utilização como força de trabalho. Na Europa e em especial na França, este é o período no qual se consolidam o Estado burguês e a burguesia como classe, criando condições objetivas para que suas próprias contradições de classe no poder apareçam, e seja inevitável o reconhecimento da existência de seu oponente histórico: a classe operária. Para manter sua hegemonia, a burguesia necessita, então, investir na construção de um homem novo [...]. A construção desse homem novo, portanto, será integral, ela “cuidará” igualmente dos aspectos mentais, intelectuais, culturais e físicos.

Emblematiza o arraigamento militar na Capoeira Regional o fato de Mestre Bimba ter ministrado aulas de Capoeira, entre os anos de 1939 a 1942, no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR), no Forte do Barbalho, em Salvador. A meta de reorganizar os gestos, minimizando-os à mecânica do movimento, como forma de compor um homem capacitado à “defesa da nação”, refletiu-se no advento de uma capoeiragem moldada segundo parâmetros de força e disciplina, não distantes dos procedimentos incidentes sobre o corpo no interior da Educação Física. A mesma solicitude requerida ao aluno de Educação Física também o era ao aluno de Capoeira Regional.

Em seu curso de Capoeira Regional Baiana, Mestre Bimba incluiu uma etapa de “Especialização”, na qual eram realizados combates corpo-a-corpo, com e sem armas, e instruções de guerrilha. Segundo Raimundo Alves César Almeida, o Mestre Itapoan, o curso de Especialização se estendia por três meses, sendo dois na academia e um nas matas da Chapada do Rio Vermelho, onde acontecia o ponto alto do curso, as "emboscadas":

Era uma verdadeira guerra, verdadeiro treinamento de guerrilha. Bimba colocava quatro a cinco alunos para pegar de emboscada. (...) Durante essas emboscadas, os alunos do Mestre quebravam cercas, invadiam casas, tudo isso para defender-se de qualquer maneira. (Almeida,1982:27).

Neste cenário, a Capoeira Regional aporta como projeto histórico de uma sociedade calcada na necessidade da autoridade coercitiva como forma de se conseguir obediência, disciplina, aptidão física e saúde. Ainda hoje as práticas copoeiranas regionalistas refletem a grande influência da Educação Física militarista, como signos tatuados no corpo do regionalista a partir de sua adaptação histórica às exigências do capital. O Coletivo de Autores traz uma interessante reflexão acerca daquele momento, compartilhado por Mestre Bimba e seus contemporâneos:

Desenvolver e fortalecer física e moralmente os indivíduos era, portanto, uma das funções a serem desempenhadas pela Educação Física no sistema educacional, e uma das razoes de sua existência. Outra forte razão era seu caráter científico [...]. Numa sociedade me que a ciência transforma-se numa nova “religião”, o caráter científico conferido à Educação Física constituía-se em fator determinante para sua consideração e respeito no interior do sistema educacional. [...] As aulas de Educação Física nas escolas eram ministradas por instrutores físicos do exército, que traziam para essas instituições os rígidos métodos militares da disciplina e da hierarquia. Esse fato é a base da construção da identidade pedagógica da Educação Física escolar, calcada nas normas e valores próprios da instituição militar. Constrói-se, nesse sentido, um projeto de homem disciplinado, obediente, submisso, profundo respeitador da hierarquia social. No Brasil, especificamente nas quatro primeiras décadas do século XX, foi marcante no sistema educacional a influência dos Métodos Ginásticos e da Instituição Militar. Ressalta-se que o auge da militarização da escola corresponde à execução do projeto de sociedade idealizado pela ditadura do Estado Novo. (COLETIVO DE AUTORES, 1992: p. 52-53).

O militarismo foi um processo introduzido fartamente na capoeiragem de Mestre Bimba, a partir da década de 1930, nas grandes metrópoles nacionais, no sentido de atender as necessidades de expansão e disseminação de uma Capoeira distanciada da subversão dos valores hegemônicos na época. Estes são os pressupostos que, mais tarde, iriam ensejar a desportivização da Capoeira na década de 1970.

2. Desportivização da Capoeira Regional

Se no período compreendido entre as suas origens e a década de 1960, preponderou na Educação Física um discurso pedagógico normatizado a partir do alinhamento entre a biologia e o militarismo, a Educação Física da década de 1960 esteve marcada por idéias humanistas e libertárias calcadas em conceitos psicológicos (GUIRALDELLI JÚNIOR, 1988). A partir da década de 1970, se coloca à Educação Física uma prática hegemônica desportiva, na esteira, mais uma vez, das tendências mundiais. Balizada pela lógica do capital, a padronização motora, a obediência às regras e a busca de rendimento e de vitória acabam determinando os rumos do desenvolvimento da Educação Física. A idéia de vencer através da prática dos esportes - ou das atividades físicas desportivizadas - se sobrepõe a qualquer outro objetivo. Referindo-se ao processo de desportivização das práticas corporais, Silva (1994, p. 33), considera que:

Essa forma esportivizada impõe novas características, gerando um novo movimento corporal e uma nova subjetividade humana. Gera, fundamentalmente, um novo homem que se movimenta porque tem novos valores éticos e estéticos que se estendem às demais atividades físicas, generalizando essas características a ponto de possibilitar a perda da identidade cultural e pessoal.

De acordo com Guiraldelli Júnior (1988), a prática da Capoeira é regulamentada em 1972, como desporto nacional, pela Confederação Brasileira de Pugilismo (CBP), época que coincide com o início do predomínio do esporte e da desportivização da cultura corporal de movimento. A Educação Física passa a obedecer não só aos códigos do esporte, mas, de modo incisivo, da desportivização das atividades físicas, fazendo da Capoeira Regional caixa de ressonância dos significados da sociedade onde se encontra inserida. Bracht (1997, p. 9 -10), assim descreve o processo de surgimento e consolidação do esporte moderno a partir do colapso dos antigos jogos populares:

O esporte moderno refere-se a uma atividade corporal de movimento com caráter competitivo surgida no âmbito da cultura européia por volta do século XVIII, e que com esta, expandiu-se para o resto do mundo. [...] Resultou de um processo de [...] esportivização de elementos da cultura corporal de movimento das classes populares inglesas, como os jogos populares, cujos exemplos mais citados são os inúmeros jogos com bola. [...] Este processo inicia em meados do século XVIII e se intensifica no final do século XIX e início do século XX. O declínio das formas de jogos populares inicia em torno de 1800. Eles parecem ficar paulatinamente fora de uso, porque os processos de industrialização e urbanização levaram a novos padrões e novas condições de vida, com as quais aqueles jogos não eram mais compatíveis [..] Com isso os jogos tradicionais foram esvaziados de suas funções iniciais, que estavam ligados às festas (da colheita, religiosas, etc.) É importante observar também que os jogos populares foram muitas vezes reprimidos pelo poder público, como , aliás, também foi o caso de uma prática corporal das classes populares brasileiras, a capoeira, que sofreu uma perseguição violenta por parte das autoridades nas décadas de 1910 a 1930. [...] Vai ser nas escolas públicas que aqueles jogos (o caso clássico é o futebol) vão ser regulamentados e aos poucos assumir as características (formas) do esporte moderno.

Referindo-se aos jogos populares, Kishimoto (1992, p 25), faz a seguinte consideração:

Não se conhece a origem desses jogos. Seus criadores são anônimos. Sabe-se, apenas, que são proveniente de práticas abandonadas por adultos, de fragmentos de romances, poesias, mitos e rituais religiosos. A tradicionalidade e universalidade dos jogos assentam-se no fato de que povos distintos e antigos como os da Grécia e do Oriente brincaram de amarelinha, empinar papagaios, jogaram pedrinhas e até hoje as crianças o fazem quase da mesma forma. Tais jogos foram transmitidos de geração em geração através dos conhecimentos empíricos e permanecem na memória infantil.

Segundo a autora (KISHIMOTO, 1992), o jogo popular não é inato, é uma aquisição social passada do mais experiente para o menos experiente. Contudo, esse processo é interrompido pelo ingresso da criança na escola. Eis aqui o momento importante da Educação Física no sentido de conceder à criança a oportunidade do jogo como resistência ao esporte de rendimento que prepondera como mola propulsora das aulas de Educação Física, transformada na base da chamada “pirâmide desportiva nacional” (BRACHT, 1999).

É possível dizer que a Educação Física se transforma, a partir da década de 1970, numa prática hegemônica desportiva, onde o esporte goza de hegemonia e as demais atividades da cultura corporal de movimento – como foi o caso da Capoeira Regional - acabam sofrendo um processo de desportivização. A Educação Física, como local por excelência da detecção dos talentos desportivos que “honram a pátria” defendendo as seleções nacionais, reproduz, em última análise, o ideal competitivo de uma sociedade de vencidos desprezados e vencedores cultuados, marcada pela alienação, repressão e subserviência.

Parece-me claro que a forma hegemônica da cultura corporal de movimento é o esporte. Isto é, o esporte é a forma da cultura corporal de movimento que é funcional para a atual hegemonia. Para reforçar esta hipótese podemos, entre outros argumentos, indicar para a tendência de desportivização da cultura corporal de movimento. Outras razões seriam, por exemplo, a possibilidade de sua comercialização, seu caráter de espetáculo que acentua sua afinidade com os meios de comunicação de massa, etc. Se aceitarmos esta (hipó)tese, não é difícil analisar a história da Capoeira a partir dos esquemas propostos por Oliven (1938) e Meneses (1980). Reprimida, tolerada e domesticada – ou em vias de – via esportivização. (BRACHT, 1997, p. 65),

A despeito A criação da Capoeira Regional significou, portanto, o advento da Capoeira higienizada, militarizada e, finalmente, desportivizada. Evidencia a Capoeira ajustada aos ideais coercitivos, competitivos e consumistas do meio onde se desenvolveu, num processo de ressignificação que clarifica sua disponibilidade de coesão com os mecanismos da indústria cultural e (re)produção sob os auspícios da contemporaneidade. Ressignificada entre os ardis reificantes da indústria cultural, a Capoeira Regional solapa o potencial pedagógico presente no universo cultural da Capoeira Angola que se legitima como identidário, afro-descendente e expressão histórica possível de união, inconformismo e resistência. Para Silva (1994, p. 43-44),

O esporte e as outras atividades praticadas nesses moldes levam os seus praticantes a um comportamento cada vez mais limitado em sua liberdade de agir e refletir e em sua conduta de escolha. [...] Ao se generalizar por toda a sociedade a abstração e a quantificação, surge um outro elemento fundamental para os fenômenos da cultura e para a própria vida do ser humano. Essas características do modo de produção capitalista, reproduzidas pelo esporte e por algumas práticas corporais, acabam gerando o princípio da indiferença, que vai, entre outras coisas, eliminando a capacidade de identificação com o outro, seja com seu esforço, seja com seu sofrimento. O ser humano vai tendo uma crescente dificuldade em se enxergar no outro e, por isso, a construção coletiva e o próprio repensar do cotidiano vão se tornando cada vez mais distantes.

A escola é ainda o espaço que temos para a formação das novas gerações. A Educação Física, nessa direção, de acordo com o COLETIVO DE AUTORES (1992, p. 50),

[...] é uma prática pedagógica que no âmbito escolar, tematiza formas de atividades expressivas corporais como: jogo, dança, ginástica, esportes, formas estas que configuram uma área de conhecimento que podemos chamar de cultura corporal. [...] Mas o que ela vem sendo?

O que a Educação Física vem sendo na escola? Na verdade esta questão é bastante ampla. A indústria cultural, sob o patrocínio da mídia, converte infância e juventude em idades improdutivas que devem ser logo superadas em nome de uma cultura de consumo. Através dela, se impõe um “jogo” de interesses, malícias, moda e poder em substituição à convivência afetuosa, desinteressada e envolvente. A apologia da competição é o esforço derradeiro das ideologias hegemônicas no sentido de revogar o lúdico da criança e do adolescente. Olhando para a Educação Física, percebe-se que ela passeia despreocupada e desavidamente pelo universo competitivo, cujo objetivo, proclamado à exaustão, seria “desenvolver o aluno integralmente”. Até aqui não se conseguiu responder adequadamente o que isso significa.

O desenvolvimento da Capoeira Regional é obediente ao processo de desportivização da cultura corporal de movimento. Desportivização que inverte os parâmetros da Capoeira, de luta por liberdade a prática resignada e adaptada. A perspectiva de superação dos conflitos centrais da sociedade do capital se inviabilizam diante de uma suposta “igualdade de chances” proclamada pelo esporte (BRACHT, 1997, p. 29). Para Celi Taffarel,

[...] a discussão sobre “Capoeira a serviço do social ou do capital?” deve ser situada no interior das denúncias formuladas pelas organizações de trabalhadores sobre a acentuação da tendência a destruição das forças produtivas – natureza, homem, relações de produção -, sob os auspícios do modo de produção capitalista. (TAFFAREL, 2004, p. 03)

Elemento da cultura industrializada que transforma os seres humanos em consumidores ávidos de suas próprias tragédias, o fenômeno do esporte atual manipula e transgride necessidades e desejos. Este é um aspecto de especial relevância, dada a sua centralidade para esta pesquisa. Neste particular, requisitando segmentos conceituais da psicanálise, comparece Valter Bracht, citando Vinnai (1970), em seguimento e ampliação da avaliação de Taffarel sobre o esporte:

[...] o treinamento desportivo e seu princípio imanente do rendimento seguem o postulado econômico geral internalizado da produção da mais-valia capitalista. Na prática do esporte são compensados fracassos sociais e psíquicos, no entanto, sob o ditado do princípio industrial do rendimento, que em sua transformação especificamente esportiva leva novamente á utilização de estruturas de consciência e comportamentos relativas ao trabalho, acaba autuando assim, contra o desenvolvimento do ganho do prazer corporal. O que nos interessa neste contexto, são as conseqüências que derivam da tese da afinidade. Uma delas é a de que no esporte de alto rendimento “a redução da força de trabalho à forma abstrata e quantitativa de mercadoria, implica uma coisificação concreta do agir humano” (Rigauer, 1981, p. 61). Não distante desta interpretação encontra-se, então, a derivação lógica: se esporte de alto rendimento é trabalho, e trabalho na sociedade capitalista é trabalho alienado, então alienado também é o que acontece no esporte de alto rendimento. (BRACHT, 1997, p. 32)

Mais adiante, Bracht (1997, p. 116-107), analisando a presença indissociável da mercadoria no interior da narrativa desportiva enfoca os meios de comunicação de massas como artífices da espetacularização:

[...] a lógica interna que dirige, que orienta as ações no interior do sistema esportivo de alto rendimento é impermeável aos argumentos educacionais [...]. Além disso, a rivalidade entre as nações ainda é a tônica das competições internacionais; como compatibiliza-las com o ideal da confraternização? Aqui estamos de frente a uma questão que é central para entendermos a instituição esportiva como ela se apresenta hoje (nas últimas três décadas). Refiro-me ao processo de mercadorização do esporte, principalmente a partir do desenvolvimento e envolvimento dos meios de comunicação de massa, mais especificamente a televisão. [...] O esporte de rendimento ou espetáculo vai organizar-se a partir dos princípios econômicos vigentes na economia de mercado.

É neste contexto que Celi Taffarel, devolvendo a discussão à Capoeira, no tocante à sua desportivização, traz o seguinte comentário:

A capoeira não é algo mágico que paira sobre nossas cabeças. Algo místico, mítico. É algo concreto, situado, em construção que esta historicamente determinada. Os capoeiristas ao construírem a capoeiragem não o fazem segundo suas próprias cabeças, mas segundo condições objetivas determinadas ao longo da história e do que é próprio das relações de produção humana em dados momentos históricos. A capoeira é um dos fenômenos sócio-culturais da alta relevância no Brasil e constitui o processo civilizatório. Está situado dentro da divisão social internacional do trabalho e portanto, neste momento histórico sofre também o processo de degeneração, decomposição e destruição. Isto é visível quando observamos o empresariamento da capoeira internacionalmente – no sistema de franquias. A mercadorização da capoeira, vista nos empórios e centros turísticos, a espetacularização da capoeira visita na mídia e nos fantasiosos espetáculos, na esportivização da capoeira, na construção de confederações, federações com finalidades competitivas, necessidade imperiosa do capital. (TAFFAREL, 2004, p. 17)

 

A Capoeira, desportivizada na figura da Capoeira Regional (Resolução do Conselho Nacional do Desporto de 1972), em sua inserção na escola através da Educação Física, leva consigo os traços marcantes dos predicados atualizados do capital: a indústria cultural, antropófaga das formas culturais populares. O processo de desportivização da Capoeira, que provoca o consumo alienado e padronizado deste bem, imbica o declínio identidário do indivíduo sob os pressupostos dos processos de massificação resultantes da industrialização da cultura. A liquidação das identidades culturais específicas, inauguradas pela construção dos Estados-nações, acentua-se na era da indústria cultural pelos processos de massificação que influenciam o imaginário das massas, uniformizando sentimentos, gostos, pensamentos e atitudes. Em detrimento da suposta inevitabilidade da existência massificada, é preciosa a captação da cultura popular enquanto forma social de identidade onde se (re)configura a possibilidade do reconhecimento do outro, do sentimento de pertencimento, sobretudo do sentimento identidário de classe social. Dentro desse itinerário consta o acesso à Capoeira Angola, como eixo de uma educação popular onde a reconstrução cultural reflete em si os signos do altruísmo. O processo de esportivização da Capoeira a faz funcionar no sentido inversO.

3. Capoeira e indústria cultural

O Brasil, pelas suas condições particulares desde meados do século 20, é um dos países onde essa famosa indústria cultural deitou raízes mais fundas e por isso mesmo é um daqueles onde ela, já solidamente instalada e agindo em lugar da cultura nacional, vem produzindo estragos de monta.

(Milton Santos)

Em face à notória ubiqüidade do esporte, torna-se redundante afirmar que ele ocupa lugar de incontestável destaque no mundo contemporâneo. Transmitido mundialmente pela televisão, o esporte tornou-se um dos veículos prediletos da indústria cultural globalizada. Sua sedução disfarça seu caráter político-ideológico junto a uma sucedânea de fraudes e trapaças de todo tipo, que abarca inclusive o doping. A apologia infinita da ideologia liberal da competitividade subsume o mundo todo a uma multiplicação vertiginosa da esportivização da cultura corporal de movimento. Entendendo cultura corporal de movimento como sendo

[...] aquela parcela da cultura geral que abrange as formas culturais que se vêm historicamente construindo, nos planos material e simbólico, mediante o exercício da motricidade humana - jogo, esporte, ginásticas e práticas de aptidão física, atividades rítmicas/expressivas e dança, lutas/artes marciais. (BETTI, 2001, p. 156)

O discurso midiático sobre a cultura corporal de movimento tende a fundir os conceitos de estética e saúde/aptidão física. Há um entrelaçamento do sentido de bem-estar, associado à saúde, para um sentido de “magreza corporal”, onde o padrão do que é belo encontra-se aportado. Esculpir o corpo de acordo com os ditames midiáticos implica não apenas no exercício físico associado à dieta, mas, para além deles, à lipoaspiração, à cirurgia plástica, à introdução das próteses de silicone e às operações de redução de estômago. Sem falar nos aparelhos de eletro-estimulação, que promovem contrações musculares sem movimento (isométricas) e apontam para uma obsoletização da própria Educação Física, onde o “corpo em movimento”, mobilizador das potencialidades motoras, afetivas, culturais, sociais e cognitivas fica revogado.

Esta nova perspectiva corporal, recentemente inaugurada, constrói estereótipos capazes de produzir identidades. O estereótipo, nas palavras de Bartes (1973, p. 57),

[...] é a palavra repetida, fora de toda magia, de todo entusiasmo, como se fosse natural, como se por milagre essa palavra que retorna fosse a cada vez adequada por razões diferentes, como se imitar pudesse deixar de ser sentido como uma imitação: palavra sem-cerimônia, que pretende a consistência e ignora sua própria insistência. Nietzsche fez o reparo de que a “verdade” não era outra coisa senão a solidificação de antigas metáforas. Pois bem, de acordo com isso, o estereótipo é a via atual da “verdade”, o traço palpável que faz transitar o ornamento inventado para a forma canonical, coercitiva, do significado.

O estereótipo cumpre o papel ideológico de difundir, através da mídia, uma uniformização do pensamento/comportamento. Essa “dimensão uniformizadora”, pertinente à indústria cultural, na conceituação de Adorno e Horkheimer, comparece através da mídia de comunicação de massas. Na concepção de Ortiz (1994, p. 48-49), a indústria cultural é autoritária porque integra verticalmente, impondo um domínio através da padronização dos produtos culturais. Contudo, de acordo com o autor, este é um processo que ocorre somente na presença de um “conjunto de mudanças sociais que estendem as fronteiras da racionalidade capitalista para a sociedade como um todo”. (ORTIZ, 1994, p. 49) E, na pós-modernidade (ou “modernidade tardia”), deve-se entender que: esta é uma “racionalidade” que se espraia pelo mundo todo. Neste sentido, Marrach (apud PEDROSO, 2001, p.), num interessante diálogo de autores, considera que:

[...] o que distingue a mídia das outras organizações burocráticas é que nela a violência simbólica se assenta no fascínio do meio. O desenvolvimento das organizações que produzem cultura é concomitante ao processo de ‘desencantamento do mundo’ e perda do sentido. A mídia vem preencher o vazio do mundo desencantado com seu fascínio. E o fascínio surge onde o sentido é nulo. A fascinação, escreve Baudrillard, ‘é a intensidade extrema do neutro (...) os leitores não vêem mais diferença entre os conteúdos que se refratam no vácuo – só o meio funcionando como efeito ambiente e se apresentando como espetáculo e fascinação’. ‘O meio é a mensagem’ profetizava MacLuhan. (...) As massas, elas não escolhem, não produzem diferenças, mas indiferenciação – elas mantêm a fascinação do meio, que preferem à exigência crítica da mensagem.

A explicitação dos elementos que circunscrevem o processo de elitização da capoeira em capoeira regional serve de júri do atualizado conceito de mundialização cultural. Diante das promessas sedutoras da indústria cultural à cultura popular, como prática oriunda das camadas subalternas, sua busca por satisfação torna-se o principal algoz que os enclausura numa pseudo-gratificação objetivada pelo mercado. A capoeira angola, entendida como manifestação autêntica da cultura popular, situa o angoleiro, a exemplo de Ulisses, como conhecedor dos mecanismos de funcionamento desses cantos de sedução hipnotizante, porém, sem se deixar sacrificar por completo.

O ritmo lento com que muitas vezes a Capoeira Angola é praticada sugere um instigante contraponto ao ritmo frenético imposto pela sociedade industrial. Por sua vez, um subproduto da Capoeira Regional, a chamada “Capoeira Contemporânea” (o próprio nome a identifica), sujeita os capoeiristas aos mesmos ditames adaptativos do capoeirista regional, o que a coloca como representante atualizada dos ideais da globalização. Se, por um lado, esta adaptabilidade confere ao capoeirista condições de transitar pelos caminhos tortuosos da sociedade capitalista, por outro lado, o subtrai dos registros corporais necessários ao reconhecimento dos elos coercitivos da sociedade opressora que o aprisiona pelo ofuscamento da lógica do mercado.

O raciocínio preguiçoso que entende o mundo como uma “aldeia global” esquece o fato de que as técnicas mundializadoras das formas culturais se inserem nas intrincadas e complexas condições materiais da existência humana em sociedade. E que a mundialização da cultura é, na verdade, a mundialização das identidades culturais adulteradas pela indústria. Apostar no discurso de que as empresas orientam suas políticas no sentido de uma produção que visa atender as necessidades do consumidor capta a face corrompida do consumidor e deposita nela conclusões indevidas. Entre os homens que se comunicam nesta “aldeia global” existem tensões, interesses e disputas que os afastam de qualquer ideal coletivo.

O surto desportivo mundial, especificamente o do esporte de entretenimento, conquistou a indústria cultural na primeira metade do século XX, sendo rapidamente incorporado ao cotidiano das cidades brasileiras, fato que coincide com o processo de construção da Capoeira Regional. A sacralização ritualística do espetáculo esportivo - ingrediente da modernidade urbana - instaurou um cenário citadino propício à construção da Capoeira Regional. E, ao fazê-lo, não apenas serviu de solo fértil à desportivização da capoeiragem como também dotou essa prática de signos mercadológicos novos e ampliados, recriando, pois, o esporte, ao sabor da contemporaneidade. No mundo atual, o esporte é de tal modo transformado para servir as necessidades da indústria que se torna lícito afirmar que a nova ordem o reinventou.

7. CAPÍTULO 6

7.1. Um breve relato histórico da capoeiragem

No tempo em que o negro chegava fechado em gaiola
Nasceu no Brasil quilombo e quilombola
[...] E ao som do tambor primitivo: berimbau, atabaque e viola
Negro gritava: abre ala
Vai ter jogo de angola

[...] Dança guerreira, corpo do negro é de mola na capoeira
Negro embola e desembola
E a dança que era uma festa do dono da terra
Virou a principal defesa do negro na guerra

[...] perna de brigar camará
perna de brigar olê
fero de furar camara
ferro de furar olê
arma de atirar camara
arma de atirar olê oleeeeee

(Trecho do samba “Jogo de Angola”, de Mauro Duarte & Paulo Cesar Pinheiro)


 

Numa pequena aldeia na ilha Lubango, ao sul de Angola, existiu um povo chamado Mucope. Na época do acasalamento das zebras os machos travavam violentos combates entre si. O vencedor ganhava também as fêmeas. A partir da observação dos golpes desferidos pelas zebras os jovens guerreiros mucopes passaram a imitá-las, ao que denominaram de “N'Golo”, ou seja, “jogo da zebra”. Segundo Camille Adorno, em seu livro “A arte da Capoeira”,

A respeito das origens remotas da Capoeira é interessante transcrever Albano de Neves e Souza, que escreveu de Luanda, Angola, a Luis da Câmara Cascudo, afirmando: “Entre os Mucope do sul de Angola, há uma dança da zebra N’Golo, que ocorre durante a Efundula, festa da puberdade das raparigas, quando essas deixam de ser muficuemas, meninas, e passam à condição de mulheres, aptas ao casamento e à procriação. O rapaz vencedor do N’Golo tem o direito de escolher esposa entre as novas iniciadas e sem pagar o dote esponsalício. [...] Os escravos das tribos do sul que foram através do entreposto de Benguela levaram a tradição de luta de pés. Com o tempo, o que era em princípio uma tradição tribal foi-se transformando numa arma de ataque e defesa que os ajudou a subsistir e a impor-se num meio hostil. [...] Outra das razões que me levam a atribuir a origem da Capoeira ao N’Golo é que no Brasil é costume os malandros tocarem um instrumento aí chamado de Berimbau e que nós chamamos hungu ou m’bolumbumba, conforme os lugares, e que é tipicamente pastoril, instrumento esse que segue os povos pastoris até a Swazilândia, na costa oriental da África.” Estes relatos ilustram hipóteses quanto às origens da Capoeira. Note-se que essas danças são conhecidas no Brasil apenas através da literatura sobre o assunto. A história da Capoeira aguarda pesquisa minuciosa em terras africanas com o objetivo de constatar nessas danças os possíveis elementos formadores da Capoeira. (CAMILLE ADORNO, 1999, p. 19),

De conformidade, fazendo referência, ainda, às origens africanas remotas da Capoeira, José Luiz Oliveira, o Mestre Bola Sete, traz o seguinte comentário:

Conta-se que na África ela tinha o nome de “Jogo da Zebra” e era praticada com bastante violência. Fazia parte de um ritual onde os negros lutavam em um pequeno recinto e os vencedores tinham como premio as meninas da tribo que ficavam moças. (OLIVEIRA [MESTRE BOLA SETE], 1989, p. 21)

Os movimentos corporais encontrados atualmente na Capoeira são fragmentos da memória afro-descendente. Foi no Brasil que a Capoeira teve suas raízes consolidadas; foi aqui que ela foi criada pelos negros escravos, descendentes dos africanos vindos de Angola, como luta contra a opressão. Neste sentido, a Capoeira não é africana, nem brasileira, é afro-brasileira. Sua existência é o resultado cultural de uma longa luta de resistência do homem negro, travada ao longo dos quatro séculos em que entre nós se manteve a escravidão.

Sob o olhar da pesquisa historiográfica, escancara-se o horizonte da escravidão brasileira onde os negros desvelam-se em força de resistência ante os suplícios das injunções do jugo, lugar de esgotamento irrecorrível da relação inextricável entre opressão e ânsia de liberdade. Na esteira da escravidão, forjada na desterritorialização sistêmica do povo africano, transformado em mão-de-obra compulsória no, os escravos resistiram com uma rica produção cultural que recriou sua autonomia a partir do estabelecimento de identidades culturais e étnicas contidas nas memórias trazidas da África. Tais apontamentos lançam luz sobre o processo de invenção da Capoeira no colo dos processos da tradição, como fatores modelares da experiência cultural. De acordo com Rego (1968, p. 31),

No caso da capoeira, tudo leva a crer que seja uma invenção dos africanos no Brasil, desenvolvida por seus descendentes afro-brasileiros, tendo em vista uma série de fatores colhidos em documentos escritos e, sobretudo, no convívio e diálogo constante com os capoeiras atuais antigos que ainda vivem na Bahia, embora, em sua maioria, não pratiquem mais a capoeira, devido à idade avançada. Em livro recentíssimo, Câmara Cascudo defende a estranha tese de que “Existe em Angola a nossa Capoeira nas raízes formadoras e é, como supunha, uma decorrência de cerimonial de iniciação [...] Não tenho documentação precisa para afirmar, com segurança, terem sido os negros de Angola os que inventaram a capoeira ou mais especificamente capoeira Angola, não obstante terem sido eles os primeiros negros a aqui chegarem e em maior número dentre os escravos importados, e também cantigas, golpes e toques de capoeira falarem sempre em Angola, Luanda, Benguela [...]. Por outro lado, há também a maneira de ser desses negros, muito propensa aos folguedos, sobretudo dessa espécie. Braz do Amaral afirma que os negros de Angola eram insolentes, loquazes, imaginosos, sem persistência para o trabalho, porém férteis em recursos e manhas.

Misto singular entre o sagrado e o profano, as danças ritualísticas afro-descendentes, como o Afoxé, o Samba-de-roda, o Maracatu e o Jongo, são, ainda hoje, dotadas de extraordinário entusiasmo onde se circunscreve uma excepcional leveza dos corpos dos dançarinos ao som de cantos e instrumentos percussivos em ritmo alucinante. Os passos avivavam os gestos e a expressão, exercitam a ginga corporal e exacerbam os sentidos, numa verdadeira alteração de consciência que assume, comumente, uma forma particular de transe. É como se, em suma, a cultura negra fosse, a rigor, objeto de um processo de reencontro, onde as diversas identidades étnico/culturais são totalmente reeditadas – direta ou indiretamente, mas sempre de forma umbilical – a partir da ritualística afro-descendente. Uma dessas formas culturais foi o N’golo, que ensejou o surgimento da Capoeira.

E acabou brasileiro esse jogo-luta, como testemunhou Charles Ribeyrolles, um francês que aproveitou o tempo vivido em nossa terra - exilado por Napoleão III - para retratar os costumes da nação que se formava: “No sábado à noite, finda a última tarefa da semana, e nos dias santificados, que trazem folga e descanso, concedem-se aos escravos uma ou duas horas para a dança. Reúnem-se no terreiro, chamam-se, agrupam-se, incitam-se e a festa principia. Aqui é a capoeira, espécie de dança pírrica, de evoluções atrevidas e combativas, ao som do tambor do congo”. (CAMILLE ADORNO, 1995, p. 19)

De conformidade com Camille Adorno, Pedro Adib, em sua tese de doutoramento, intitulada: “Capoeira Angola: Cultura Popular e Jogos dos Saberes na Roda”, referindo-se às raízes da capoeiragem considera que:

No caso da capoeira, a historicidade - o “começo” – é brasileiro, mas o “princípio” – tanto o fundamento, quanto o mito – é africano. Existe uma forte corrente no discurso da capoeira angola, discurso esse respaldado por alguns pesquisadores, como Valdemar Oliveira (1985), de que a origem da capoeira está ligada a danças-rituais realizadas no sudoeste da África, região habitada majoritariamente pelo grupo bantu. Dentre essas danças-rituais, destaca-se o N’Golo que pode ser traduzido como Dança da Zebra, que ocorre durante a efundula, festa da puberdade das moças, quando essas deixam de ser muficuemas (meninas), e passam a condição de mulheres, aptas ao casamento e a procriação. O rapaz vencedor do N’Golo tinha o direito de escolher a esposa entre as novas iniciadas. Era considerada a tradição da luta dos pés, mas também, em função do contexto onde acontecia, apresentava características de dança ritual. (ADIB, 2004, p. 94)

Muitos escravos trazidos de Angola conheciam a prática do N'golo e com o passar do tempo perceberam que poderiam utilizar seus movimentos de luta como forma de combate e resistência aos maltratos de seus donos. A história da Capoeira é uma história de opressão a partir de conflitos étnicos, econômicos e culturais, sobre os quais se procura sustentar – na atualidade - as bases antagônicas de uma sociedade alicerçada na convivência entre a miséria e a opulência.

Concorre para a afirmação da África como cerne – ainda que distante - da capoeiragem o fato de existir lutas semelhantes no Atlântico Negro, como a Martinica, que conheceram como nós a escravidão das populações negras extirpadas da África. Nas palavras de Adib (2004, p. 94),

Desde a década de 1940, afirma Luiz Renato Vieira (1998), antropólogos como Herskovits têm apontado para a existência de “danças de combate” que trazem semelhanças com aquilo que conhecemos hoje como capoeira, não só na África - como o Muringue, em Madagascar -, como também em vários pontos da América, nos locais em que a diáspora negra se instalou. Relatos sobre o Mani em Cuba, e a Ladja na Martinica são dois exemplos dessas práticas. Sobre a Ladja, Vieira mostra a impressionante semelhança com a capoeira, verificada não somente do ponto de vista da execução de movimentos e golpes, como, o que é mais importante, o fato de congregar aspectos lúdicos, musicais (pratica-se ao som de atabaques) e de combate corporal. (ADIB, 2004, p. 94)

 

Em que pesem as óbvias influências hegemônicas da anfricanidade na construção histórica da Capoeira, os autores convergem para situar o seu surgimento no Brasil, a partir de uma multifacetada gama de influências oriundas de culturas bastante díspares. De fato, o processo de construção da Capoeira apresenta-se bastante complexo e se insere na fusão ou caldeamento de uma miscelânea de origens. Dos africanos a capoeiragem herdou os rituais do Candomblé e a ginga; os iorubas deixaram na Capoeira o ritmo ijexá e a rima tonal a cada três estrofes, enquanto os bantos deixaram, além das primeiras formas de inspiração baseadas no N’golo, o atabaque, o reco-reco, o agogô, o caxixi e o berimbau, que hoje emblematiza toda a capoeiragem. Os portugueses emprestaram à Capoeira o uso do improviso (chula), o pandeiro, a navalha e a própria língua portuguesa. Os indígenas deram à Capoeira seu nome, do tupi Caa (mato) Poeira (ralo).
Com efeito, Camille Adorno (1999, p. 08), considera que:

As origens do jogo da Capoeira se encontram no princípio da nação brasileira, e seu desenvolvimento acompanhou o relacionamento de negros, brancos e índios no continente americano. A terra descoberta aos olhos do colonizador seria o berço de uma nova cultura - fruto das peculiaridades do ambiente e da forma em que se processavam as relações entre os conquistadores europeus; os ameríndios - primeiros senhores do continente; e os africanos - trazidos à força para realizar todo o trabalho.

Nas palavras de Ribeiro (1968, p. 31),

No caso da capoeira, tudo leva a crer (que ela) seja uma invenção dos africanos no Brasil, desenvolvida por seus descendentes afro-brasileiros, tendo em vista uma serie de fatores colhidos em documentos escritos e, sobretudo no convívio e diálogo constante com os capoeiras atuais que ainda vivem na Bahia, embora, em sua maioria, não pratiquem mais a capoeira, devido a sua idade avançada.

Mais adiante, o mesmo autor faz a seguinte citação:

Portanto, a minha tese é a de que a capoeira foi inventada no Brasil, com uma série de golpes e de toques comuns a todos os que a praticam e que os seus próprios inventores e descendentes, preocupados com o seu aperfeiçoamento, modificaram-na com a introdução de novos toques e golpes, transformando uns, extinguindo outros, associando a isso o fator tempo que se incumbiu de arquivar no esquecimento muitos deles e também o desenvolvimento social e econômico da comunidade onde se pratica a capoeira. [...] A capoeira foi inventada com a finalidade de divertimento, mas na realidade funcionava como faca de dois gumes. Ao lado do normal e do quotidiano, que era divertir, era luta também no momento oportuno. (RIBEIRO, 1968, p. 35)

O itinerário histórico de um passado de lutas por liberdade desemboca, inexoravelmente, nas circunstâncias que motivaram o surgimento da Capoeira a partir das mazelas de uma existência humana minimizada à condição social do trabalho escravo. No Brasil, o povo afro-descendente foi braços e pernas de uma economia sustentada a partir da exploração do trabalho compulsório. Entre os séculos XVI e XVIII, as elites econômicas viram que a

[...] escravidão no Brasil era duplamente lucrativa: incrementava a circulação da mercadoria humana - possibilitando à burguesia traficante a acumulação de lucros -, e garantia elevados índices de produtividade com mão-de-obra escrava de custo mínimo. Enquanto mercadoria o africano trazia altíssimos lucros para os comerciantes da metrópole - o que não era o caso da escravidão dos indígenas, apenas um "negócio local". Quanto aos lucros na produção, a exploração da força do escravo garantia os recursos para a renovação dos meios de trabalho, assalariamento dos poucos trabalhadores especializados e a continuidade do tráfico. Aliás, a manutenção do tráfico era fundamental, visto que o crescimento vegetativo da população negra era insuficiente para atender à demanda. Essas razões terminaram dominando os religiosos que vieram para o Brasil e não apenas deram cobertura ideológica à escravidão, como a praticaram em larga e proveitosa escala. O padre Vieira, a quem se deve tanta indignação contra a exploração dos índios, colocado certa vez diante do dilema de ficar ao lado dos escravistas do Maranhão ou do lado dos silvícolas, não fugiu à conclusão de que era “fácil conciliar a consciência com o interesse”. Foi assim que tivemos desde o século XVI o Poder Temporal e o Poder Espiritual conciliando a consciência com o interesse, a cruz com o arcabuz, a castidade com o estupro, a fraternidade com a escravidão, o direito com a força. (CAMILLE ADORNO, 1999, p. 13-14)

O processo de transformação de tantos seres humanos em escravos buscou justificativa no entendimento do índio e do negro como feras indomáveis, seres incultos e não-civilizados. Não eram “gente”, logo, não haveria erro algum em tratá-los diferentemente. Contudo, a partir do século XVIII, em face das inúmeras transformações ocorridas no mundo europeu, a noção da existência de homens que por terem nascido entre a nobreza seriam superiores aos demais começa a ser combatida assiduamente pela burguesia. Seu desejo, ao buscar igualdade entre os homens, era o de ascender ao poder político. Em vigorando o princípio de que o poder político cabe tão somente à nobreza, a burguesia via-se alijada de, pela via da riqueza econômica, partilhar das decisões políticas que versavam sobre os rumos da vida social.

A lenta e demorada luta dos burgueses por ascensão política através da igualdade entre os homens inspiraram lutas sangrentas por libertação, como a da Revolução Francesa de 1789, que proclamou os princípios da igualdade, liberdade e fraternidade. No bojo destes procedimentos, figura, particularmente, a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América do Norte, em quatro de julho de 1776, elaborada, dentre outros por Thomas Jefferson, Roger Sherman e Samuel Adams. Eis um trecho da dita Declaração, citado por Arruda (apud MONTENEGRO, 1989, p. 34):

Nós temos por testemunho as seguintes verdades: todos os homens são iguais: foram aquinhoados pelo seu criador com certos direitos inalienáveis e entre esses direitos se encontram o da vida, da liberdade e da busca da felicidade. Os governos são estabelecidos pelos homens para garantir esses direitos, e seu justo poder emana do consentimento dos governos.

Na esteira do tom igualitário das narrativas filosóficas, políticas e econômicas vindo da Europa e dos Estados Unidos, incendeia-se no Brasil as idéias abolicionistas. Luiz dos Santos Vilhena, em seu escrito da época, intitulado “Notícias Soteropolitanas e Basílicas” (apud MONTENEGRO, 1989, p. 35), referindo-se ao terror do homem branco diante das multidões de escravos reunidos assim descreve a situação:

Não parece ser muito acerto em política o tolerar que pelas ruas e terreiros da cidade se façam multidões de negros, de um e do outro sexo, os seus batuques bárbaros a toque de muitos e horrorosos atabaques, dançando desonestamente (ao som de) canções gentílicas, falando línguas diversas e isto com alaridos tão horrendos e dissonantes que causam medo e estranheza ainda aos mais afeitos, na ponderação de conseqüências que dali podem provir. [...] Seria muito se desejar que estes se pusessem num estado de subordinação que julgassem quanto ao respeito, que qualquer branco era seu senhor, e não em altivez em que se vêem todos.

As ameaças veladas nas danças, nos batuques, nos cantos e capoeiragens residiam exatamente no reavivamento identidário de suas tradições e culturas, emergidas dos tempos de liberdade na África distante. Nesse sentido, reprimir a sublevação negra significava impedir a poder de severa repressão esses momentos de reunião e, assim, impossibilitar o reavivamento da memória de suas identidades.

Nas cidades, os locais prediletos de encontros entre escravos eram as praças, com seus chafarizes, onde as roupas de seus senhores a secar ao sol exigiam longas horas de espera para as lavadeiras. Tempo suficiente para lavar suas próprias roupas e cuidar de suas crianças. A lavagem de roupas nos chafarizes urbanos era atividade corriqueira até a primeira metade do século XIX e, propiciava a camaradagem entre os escravos. Nesses espaços públicos o escravo fugia temporariamente ao controle direto do seu senhor. Lá, as rodas de capoeiragem foram momentos clássicos de encontro, circulação de objetos, trocas de comidas e mistura de costumes. Os “batuques”, quando dos momentos de folga nas festividades religiosas, fizeram da rua e da praça locais de convívio, encontro e identidade cultural para os escravos das cidades. Nas palavras de Graham:

Ali [na rua] encontravam a diversão, combinavam encontros ou se reuniam por acaso nos ambientes acessíveis e familiares das praças, parques e mercados. [...] Assim, para os pobres, os lugares predominantemente sociais, onde forjavam relações e se associavam em atividades que os aproximavam uns dos outros, eram os locais públicos da rua [...]. Em termos de dia-a-dia, os lugares [procurados] eram a taverna ou a venda da esquina. (GRAHAM, 1992, p. 77).

Este é o modo como a rua e a praça pública comparecem como pólos identidários para o homem negro despolarizado e desterritorializado, possibilitando diuturnamente a partilha cultural de cunho afro-descendente. Nesses lugares de encontro os vínculos com os antigos costumes são mantidos, propiciando o contato com vestígios de crenças e costumes de origem africana, nem sempre com ligação direta à cultura ancestral africana, mas a identidades afro-descendentes, que passam a ser elaboradas. Essa experiência histórica, da fusão de especificidades culturais humanas, circunscreve – para dizê-lo em expressão metafórica – um “laboratório” de corpos e mentes em proveito das necessidades do homem negro.

No ano de 1835 o pintor alemão Johann Móritz Rugendas pintou uma cena que chamou “Jogar Capoeira” ou Danse de la guerre. No quadro, o cenário e a presença de vendedores ambulantes denunciam o ambiente urbano. Ao centro, dois combatentes gingam ao som de um tambor e o da direita parece mesmo estar armando um golpe. Em torno dos capoeiras forma-se um círculo (roda) de negros que delimita o espaço onde o jogo deve se dar e serve de escudo protetor contra os olhos da polícia. Eis as palavras de Rugendas:

Os negros têm ainda um outro folguedo guerreiro, muito mais violento, a capoeira: dois campeões se precipitam um contra o outro, procurando dar com a cabeça no peito do adversário que desejam derrubar. Evita-se o ataque com saltos de lado e paradas igualmente hábeis; mas, lançando-se um contra o outro mais ou menos como bodes, acontece-lhes chocarem fortemente cabeça contra cabeça, o que faz com que a brincadeira não raro degenere em briga e que as facas entrem em jogo, ensangüentando-a. (RUGENDAS apud CAMILLE ADORNO, 1995, p. 26)

No quadro “Jogar Capoeira”, percebe-se a rua e a praça como locais de encontro, provavelmente de escravos de diferentes senhores, onde o negro fugia momentaneamente do seu dono. Neste documento histórico que os pincéis de Rugendas eternizaram, a capoeiragem documenta rua e praça como lugares predominantemente sociais, onde se forjavam relações identidárias entre escravos através de atividades que os aproximavam uns dos outros, fazendo circular os diferentes costumes, assim como o faziam os batuques, onde se misturava em meio à festa, o sagrado e o profano.

De todo o exposto, pode-se concluir que os escravos praticavam no Brasil o Jogo da Zebra, não mais ritualisticamente, mas de forma lúdica e recreativa. Aos poucos, puderam perceber seu predicado marcial passível de ser direcionado contra a escravidão. Ao Jogo da Zebra somaram novos movimentos como o “Macaquinho” e o “Rabo-de-arraia”. Depois, disfarçavam-na em dança. Construída a luta, foi utilizada pelos escravos fujões que se escondiam em matos pequenos e ralos, de onde atocaiavam seus perseguidores, os capitães-do-mato, matando-os com golpes rápidos, certeiros e definitivos. Quando algum perseguidor escapava, voltava dizendo que um negro da capoeira lhe atacara, vindo daí sua designação. Como considera Rego (1968, p. 21), “Atualmente são quase unânimes os tupinólogos em aceitar o étimo caá, mato, floresta virgem, mais puêra, pretérito nominal que quer dizer o que foi, o que não existe mais, étimo este proposto em 1880 por Macedo Soares.”

Ensejada pela sua origem mestiça, a Capoeira tornou-se repositório das culturas que plasmaram o povo brasileiro. Fundamentado na música, na dança e no ritual originário do Candomblé, adaptou a tradição de louvação dos ancestrais (oriki) ao improviso da dança popular portuguesa denominada “Chula”. Herdeira da oralidade, a capoeiragem exibe nas cantigas e ladainhas sua sabedoria nas referencias históricas, aconselhamento ao modo africano, respeito aos idosos (tidos como guardiões do saber) e aos ancestrais. Sua filosofia é pragmática, um modo de ser e sobreviver que conserva as vozes ancestrais da escravidão. Num misto de prudência, calma, tolerância e esperteza (mandinga), a Capoeira – diante do perigo – ensina a esquiva, a negaça, a malícia, a simulação e a dissimulação. Mas ensina também a alegria, o jogo com ares de brincadeira, imprescindíveis – um e outro – á difícil sobrevivência de um povo seqüestrado, escravizado, humilhado e subsumido à condição de inferioridade econômica.

O jogo de Angola, lúdico, - e, em sua ludicidade, subversivo – tornou-se proscrito pela classe dominante, e colocado na marginalidade legal. Jogar Capoeira tornou-se crime. O cronista Luiz Edmundo (apud CAMILLE ADORNO, 1999, p. 26-30), em ‘O Rio de Janeiro no Tempo dos Vice-Reis’ fez o interessante registro dessa capoeiragem tatuada na cultura carioca do final do século XIX e início do século XX:

De volta, pelo caminho que vai à vala, penetramos a Rua dos Ourives, das de maior concorrência na cidade. À porta do estanco de tabaco está um homem diante de um frade nédio e rubicundo mostra um vasto capote de mil dobras, onde a sua figura escanifrada mergulha e desaparece deixando ver apenas, de fora, além de dois canelos finos, de ave pernalta, uma vasta, uma hirsuta cabeleira, onde naufraga em ondas tumultuosas alto feltro espanhol. Fala forte. Gargalha. Cheira a aguardente e discute. É o capoeira. Sem ter do negro a compleição atlética ou sequer o ar rijo e sadio do reinol é, no entanto, um ser que toda a gente teme e o próprio quadrilheiro da justiça, por cautela, o respeita. Encarna o espírito da aventura, da malandragem e da fraude; é sereno e arrojado e na hora da refrega ou da contenda, antes de pensar na chupa ou na navalha, sempre ao manto cosida, vale-se de sua esplêndida destreza, com ela confundindo e vencendo os mais armados e fortes contendores. Nessa hora o homem franzino e leve transfigura-se. Atira longe o seu feltro chamorro, seu manto de saragoça e aos saltos, como um símio, como um gato, corre, recua, avança e rodopia, ágil, astuto, cauto e decidido. Nesse manejo inopinado e célere, a criatura é um ser que não se toca, ou não se pega, um fluido, o imponderável, pensamento, relâmpago. Surge e desaparece. Mostra-se de novo e logo se tresmalha. Toda sua força reside nessa destreza elástica que assombra e diante da qual o tardo europeu vacila atônito, o africano se trasteja. Embora na hora da luta traga ele entre a dentuça podre o ferro da hora extrema, é da cabeça, braço, mão e perna ou pé que se vale para abater o êmulo minaz. Com a cabeça em meio aos pulos em que anda, atira a cabeçada sobre o ventre daquele com quem luta e o derruba. Com a perna lança a trave, o calço. A mão joga a tapona e com o pé a rasteira, o pião e ainda o rabo de arraia. Tudo isso numa coreografia de gestos que confunde. Luta com dois, com três, e até quatro ou cinco. E os vence a todos. Quando os quadrilheiros chegam com suas armas e os seus gritos de justiça, sobre o campo de luta nem traço mais se vê do capoeira feroz que se fez nuvem, fumaça e desapareceu. Na hora da paz ama a música, a doçura sensual do brejeiro lundu, dança a fôfa, a chocaina e a sarambeque pelos lugares onde haja vinho, jogo, fumo e mulatas. Freqüenta os pátios das tabernas, os antros da maruja para os lados do Arsenal. Usa e abusa da moral da ralé, moral oblíqua, reclamando pelourinho, degredo e às vezes, forca. Tem sempre por amigo do peito um falsário, por companheiro de enxerga um matador profissional e por comparsa, na hora da taberna, um ladrão. No fundo, ele é mau porque vive onde há o comércio do vício e do crime. Socialmente, é um cisto, como poderia ser uma flor. Não lhe faltam, a par dos instintos maus, gestos amáveis e enternecedores. É cavalheiresco para com as mulheres. Defende os fracos. Tem alma de Dom Quixote. E com muita religião. Muitíssima. Pode faltar-lhe ao sair de casa o aço vingador, a ferramenta de matar, até a própria coragem, mas não esquece do escapulário sobre o peito e traz na boca, sempre, o nome de Maria ou de Jesus. Por vezes, quando a sombra da madrugada ainda é um grande capuz sobre a cidade, está ele de joelhos, compassivo e piedoso, batendo no peito, beijando humildemente o chão, em prece, diante de um nicho iluminado, numa esquina qualquer. Está rezando pela alma do que sumiu do mundo, do que matou. É de crer que, como sentimento, o capoeira é realmente um tipo encantador.

É de se crer que até a primeira metade do século XIX, a Capoeira tenha sido uma arte essencialmente experimentada pelo escravo. Contudo, a partir daí a inclusão de homens livres e libertos implicou na inauguração de uma alteração da composição étnica dos seus praticantes. As cartas de alforria; a Lei do Ventre Livre, de 1871; a Campanha abolicionista de 1880; e a Lei dos Sexagenários, de 1885, acabam alastrando a prática da Capoeira. Gente do povo, não só negros, mas agora, especialmente, mulatos, e depois, elite branca e também estrangeiros, estes últimos predominantemente portugueses, vieram a compor a capoeiragem. A ampliação da população de capoeiristas introduz grandes mudanças na Capoeira como a difusão da navalha, emprestada dos costumes lusitanos. A Capoeira transforma-se num fenômeno cultural urbano que toma conta de grandes centros como o Rio de Janeiro, Salvador e Recife. Nas palavras de Rego, (1968, p. 260), “No Brasil, os grandes focos de capoeiristas sempre estiveram em Pernambuco, no Rio de Janeiro e Bahia”.

Os paradoxais motivos da abolição da escravatura são bastante conhecidos. Abolir a escravidão mostrou-se uma medida falaciosa que visava, em última análise, emprenhar a economia do Brasil dos meios necessários ao seu emparelhamento junto às demais economias mundiais e, em especial, aos mercados exportadores internacionais. O escravo era basicamente conhecedor das formas agrícolas de subsistência em vigor na África. O europeu, por seu lado, já desenvolvera meios tecnológicos da produção em larga escala. Os antigos barões cafeeiros preferiram empregar a mão-de-obra do imigrante italiano, mais qualificada. Além desse fato, no horizonte das transformações mundiais do século XIX, o Brasil figurava como último bastião do escravismo, já abolido em todos os países. Acrescente-se a isso o número vertiginoso de insurreições negras, cada vez mais freqüentes nos últimos idos da escravidão, a minimização do poder imperial, a entrada paulatina de imigrantes europeus no país e os olhares enamorados da burguesia local para a perspectiva de industrialização da economia nacional.

Metaforizando a radical urbanização da vida social exigida pelo processo da Revolução Industrial na Inglaterra um século antes da abolição da escravidão no Brasil, grande parte dos negros libertos rumou para as cidades em uma busca vã por trabalho e dignidade. Ao negro não coube nem ao menos o direito de vender a única coisa que lhe restara: sua mão-de-obra. Além da pouca oferta de trabalho, havia a concorrência com estrangeiros que carregavam a vantagem da cor da pele e de uma melhor educação e qualificação para o trabalho. A população de ex-escravos se amontoava em cortiços insalubres onde as sucessivas epidemias faziam lugar comum ou, na maioria das vezes nas encostas, morros e barrancos da periferia da urbe, onde nenhum branco se arriscava a constituir moradia. No rumo destas reflexões Darcy Ribeiro, em sua obra “O Povo Brasileiro”, lembra que:

[...] o Brasil, surgindo embora pela via evolutiva da atualização histórica, nasceu já como uma civilização urbana. [...] Nossa primeira cidade, de fato, foi a Bahia, já no primeiro século, quando surgiram, também, o Rio de Janeiro e João Pessoa. No segundo século, surgem mais quatro: São Luís, Cabo Frio, Belém e Olinda. No terceiro século, interioriza-se a vida urbana, com São Paulo; Mariana, em Minas; e Oeiras, no Piauí. No quinto século, a rede explode, cobrindo todo o território brasileiro. No curso desses séculos as cidades cresceram e se ornaram como portentosos centros de vida urbana, só comparáveis aos do México. Os holandeses enriqueceram Recife. A riqueza das minas se exibiu em Ouro Preto e outras cidades do ouro, engalanou a Bahia e, depois, o Rio. A valorização do açúcar translada os senhores de engenho para Recife e para a Bahia, onde ergueram seus sobrados e viveram a vida tão bem descrita por Gilberto Freyre (1935). [...] A abolição, dando alguma oportunidade de ir e vir aos negros encheu as cidades do Rio e da Bahia de núcleos chamados africanos, que se desdobraram nas favelas de agora. A crise de desemprego que ocorre na Europa na passagem do século nos manda 7 milhões de europeus. Quatro e meio milhões deles se fixaram definitivamente no Brasil, principalmente em São Paulo, onde renovaram toda a vida econômica local. Foram eles que promoveram o primeiro surto de industrialização, que mais tarde se expandiria com a industrialização substitutiva de importações. (RIBEIRO, 2005, p. 193-194)

Expulso de suas moradias nas fazendas e não tendo outra opção, viram-se obrigados a morar nas circunvizinhanças das grandes cidades, muitas vezes, encostas e morros onde proliferaram as “favelas”. A propósito do termo, sua inauguração se deu após a campanha de Canudos, quando os ex-escravos feitos soldados à força, tendo ficado instalados num morro daquela região chamado “Favela” (nome alusivo à planta favela, abundante no lugar), ao retornarem ao Rio de Janeiro com suas baianas recém-desposadas, se instalaram no alto do morro da Providência e passaram a chamá-lo “Morro da Favela”.

Obstaculizados ao trabalho regular, os negros libertos, mesmo antes da abolição, entregavam-se ao subemprego e, na ausência destes, a negócios escusos. No curso dessas águas foi que se desenvolveu, na cidade do Rio de Janeiro do século XIX, as Maltas de Capoeira, espalhadas por diversos bairros cariocas. Cada malta comandava uma região e não admitia a invasão de seu território. Trajavam roupas brancas, calça larga com boca de sino, camisa ou terno de linho com sapato de bico fino e lenço de seda no pescoço como proteção de navalhadas. Na cabeça chapéu e nas mãos faca, navalha ou bengala. A navalha e a bengala foram introduzidos na capoeiragem por influência dos lisboetas, portugueses meliantes que expulsos para a colonia misturaram-se às maltas, compartilhando da vida boêmia junto com prostitutas, vadios, aristocratas, imigrantes e intelectuais. Gostavam de rodas de samba, comícios, festas e muvucas de todo tipo, onde se entregavam ao furto e à briga com outros malandros. Seus combates com a polícia costumeiramente acabavam com os soldados estirados ao solo.

Embora as maltas fossem tradicionalmente formadas por negros e mulatos, os brancos também se faziam presentes. Eis as maltas mais destacadas: Carpinteiros de São José, Conceição da Marinha, Glória, Lapa, Moura, dentre outras. No período da Proclamação da República duas grandes maltas estavam consagradas: os Nagoas e os Guaimums. Os primeiros atuavam na periferia, a Cidade Velha, e estavam ligados politicamente aos monarquistas conservando uma tradição escrava e africana. Os segundos atuavam na região central, a Cidade Nova e estavam ligados aos republicanos, apresentando uma tradição mestiça, absorvendo brancos imigrantes, crioulos, homens livres e intelectuais. Os chapéus diferenciavam os integrantes das duas grandes maltas: os Nagoas usavam um chapéu com uma cinta de cor branca sobre o vermelho e as abas para frente e para baixo.
Os Guaiamuns usavam um chapéu com uma cinta de cor vermelha sobre a branca e as abas para frente e para cima.

Os conflitos entre as maltas ocorriam, em geral, durante comícios ou nos dias de festa, quando uma invadia o território da outra. Os conflitos se resolviam individualmente: um dos integrantes da malta lutava com um integrante da outra. O restante das duas maltas assistia e, independente do resultado, todos aplaudiam no final. As maltas de capoeiristas do século XIX podem ser comparadas às atuais formações que dominam o tráfico de drogas nos morros cariocas: grupos de indivíduos marginalizados, em sua maioria, negros e mestiços, cuja atividade acha-se mantida por complexas redes de poder que abrigam produtores, consumidores e traficantes de drogas.

Aludindo as atitudes meliantes das maltas, em 1872 levantam-se as primeiras vozes pedindo a criminalização da Capoeira. Seis anos depois, novamente se fala sobre o assunto, porém observa-se já um aumento significativo na perseguição aos capoeiras. Nesse período muda a argumentação policial e o discurso da repressão concilia-se com os pressupostos eugenistas vigentes na época que preconizavam uma inferioridade racial para o negro e sua cultura. O medo do “contágio moral” do cidadão branco, “respeitável”, com a “barbárie negra” orientou as ações das autoridades e, embora não gozando de consenso social, a capoeiragem é proibida em todo o território nacional em 11 de outubro de 1890 pela promulgação da Lei nº. 487, de autoria de Sampaio Ferraz, que previa uma punição de dois a seis meses de trabalhos forçados na ilha de Fernando de Noronha. No artigo 402, que tratava "dos vadios capoeiras”, lia-se:

Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumulto ou desordem, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal. Pena - prisão celular de dois a seis meses. Parágrafo único: é considerada circunstância agravante pertencer o capoeira a algum bando ou malta. Aos chefes e cabeças se imporá a pena em dobro.

A lei acabou atingindo ilustres membros da nobreza como nos conta o conhecido episódio de José Elísio dos Reis, o Juca Reis, filho do conde de Matosinhos, proprietário do jornal O País. Afamado capoeirista, Juca Reis, retornando de Portugal ao Brasil, foi preso por Sampaio Ferraz. Sua liberdade somente foi conseguida graças à influência de Quintino Bocaiúva, então ministro das Relações Exteriores, que ameaçou renunciar ao cargo se Juca Reis não fosse libertado. Seu pedido foi aceito pelo marechal-presidente Deodoro da Fonseca e o capoeira Juca Reis, libertado, retornou a Portugal. Outros tantos não tiveram sua sorte.

O advento da República foi uma imensa esperança coletiva de igualdade e democracia que seduziu não só as populações negras, como também os brancos pobres. Entretanto, aos negros e pobres ela trouxe desprezo, hostilidade e decepção. Sob os ventos da modernidade que sopravam da Europa e dos Estados Unidos, a segregação aos pobres, documentada pela severa perseguição aos capoeiras, buscava referendo na concepção dos pobres como sujeitos sujos potencializados como transmissores de doenças endêmicas.

Transformadas em modelos europeus de urbanização e industrialização, as cidades afastaram os pobres para longe de seus centros, em nome da higiene, do sanitarismo, da eugenia e do progresso. Em fins do governo Rodrigues Alves, o processo da modernização da República havia resultado numa civilidade para os ricos construída sobre as agruras da falta de saneamento e de estrutura urbana para a majoritária parcela pobre da população. 

Emergindo dos movimentos sanitaristas do final do século XIX, o "mito da saúde perfeita", gerador de uma medicalização exacerbada e de campanhas de atividades físicas centradas no indivíduo, ressuscita a legalidade da Capoeira no período do Estado Novo, após um recesso de quase 50 anos. Procurando fugir da clandestinidade e da ilegalidade, Manoel dos Reis Machado, o Mestre Bimba, objetivando, ainda, a construção de um sistema de defesa pessoal, criou, na década de 1930, "Capoeira Regional Baiana". Getúlio Vargas, então presidente da República, após assistir a uma apresentação de Capoeira Regional conduzida por Mestre Bimba libera sua prática. Sob a simpatia do poder hegemônico, a luta regional baiana, tendo já se militarizado nas décadas de 1930-1940 e esportivizado na década de 1970, reconhecida como esporte nacional pelo Comitê Olímpico, tornou-se refém da indústria cultural, da competitividade, da agressividade, da ligeireza urbana, do consumismo e da moda.

À margem desse processo, grande parte dos mestres, herdeiros dos antigos ensinamentos, permaneceu fiel aos ritos tradicionais, sob a liderança da memória de Vicente Ferreira Pastinha, o Mestre Pastinha, fundador do "Centro Esportivo de Capoeira Angola", origem da atual denominação “Capoeira Angola”, em alusão ao respeito às raízes africanas. Tanto a Angola como a Regional, na esteira dos processos mundializantes da economia e das formas culturais se difundiram pelo mundo todo.

8. CAPÍTULO 7

8.1. Escola, Educação Física e capoeiragens

 

A doutrina materialista de que os homens são produtos das circunstâncias e da educação, e de que, portanto, homens modificados são produtos de circunstâncias diferentes e de uma educação modificada, esquece que as circunstâncias são modificadas precisamente pelos homens, e que o próprio educador precisa ser educado.

(Karl Marx)

As questões da educação sempre estiveram na pauta dos debates, muitas vezes acalorados, subservientes do fazer político nas intrincadas relações humanas constitutivas das sociedades. Uma vez que diferentes construções culturais se imbricam hoje no espaço social, parece relevante que sejam lançados olhares para os processos de entrecruzamento do inextricável acervo cultural presente na educação.

Requisitado, o testemunho da história revela um trajeto da humanidade marcado pela íntima ligação entre educação e cultura. Este testemunho, por si só, dá conta de justificar a manutenção de um contrato vivo e atuante entre filosofia e educação que possa desvelar na contemporaneidade o processo de transgressão das formas culturais populares pelo mercado. Este é o ponto central de um mundo de engodos onde tudo o que possa se tornar público já se acha tão profundamente demarcado pela indústria que não pode surgir sem exibir antecipadamente os signos do capital.

1. Atos industriais I: assédios culturais da modernidade

Sob o jugo da força econômica, sempre presente nas estruturas sociais, uma quantidade imensurável de teorias pedagógicas tem se dedicado, ao longo do tempo, à formação de verdadeiros cemitérios culturais. Ainda que tal afirmativa seja discutível, a flagelação indígena em nosso país é emblemática das formações pedagógicas tradicionais que por aqui se aninharam, gestadas sob a égide da religiosidade e obedientes, em última instância, aos ditames predatórios do capital.

Quando o branco aqui chegou, encontrou mais de cinco milhões de índios, distribuídos em 900 nações, com suas tradições, costumes e crenças, suas formas de “bem viver”. Entre eles não haviam ricos e pobres. Sabiam fazer o manejo adequado da natureza. Viviam felizes com suas crianças, respeitando as mulheres e dando um tratamento digno aos idosos, tidos como fonte de sabedoria e patrimônio vivo das futuras gerações. Após o contato com o branco, os índios ficaram sabendo que eram “pobres” e “pecadores”, que a sua forma de vida, seus credos e sua religião não se faziam adequados. Vitimados por um horrendo genocídio entremeado por inúmeras malsucedidas tentativas de escravizá-los, poucos sobreviveram e hoje restam cerca de 500 mil aborígines brasileiros, distribuídos em pouco mais de 200 nações, que vêm sofrendo, desde então, um gradativo processo de transformação de sua forma cultural numa cultura cada vez mais mercadológica, mais “civilizada”. Entres os muitos estudos que endereçam suas análises aos substratos do contato entre diferentes culturas, comparece a pesquisa de Carlos Rodrigues Brandão, disponibilizada no livro “Identidade e Etnia: Construção da Pessoa e Resistência Cultural”. De acordo com Brandão (1986, p. 91-92),

A história dos homens tem o poder de quase sempre negar a retórica de seus discursos oficiais. Brancos civilizaram os índios que sobraram depois de lhes tomar as terras e reduzi-los à força de trabalho ao seu serviço. “Aculturação” e “mudança social” não são processos sociais desligados de outros processos que, mais do que paralelos, são muitas vezes parte da determinação da “mudança”. [...] Quando acontece um contato entre grupos etnicamente diferentes e politicamente desiguais, o que se obtém como resultado não é o produto de um mero encontro entre duas culturas: tecnologias, regras de conduta, sistemas de crenças. Encontro de que ambas se enriquecem por trocas mútuas do que é ou passa a ser necessário para cada uma, ou do qual uma cultura sai enriquecida e a outra debilitada em alguns de seus elementos, perdidos ou desfigurados. Ou um encontro em que uma cultura desaparece sob o peso dos produtos materiais e “valores espirituais” da outra. Não se obtém, do mesmo modo, um contato entre dois tipos de sociedades autônomas uma diante da outra, cujas histórias continuam a ser escritas independentemente de existirem, agora, uma frente à outra.

A despeito De acordo com os estudos de Marx, a infra-estrutura - origem das riquezas e do desenvolvimento tecnológico e base material da sociedade capitalista - compreende o conjunto dos meios sociais de produção e das forças produtivas. Sobre a infra-estrutura, desenvolve-se a superestrutura, que abarca a esfera da vida política, espiritual e cultural. Não é possível compreender os aspectos superestruturais da cultura para além da base material sobre a qual ela encontra-se alicerçada.

Nossa formação sociocultural encontra-se fincada num longo período de predomínio do espaço rural, muito embora tenhamos nascido sob o ímpeto de modernização por que passava a Europa do século XVI. Nascemos sim na modernidade, mas de uma aliança entre a monarquia tardia de Portugal e a classe mercantil, num misto sacro-profano, para utilizar um termo que mais tarde irei abordar, de cristandade e modernidade.

No período colonial as vilas se formavam como espaços de trocas, coleta, processamento e escoamento de produtos nacionais para a Coroa. A formação das cidades é lenta e elas estão longe de constituírem unidades produtivas e comerciais autônomas. À medida que as fazendas se reforçam como unidade de produção, criando excedentes que circulam pelas cidades, surge, aí, uma classe comercial, fazendo despontar alguns centros urbanos já com milhares de habitantes. Esses centros continuam, no entanto, dependentes da produção agrária. Vale dizer que entramos no último século como uma sociedade agrária sob todos os aspectos: produção econômica, distribuição demográfica e processos culturais.

Malgrado a grande variedade de formas culturais existentes, nenhuma cultura pode desenvolver-se isolada, imune aos ventos e tempestades emanados de outras formas culturais. Contudo, o contato entre culturas díspares não é garantia da melhor qualidade daquilo que ele comunica. Tampouco as transformações da cultura podem acontecer subordinadas ao aligeiramento típico da indústria, nem muito menos obedientes ao processo de sua danificação e corrupção exigida pelo mercado. Na contra-mão desta reflexão, a emergência da sociedade capitalista globalizada, mundializada, industrializada, informatizada, multiculturalizada, pós-modernizada, anuncia as “boas-novas” de uma sociedade da felicidade, marcada pela exacerbação técnica e por uma vertiginosa comunicação entre as identidades culturais do mundo todo.

2. Atos industriais II: assédios culturais da pós-modernidade

A indústria cultural revoga e reinventa ficticiamente a felicidade em como promessa falaciosa de redenção diante das agruras da coletividade. Sobre as promessas de concretização da felicidade através da mundialização da indústria cultural, Zuin, Pucci e Ramos-de-Oliveira, fazem a seguinte reflexão:

[...] será que essa massificação da produção simbólica tem exclusivamente um caráter progressista? [...] Ora, a grande pretensão da proposta de formação cultural burguesa era a de que os indivíduos livres e racionais poderiam fazer uso da vontade e do livre-arbítrio [...]. O próprio conceito de formação cultural é partidário da idéia de uma humanidade sem injustiças sociais, onde todos possuem as mesmas chances de lutar pela possibilidade de ascensão na hierarquia social. Fica difícil acreditar no comprimento dessa promessa justamente quando toda a produção material e espiritual é erigida sobre a subsunção do valor de uso ao valor de troca das mercadorias e da divisão desigual entre trabalho manual e espiritual. [...] A produção cultural é construída de forma a não propiciar aquilo que não pode cumprir desde o seu começo: a garantia de uma sociedade racional, livre e igualitária. (ZUIN; PUCCI; RAMOS-DE-OLIVEIRA, 2000, p. 55)

Para além do mundo das aparências, uma análise desapaixonada da globalização desvela a vastidão de um mundo configurado e privilegiado pelos aspectos arbitrários de uma sociedade elaborada sob o signo do consumo. No mundo pós-moderno, caracterizado pela mundialização econômica e cultural, ergue-se dentre os sepulcros das identidades culturais adulteradas e industrializadas – uma cultura mercadológica sediada na adesão compulsiva ao consumo dos produtos degenerados e degeneradores que a indústria cultural lança cotidianamente no mercado.

A universalização da condição humana, por meio da mundialização da cultura transmutada em mercadoria, ao invés de provocar emancipação é causa e conseqüência de isolamento e insensibilidade. O rompimento radical dos contatos humanos diários torna a maior parte dos habitantes da sociedade industrial empobrecidos culturalmente e encapsulados na promessa da felicidade vinculada à mentira do consumo de produtos efêmeros fetichizados como essenciais. Este tipo de conduta é cotidianamente reforçado pela mídia. De acordo com Birnbaum (1969, p. 124), “A sensibilidade estética, o sentimento religioso (acima de tudo, a crença na transcendência), as emoções entre as pessoas, a própria sensualidade foram transformados pelo novo ambiente industrial”. O homo faber fragmentou-se diante da santificação do consumo que a tudo e a todos devora vorazmente.

Por razões filosóficas e metodológicas, não creio que o reconhecimento das diferenças culturais – e da presença de mecanismos de opressão e jugo entre elas - seja o derradeiro horizonte possível para a política. A lógica apologética das identidades culturais e do intercambio entre elas como meio de redenção humana tende a deslocar para o campo da cultura os conflitos sociais, obliterando seu fundamento econômico. De onde se conclui que o multiculturalismo funciona no sentido contrário ao de suas propostas. A mundialização das identidades culturais populares é uma falácia do início ao fim. Mundializa sim, mas os produtos alterados da indústria cultural. Nas palavras de Birnbaum (1969, p. 126),

A industrialização da cultura impôs aos modelos de comportamento da atividade cultural, aos padrões de julgamento e a formas de organização derivadas dos mesmos processos de produção da máquina. A própria noção de uma cultura de massa pressupõe, da parte dos que comandam o mercado cultural, capacidade material para lidar com grandes públicos compostos de consumidores culturais – incapazes por si só de organização em seu próprio interesse. [...] A cultura já não se concretiza em relações individuais com a natureza e a sociedade, mas numa enorme multiplicidade de formas, processos e entidades que parecem independentes, destacados da sua origem na atividade humana.

A indústria cultural culmina por vendar os olhos do consumidor num contexto ofuscante onde ser trava a dolorosa batalha em busca de um prazer prometido que nunca acontece. Antes mesmo de o mercado fazer a pergunta, o consumidor já se sabe de antemão a resposta: como se deve comportar, deixar conduzir. Esta é a lógica na qual os fatos suplicam pela reprodução da mesmice, onde a aparência caminha de mãos dadas com a servidão voluntária diante do horror de um mundo marcadamente desigual e desumano em sua desigualdade. Mas que se apresenta como igualitário. Um mundo de escravos felizes.

A indústria cultural, que na primeira década do século XX dominava pelo apelo da fantasia pueril, agora arrebata as consciências e os desejos por doses maciças de violência e pornografia. A chamada Sociedade do Conhecimento pode cumprir sua promessa, ou seja, reverter este processo ao atribuir à comunicação um impacto civilizatório, emancipador? Ora, a própria noção de "Sociedade do Conhecimento” tem uma trajetória encharcada de ambigüidades. Em seu livro “Sociedade do Conhecimento ou Sociedade das Ilusões”, Newton Duarte reúne quatro ensaios através dos quais analisa, sob a perspectiva crítica do materialismo histórico/dialético, o debate contemporâneo em torno do conhecimento mundializado e suas implicações para a educação. Com profundidade o autor finca suas análises nas adesões ao pensamento pedagógico pós-moderno. No primeiro capítulo, “As pedagogias do ‘Aprender a Aprender’ e algumas ilusões da assim chamada Sociedade do Conhecimento” o autor, Newton Duarte trata de analisar algumas tendências pedagógicas recentes e seus pressupostos. Descreve os vínculos entre a Pedagogia das Competências, o Construtivismo e a Escola Nova, denominando-os de pedagogias do “aprender a aprender”. Para Duarte, o lema “aprender a aprender” considera que a aprendizagem do indivíduo por si mesmo tem mais valor que a aprendizagem por meio da transmissão por outras pessoas. Duarte, então, enfatiza os aspectos alegóricos (ideológicos) contidos no campo desses conceitos “novos” e alerta para os perigos da adesão intelectual à tão propalada “Sociedade do Conhecimento”:

O que seria essa tal sociedade do conhecimento? [...] Pois bem, de minha parte quero deixar bem claro que de forma alguma compartilho da idéia de que a sociedade na qual vivemos nos dias atuais tenha deixado de ser, essencialmente, uma sociedade capitalista. Sequer cogitarei a possibilidade de fazer qualquer concessão à atitude epistemológica idealista para a qual a denominação que empreguemos para caracterizar nossa sociedade dependa do “olhar” pelo qual focamos essa sociedade: se for o “olhar econômico” então podemos falar em capitalismo, se for o “olhar político” devemos falar em sociedade democrática, se for o “olhar cultural” devemos falar em sociedade pós-moderna ou sociedade do conhecimento ou sociedade multicultural ou sei lá mais quantas outras denominações. Essa é uma atitude idealista, subjetivista, bem a gosto do ambiente ideológico pós-moderno. Eu reconheço, e não poderia deixar de fazê-lo, que o capitalismo do final do século vinte e início do século vinte e um passa por mudanças e que podemos sim considerar que estejamos vivendo uma nova fase do capitalismo. Mas isso não significa que a essência da sociedade capitalista tenha se alterado [...]. A assim chamada sociedade do conhecimento é uma ideologia produzida pelo capitalismo, é um fenômeno no campo da reprodução ideológica do capitalismo. Assim, para falar sobre algumas ilusões da sociedade do conhecimento é preciso primeiramente explicitar que a sociedade do conhecimento é, por si mesma, uma ilusão que cumpre uma determinada função ideológica na sociedade capitalista contemporânea. (DUARTE, 2003, p. 36)

No capítulo 3, “A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco”, Duarte referindo-se sobre os pressupostos vygotskyanos na questão da apropriação da cultura pela criança, considera fundamental a mediação do adulto:

Assim como a concepção pedagógica de Dermeval Saviani, também a psicologia vigotskiana apoia-se no método dialético de Marx, em cujo âmbito não há margem nem para o evolucionismo ingênuo (seja no plano da história da organização social humana, seja no plano da história do conhecimento), nem para o relativismo que nega a existência de formas mais desenvolvidas de vida social e de conhecimento, nem, finalmente, para o subjetivismo que nega o conhecimento enquanto apropriação da realidade objetiva pelo pensamento. Talvez não seja demais explicitar que ao ressaltar esses aspectos da epistemologia de Marx, da psicologia de Vigotski e da pedagogia de Saviani, estou intencionalmente contrapondo-me à tônica dominante nos ideários pedagógicos contemporâneos, os quais freqüentemente concebem o processo educativo como um processo de interação entre significados subjetivos e individuais em oposição à transmissão de um saber objetivo socialmente construído. (DUARTE, 2003, p. 77-78)

O autor finaliza argumentando sobre a necessidade de uma educação escolar que se coloque enquanto transmissora do saber - objeto do trabalho educativo na escola -, levando o indivíduo à superação dos conceitos cotidianos pelos conceitos científicos, conhecendo de forma mais concreta, pela mediação das abstrações, a realidade da qual faz parte (DUARTE, 2003, p. 82).

Diante do exposto, tornam-se compreensíveis – mas nem por isso aceitáveis – os argumentos que identificam como um processo libertário o fato de que na contemporaneidade milhões de seres humanos têm acesso à informação e à cultura. Na esteira da complexidade cada vez maior do capital, a significação do próprio conceito “cultura” aceita o abismo existente entre os seres humanos e os produtos da atividade humana, notadamente marcado pela divisão do trabalho, que também marca a cultura industrial/urbana. A cultura já não se concretiza a partir de relações comunitárias, de pertencimento. No mundo do trabalho, a falta de tempo para diálogo entre os indivíduos, como significado residual da indústria, transporta o ser humano para um local distanciado de suas vidas, onde o todo não existe e o contato se transforma num diálogo de surdos.

3. Onde foi que erramos?

O ideal de uma sociedade do conhecimento confere explicação simplíssima, elegante ao máximo, para uma sociedade que não é nem simples e nem elegante na elaboração de seus engodos e falcatruas. Por meio de uma leitura mais aligeirada, preguiçosa mesmo, poder-se-ia ter a impressão de que o que mais interessa é o diálogo, a mundialização das identidades culturais e a democracia pelo esparrame de informações e conhecimentos a velocidades cada vez mais fantásticas. Contudo, no olhar ao desviante, na recusa à banalidade de respostas rápidas e matematicamente acertadas, desvela-se uma incongruência entre a essência e a aparência do que está dito, fazendo com que se desnude o antagonismo entre as promessas e as realizações do mundo industrial. Em “Mínima Moralia”, Adorno revela sua percepção da relação entre poder e conhecimento:

Entre conhecimento e poder não existe apenas uma relação de lacaio, mas também uma relação de verdade. [...] Muitos conhecimentos são fúteis, se desproporcionados à relação de forças, ainda que formalmente possam ser corretos. Quando o médico emigrado diz: “Prá mim, Adolf Hitler é um caso patológico”, é possível que, no fim das contas, os exames clínicos confirmem sua asserção, mas a desproporção que há entre essa frase e a catástrofe objetiva que se abate sobre o mundo em nome daquele paranóico torna ridículo tal diagnóstico, através do qual quem diagnostica quer apenas pavonear-se. Talvez Hitler seja “em si” um caso patológico. Mas, com toda certeza não “para ele”. A vaidade e a pobreza de tantas declarações de emigrados contra o fascismo estão intimamente ligadas a isso. As pessoas que pensam nas formas de juízo livre, distanciado, desinteressado, foram incapazes de encaixar a experiência da violência naquelas formas, experiências que realmente anula tal pensamento. A tarefa quase insolúvel consiste em não se deixar imbecilizar nem pelo poder dos outros, nem por nossa própria impotência.

(ADORNO, 1993, p. 48)

 

As tramas e teias das intrincadas relações inter e multiculturais impermeabilizam as bases de sustentação do status ontológico de poder e domínio através da elaboração de mecanismos de controle cada vez mais sutis e dissimulados que têm como pano de fundo a provisoriedade, a alienação e a reificação. No conluio deste proceder, liquida-se a memória e a recordação como restolhos de um burburinho de impulsos, tensões, conflitos, encantos e desencantos, que não existem mais; como a saudade de ser sem nunca ter sido. Neste contrapelo há sempre uma história que poderia ter sido, mas que não foi, onde crescem e amadurecem nossas crianças até tornarem-se adultos engolfados numa existência danificada pela opressão da desigualdade social. E os educadores, como que vestindo os trapos antigos e muito usados da responsabilidade a eles atribuída unilateralmente pela falência do que quer que seja dentro da escola, diante da dissolução de tudo o que secularizou-se como sólido perguntam-se: “onde foi que erramos?” Outros, ainda, pais evadidos da escola, que outra sorte sonharam para seus rebentos, talvez percam noites de sono perguntando a si mesmos: “onde foi que erramos, já que todo o resto da sociedade está no lugar?

Certamente a educação – no sentido de aprendizado dos signos sociais - não acontece no vazio. Tampouco ela tem sido em sua essência um grito de amor e esperança ao oprimido, à infância, à juventude ou ao adulto carente de alfabetização. Há uma procissão interminável de signos sociais e valores definidos pelo mundo da produção e do consumo onde estão - habilitados pelas leis do mercado - comportamentos, crenças, dúvidas, certezas insólitas, informações e conhecimentos a serem adquiridos na esteira da sucedânea infinda dos modismos da globalização. Desse modo, o ato de educar se afirma, historicamente, diante das significações da sociedade onde acontece, reproduzindo-a.

Conforme cita Vieira Pinto (2000:29-30), a educação atua sobre o desenvolvimento do ser humano no intento de integrá-lo como novo ser social e conduzi-lo a aceitar e buscar os fins da sociedade.

A educação é a transmissão integrada da cultura em todos os seus aspectos, segundo os moldes e pelos meios que a própria cultura existente possibilita. O método pedagógico é função da cultura existente. O saber é o conjunto dos dados da cultura que se têm tornado socialmente conscientes e que a sociedade é capaz de expressar pela linguagem. Nas sociedades iletradas não existe saber graficamente conservado pela escrita e, contudo, há transmissão do saber pela prática social, pela via oral e, portanto, há educação (Pinto, 2000:31).

Acima dos acalorados debates que se agitam gigantemente entre as díspares tendências pedagógicas secularizadas na empunhadura de uma multifacetada coletânea de bandeiras de liberdade, emancipação, autonomia e superação social, paira ainda a tarefa renitente e bastante vasta de fazer da escola um locus de educação, no mais largo sentido da palavra. “Porque a chave não está lá, entre a lousa e o papel: está no campo e na cidade, nas plantações e nas ruas” (RAMOS-DE-OLIVEIRA, 1998, p. 18). Diante da lógica irretocável do capital, distinções verticais separam socialmente os que têm dos que não tem acesso aos bens construídos pela humanidade, em especial a escola e, em seu interior, o conhecimento. Como a verdade imortalizada (até quando?) na música “Cidadão”, de Zé Ramalho:

[...] Tá vendo aquele colégio moço
Eu também trabalhei lá
Lá eu quase me arrebento
Fiz a massa, pus cimento
Ajudei a rebocar
Minha filha inocente
Vem prá mim toda contente
"Pai vou me matricular"
Mas me diz um cidadão:
"Criança de pé no chão
Aqui não pode estudar"
Essa dor doeu mais forte
Por que é que eu deixei o norte
Eu me pus a me dizer
Lá a seca castigava
Mas o pouco que eu plantava
Tinha direito a comer [...]

A disponibilidade quase mecânica dos sistemas de educação à estratificação da sociedade em classes economicamente antagônicas tem sido simplesmente fantástica. A educação será sempre impotente e ideológica se ignorar o necessário estranhamento em relação à realidade capitalista. As reformas pedagógicas por si só têm se mostrado insuficientes para a tarefa de revogação dos danos causados pela indústria cultural, enraizados na escola através da “realidade trazida pelo aluno” (e por alguns “educadores” menos esclarecidos sobre sua função). Uma realidade de diferenças de riqueza, de renda, de ocupação, de moradia, de classe social. Neste sentido, Zuin, Pucci e Ramos-de-Oliveira (2000, p. 116), consideram que:

Enquanto não se modificarem as condições objetivas, haverá um hiato entre as boas intenções das propostas educacionais reformistas e suas reais reivindicações. [...] Dentro dessa premissa, podemos identificar outra grande contribuição de Adorno ao pensamento filosófico educacional: a de que os processos educacionais não se restringem ao necessário momento da instrução, mas que certamente o transcendem. Este tipo de raciocínio nos leva a inferir que a esfera do educativo não se delimita às instituições de ensino, ampliando a percepção a ponto de investigarmos a forma como a mercantilização dos produtos simbólicos determina novos processos educativos, inclusive nas escolas.

Com efeito, “Os sistemas educacionais transmitem apenas a dose de conhecimentos que os seus dirigentes julgam necessário às classes sociais que tem acesso a eles.” (BIRNBAUM, 1969, 129) Como meios destinados historicamente à disciplinarização cultural das forças produtivas, a escola nega, por razões ideológicas óbvias, a capacitação do oprimido em dominar aquilo que seu dominador domina, isto é, o conhecimento. Neste “beco sem saída pedagógico”, a escola pública brasileira se contorce diante da quase que total ausência de bibliotecas atualizadas; laboratórios equipados adequadamente; computadores acessíveis aos alunos; auditórios; e professores bem qualificados, bem pagos e bem interessados. No rumo desses fatos, o ensino tornou-se alvo de zombarias, as mais excêntricas, enquanto a opinião pública se compadece ante os penosos salários dos profissionais da educação.

4. Alguns indícios psicológicos de um difícil fazer pedagógico

Do conflito entre as exigências da escola e as necessidades da criança pode ser que nasça grande parte das dificuldades atuais de se “ensinar”. Na escola, desde a mais tenra idade, nossas crianças são obrigadas a adaptações forçadas numa ação “pedagógica” que divorcia o educando de suas necessidades e peculiaridades. A criança - que aprende se movendo, brincando e se comunicando corporalmente -, fica obrigada a ocupar um espaço restrito durante quatro horas diárias, com severa restrição de movimento e comunicação. A criança modelada, condicionada, reprimida, a criança sem liberdade, é aquela que se senta resignadamente a uma carteira monótona da escola. E, mais tarde, será ela o adulto sentado a uma escrivaninha de escritório ainda mais monótona, ou na cadeira de uma fábrica.

A criança “pré-fabricada” pelo capitalismo contemporâneo, da cultura industrializada e mercadológica, é uma criança quase fanática em seu desejo de ser normal, convencional, adequada. Aceita o que lhe ensinam quase sem perguntas para transformar-se, depois, no adulto que irá transmitir a seus filhos todos os seus medos e frustrações. No extremo oposto estão crianças irritadiças, agressivas, “maldosas”, desleais e destrutivas, também vitimizadas pelas exigências morais de uma renúncia rigorosa aos instintos oriundos daquilo que Freud chamou de princípio de prazer:

Na teoria da psicanálise não hesitamos em acreditar que o curso tomado pelos eventos mentais está automaticamente regulado pelo princípio de prazer, ou seja, acreditamos que o curso desses eventos é invariavelmente colocado em movimento0 por uma tensão desagradável e que toma uma direção tal que seu resultado final coincide com uma redução dessa tensão, isto é, com uma evitação do desprazer ou com uma produção de prazer. (...) Deve-se, contudo, apontar que (...) o princípio de prazer (...), do ponto de vista da autopreservação do organismo com relação às dificuldades do mundo externo, é, desde o início (...) altamente perigoso. Sob a influência dos instintos de autopreservação do ego, o princípio de prazer é substituído pelo princípio de realidade. (...) O princípio de realidade não abandona a intenção inicial de obter prazer, mas (adota) (...) uma série de possibilidades para obter esse prazer. (...) Não pode, porém, haver dúvida de que a substituição do princípio de prazer pelo princípio de realidade só pode ser responsabilizada por um pequeno número – e de modo algum as mais intensas – das experiências desagradáveis. (...) No curso das coisas, acontece repetidas vezes que instintos individuais , ou parte de instintos, se mostrem incompatíveis, em seus objetos ou exigências, com os (códigos de conduta social). (...) Os primeiros são, então, expelidos dessa unidade pelo processo de repressão, mantidos em níveis inferiores de desenvolvimento psíquico e afastados, de início, da possibilidade de satisfação. Se, subseqüentemente, alcançam êxito – como tão facilmente acontece com os instintos sexuais reprimidos – em conseguir chegar por caminhos indiretos à uma satisfação indireta ou substitutiva, esse acontecimento se, em outros casos, seria uma oportunidade de prazer, é sentida pelo ego como desprazer. (...) Esse desprazer (...) é reconhecido como “perigo”. (...) A “ansiedade” descreve um estado particular de se esperar o perigo, ou preparar-se para ele, ainda que possa ser desconhecido. (FREUD, 1976, p. 17-24),

Segundo as reflexões de Alexander Neill (p. 89), Os advogados do horário da alimentação são, basicamente, contra o prazer. Querem que a criança seja disciplinada na alimentação porque a alimentação sem horário remete ao prazer orgástico da criança ao seio materno. O argumento quanto à nutrição é, quase sempre, uma racionalização: o motivo profundo é moldar a criança numa disciplinada criatura que colocará o dever antes do prazer. Não é exagero dizer que todas as crianças de nossa civilização nascem numa atmosfera que desaprova e revoga o prazer, a diversão, a empatia, a alteridade, a identidade e, no limite, a própria vida. “Freud tinha muito mais razão do que supunha quando disse que a civilização produz a anticivilização e a reforça progressivamente.” (ZUIN; PUCCI; RAMOS-DE-OLIVEIRA, 2000, p. 51)

Na pós-modernidade, desfibrou-se a vontade, a sensibilidade e a moral na medida em que as grandes verdades construídas pela humanidade foram revogadas em nome da provisoriedade e da relatividade de tudo e de todos. E, a bem da verdade, percebe-se mesmo uma fecunda inexistência de idéias – quaisquer que sejam elas - em grande parte dos espíritos.

Na realidade, no exercício da vontade individual, já está presente a vicissitude que resta: o conformismo com o fato de que a própria debilidade é atenuada mediante a percepção de que, certamente, alguém se encontra em pior estado. [...] O fim do desespero condiciona-se à esperança de que, ao comprar determinada mercadoria, o indivíduo obtém concomitantemente os atributos propagandeados pelos comerciais de rádio, cinema e, principalmente, televisão. A capacidade do sujeito receber os dados imediatos e sobre eles exercer reflexão crítica rarifica-se cada vez mais. (ZUIN; PUCCI; RAMOS-DE-OLIVIERA, 2000, p. 63)

 

O desconhecimento, conduzido, paradoxalmente, pelas mãos da auto-proclamada “sociedade do conhecimento” minimiza-se de tal modo que quase retorna à condição medieval do segredo (privilégio de poucos). Em seu lugar ocupou-se em construir uma moral epícura que se metaforiza num universo vertiginoso de prazeres fortes, fantásticos e temporários, ladeados pelas promessas falaciosas da indústria cultural. Os sentimentos humanos mais sadios e profundos tornam-se, nessa medida, revogados, pasteurizados e contrapostos ao mundo das idéias, esterilizando o espírito e obscurecendo toda a criticidade.

5. A Educação Física danificada

Na esteira de uma educação escolar danificada, entre outros inevitáveis corolários, está a Educação Física. Também o corpo se encontra refém, na escola, terrível circulo vicioso em que toda a vida social se estagna em torno da incerteza e da provisoriedade. Eis a base da aneladura cânone de um cotidiano pedagógico gravitado no prazer imediato, que derroga o respeito devido outrora à figura do professor e rarefaz afetos, empatias, altruísmos e alteridades. Em tal condição se confirma um panorama competitivo para a Educação Física, metonímia funcional da mundialização do capital, pela substituição da alteridade concreta pela alteridade imagética, onde a corporalidade encontra-se subsumida a uma única perspectiva da cultura corporal: a esportivização. Nas palavras de Medina (1990, p. 66),

O corpo é apropriado pela cultura. Vai sendo cada vez mais um suporte de signos sociais. É modelado como projeção do social. As instituições assumem seu papel. Como dizem, é necessário a preparação (do corpo) para o convívio em sociedade. É preciso aprender as regras sociais. Começa a divisão. O corpo da criança vai sendo violado por um conjunto de regras sócio-econômicas que sufoca, domestica, oprime, reprime, “educa”.

Esportivizado, anulado, ressignificado em seus sentimentos e em suas buscas, o corpo é finalmente enxotado pelo cartesianismo teimosamente presente na atmosfera escolar, levando o educando a vislumbrar na Educação Física uma espécie de redenção, onde, finalmente, poderá se reintegrar à sua totalidade. No bojo destas considerações, Rogério Cruz de Oliveira, em sua dissertação de mestrado pela Faculdade de Educação Física da UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas), intitulada “Educação Física, Escola e Cultura: o Enredo das Diferenças”, assim descreve uma aula de Educação Física observada por ocasião de sua pesquisa:

As aulas de EF obedeciam a uma rotina bastante conhecida. Apesar das aulas serem mistas, a professora dividia a turma por sexo. Segundo ela, era mais fácil trabalhar com grupos homogêneos, pois, tanto os meninos quanto as meninas, sentiam-se mais à vontade. [...] Também reportou-se ao aspecto dos meninos serem mais fortes que as meninas, havendo a possibilidade destas se machucarem. [...] Ao dividir a turma, após um alongamento inicial, a professora ficava com um grupo na quadra coberta, para a aula de voleibol, e mandava o outro grupo para a quadra externa jogar futebol. Ao soar o sino da Escola, que sinalizava o término da aula, havia a inversão dos grupos. [...] Curioso notar que apesar do futebol ter sido contemplado como conteúdo único de um bimestre, ainda se encontrava presente nas aulas de todo ano letivo. No entanto, a atenção e intervenção da professora ficavam restritas ao voleibol, deixando o “jogo” de futebol transcorrer como mera atividade recreativa, ou de espera. Questionada sobre o porquê da ênfase no futebol, a professora disse que se tratava de uma “paixão dos alunos” e que reclamariam se não o praticassem. “Eles só querem saber de futebol” (professora). E, realmente, a prática do futebol nas aulas da 8ª B aconteciam num clima contagiante. Já nas aulas de voleibol, cujo clima não era tão contagiante, a professora priorizava o jogo em si, dizendo que, em outras turmas, até trabalhava os fundamentos desse esporte, como, por exemplo, o saque, o toque, a manchete etc., mas na 8ª B, por se tratar de uma turma “difícil”, não o fazia. “Eles reclamariam!” (professora). Conforme já comentado anteriormente, a professora dividia a classe em dois times e iniciava o jogo, ficando à beira da quadra passando instruções e marcando os pontos. Havia certa flexibilidade com as regras do voleibol de competição, no entanto, este era o modelo. (CRUZ DE OLIVEIRA, 2006, p. 48-49)

Como considera Bracht (1999, p. 23), “[...] o esporte se impôs à Educação Física como conteúdo e como sentido da própria Educação Física”. Neste sentido, urge romper com as referências de naturalização desta prática como o locus de uma já consagrada prática hegemônica desportiva, valorativa do desempenho e depreciativa dos demais componentes da cultura corporal de movimento.

Entrincheirada lastimosamente na rotina competitivista, a Educação Física torna-se depositária dos valores de uma sociedade obediente unilateralmente à lógica da indústria, onde a leveza do mover-se, a harmonia, a beleza e a graça têm sobrevivido apenas no campo da retórica. Nessa perspectiva a ação pedagógica encontra-se quase que totalmente sufocada por uma “biopsicologização” emprestada do pensamento neo-escolanovista que define a forma de participação dos alunos durante a aula pela motivação aninhada numa prática do “faz o que quer” e do “faz quem quer”. No arcabouço destas reflexões, ainda referindo-se à aula observada, Cruz de Oliveira (2006, p. 50-51) relata que:

Algumas meninas refugiavam-se à sombra de uma árvore, localizada ao lado da quadra sem cobertura, e outras meninas e alguns poucos meninos sentavam-se à beira da quadra, raramente participando da aula, fosse o voleibol ou o futebol. A maioria dos meninos participava do futebol, mas tinha muita resistência quanto às aulas de voleibol. Curioso é que os que menos participavam eram os mesmos que se aglomeravam no portão à espera da professora. Minutos antes, escorados no portão, pareciam ansiosos pelo início da aula, no entanto, ao cruzarem o limite entre a quadra e o pátio, logo corriam para seus refúgios. Com certeza havia um motivo para que esses alunos não participassem da aula, mas que naquele momento inicial de minha pesquisa de campo eu ainda não tinha condições de compreender. Notava que a professora tinha dificuldade em fazer com que os alunos participassem da aula. No entanto, ela dispunha de várias estratégias que buscavam permitir maior envolvimento dos mesmos. Numa ocasião, a professora até chegou a pegar no braço de um “marmanjo” dirigindo-o para a quadra, pedindo carinhosamente que ele fizesse a aula. Em outras ocasiões, apegava-se ao argumento da nota. Num certo dia, a professora afirmou para uma aluna que se ela não fizesse aula, como até então, seria reprovada. Esta, com ares de desprezo, retrucou baixinho: “Não vou reprovar...”, demonstrando que, para ela, as aulas de EF não tinham a menor importância e nem possibilidade de reprová-la. [...] Com o passar do tempo comecei a perceber que o fato da não participação na aula dava-se, principalmente, pela vergonha da exposição. Meninas e meninos tinham vergonha de fazer a aula, fosse por características físicas - que pelas próprias transformações morfofuncionais da adolescência começavam a ficar evidentes - ou por auto-avaliação de que não “levavam jeito” para o esporte.

Segundo o autor (CRUZ DE OLIVEIRA, 2006), há, entre os professores da disciplina, quem se acomode no discurso de que é difícil mudar, alegando que os alunos não permitem esta mudança. Em sentido contrário, posiciona-se o argumento de que o professor deve estar ciente de sua condição na formação dos valores educativos de seus alunos. A acomodação e a falta de comprometimento com as obrigações do fazer educativo interrogam a significância da própria Educação Física no currículo escolar. Donde se ergue a necessidade de alargar os âmbitos desta disciplina, devolvendo ao professor as regiões altas de sua condição de educador, de onde possa avistar as esquecidas teorias construídas a partir das grandes experiências da humanidade. De conformidade, o Coletivo de Autores traz a seguinte consideração:

Todo educador deve ter definido o seu projeto político-pedagógico. Essa definição orienta sua prática no nível da sala de aula: a relação que estabelece com os seus alunos, o conteúdo que seleciona para ensinar e como o trata científica e metodologicamente, bem como os valores e a lógica que desenvolve nos alunos. (COLETIVO DE AUTORES, 1992, P. 26)

Estão sintetizadas no Esporte as perspectivas neoliberais do projeto de globalização econômica para o século XXI. O intuito é o de levar às últimas conseqüências o paradigma da modernidade, alinhado na contemporaneidade sob as demandas da pós-modernidade. Analisando os efeitos da mídia Chauí (1993), enfatiza que o tempo do noticiário é tão somente aquele que permite ao espectador concordar com a notícia anunciada. Nessa medida o consumidor do noticiário midiático habitua-se a ter uma concentração minimizada a apenas esse curto período, tornando-se desatento e incapaz de concentração em tarefas que exigem tempo mais prolongado. A leitura de textos e livros, que exigem tempo de atenção e concentração maiores, torna-se, nesse processo, intolerável para muitos alunos. Disso decorre uma “infantilização” do espectador que congrega a expectativa de receber de modo simplificado e resumido informações que não necessitem reflexão. Diante da provisoriedade e da ligeireza pós-modernas, o vídeo-clip substitui o filme, a cópia xérox de capítulos substitui o livro e a novela substitui os relacionamentos.

Com base em conceituações psicanalíticas, Chauí (1993) afirma que a infantilização do consumidor exige satisfação imediata e frustração grandiosa a partir do desejo não realizado. Há uma anulação do pensamento em favor da informação. O aluno, habituado ao consumo aligeirado da informação e dos produtos da indústria cultural se coloca passivamente na condição de mero consumidor do saber escolar, avessos à pesquisa e à leitura crítica da realidade. Essa destruição mental dos estudantes, ladeada pela infantilização dos professores e a fetichização dos conhecimentos são os ingredientes que levam a escola a fechar-se para a falta de compromisso social e político.

O fenômeno esportivo, fiel às características da indústria, como o rendimento e a competitividade, tomou de assalto o mundo da cultura corporal de movimento e a partir da década de 1970 contamina a capoeiragem, na forma da Capoeira Regional, com a sua inserção no mundo do mercado. O que está em andamento é um processo de industrialização cultural da Capoeira. Esta busca no esporte do “sentir-se igual”, pertencente ao grupo, acaba por reforçar a marginalidade cultural de uma população que já se encontra subsumida á marginalidade econômica. Neste sentido, as palavras de Sandra Reis parecem ilustrativas do processo de revogação cultural da capoeiragem tradicional em prol de uma cultura padronizada, competitiva, pasteurizada e submetida à lógica do capital:

Quando a Indústria Cultural privilegia um produto pseudo-artístico padronizado, calculado tecnicamente para surtir efeitos determinados de modo a serem por todos desejados e repetidos, na forma e na medida adequados a garantir o poder e o lucro do sistema dominante, gera uma necessidade compulsiva generalizada que afasta o “não-idêntico” como exótico, indesejado, incômodo ou doente. Tal repetição vem camuflada com outros produtos que, não obstante a variação aparente, repetem os mesmos modelos, esquemas ou características impostas, tendendo a manter o público sob controle, cada vez mais massificado, inconsciente e compulsivamente preso à corrente de produção. (Reis, 1996, p. 44-45)

Malgrado as inúmeras reflexões acerca dos decantados malefícios da manutenção de uma prática hegemônica desportiva na escola, a presença da Capoeira nas aulas de Educação Física escolar – quando acontece - se faz conduzir pelas mãos do esporte, através da Capoeira Regional. A análise dos conhecimentos produzidos no universo específico da capoeiragem permite reconhecer quais os fundamentos que sustentam sua prática na escola, ou seja, qual a teoria político-pedagógica que sustenta a capoeiragem desportivizada. É preciso perguntar às pesquisas realizadas qual a lógica política que aflora no âmbito das práticas corporais em que se anuncia e reinventa, no sítio das relações econômicas, diferentes estilos de capoeiragem. Abaixo estão relacionadas algumas pesquisas específicas à capoeiragem que podem ser inquiridas a este respeito:

ABIB; Pedro J. Capoeira: Intervenção e conhecimento no espaço escolar – Revista Brasileira de Ciências do Esporte, vol.21 n°1 (ISSN 0101.3289), Florianópolis, 1999;

ABIB; Pedro J. Capoeira e os diversos aprendizados no espaço escolar – Revista Motrivivência – Movimentos Sociais: Educação Física, Esporte e Lazer, ano XI, n°14, (ISSN 0103-4111), Editora da UFSC, Florianópolis, 2000;

ABIB, PEDRO RODOLPHO JUNGERS. Os velhos capoeiras ensinam pegando na mão. Caderno Cedes, Campinas, vol. 26, n. 68, p. 86-98, jan./abr. 2006. Acesso em 10/11/2007. Disponível em http://www.cedes.unicamp.br;

ABIB; Pedro J. Roda de Capoeira Angola e a força do canto dos poetas – Revista Sociedade e Cultura, v.5, n.1 (ISSN 1415-8566), Editora da UFG, Goiânia, 2002;

ABIB; Pedro J. Cultura Popular e o Jogo dos Saberes na Roda. Tese de Doutorado em Ciências Sociais aplicadas à Educação. Unicamp. Campinas, 2004;

ADORNO, Camile. A Arte da Capoeira. 6 ed. Editora Kelps. Goiânia, 1999;

AREIAS, Almir das. O que é capoeira. Brasiliense. São Paulo, 1983;

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VIERA, Luiz Renato. O jogo de Capoeira Cultura. Rio de Janeiro: Sprint, 1995.

O estudo destas obras, dentre outras, propicia a necessária critica sobre os valores (de)formadores da capoeiragem de alto rendimento, de espetáculo, de competição, de “saúde” e alerta para os perigos de sua inserção na escola. Dentro desta perspectiva, Zuin, Pucci e Ramos-de-Oliveira trazem a seguinte reflexão:

Este tipo de mentalidade permanece atuante em acontecimentos que aparentemente não possuem qualquer correlação, tais como a luta pela memorização de fórmulas e datas exigidas nas avaliações mensais e as disputas esportivas que há muito abandonaram o princípio de que o que importa é a participação e não a vitória a qualquer custo. Ambas as situações se rendem ante a inexorável conclusão de que só dois tipos de caráter são devidamente aceitos: os vencedores e os perdedores. [...] Deve-se oferecer oposição [...] aos comportamentos dos agentes educacionais que se acostumam com a associação do pensamento superficial e a valorização daqueles que sempre aceitam as regras do jogo. (ZUIN; PUCCI; RAMOS-DE-OLIVEIRA, 2000, 113-114)

O conceito de cultura corporal anunciado pelo Coletivo de Autores (1992), com base na história das atividades corporais, busca por uma reflexão pedagógica a partir da compreensão do ser humano em suas relações materiais. Dentro desta perspectiva – e de modo conseqüente - as atividades da cultura corporal de movimento e, em particular a capoeiragem, desenvolveram-se como produto das relações travadas pelos homens em sociedade. Uma segunda conclusão decorre desta primeira: algumas “bandeiras” cultivadas e defendidas pelos antigos mestres angoleiros, como a oralidade, o ritual, o improviso, a “mandinga”, a resistência cultural, são revogadas e substituídas por outras categorias mais “sintonizadas” com o mercado, tais como: “mercadoria étnica”, “folia”, “competição”, “rendimento”, “malhação” e “espetacularização”, dentre outras. (VASSALLO, 2003).

O advento da Capoeira Regional significou a mudança no status capoeirano de cultura a bem de consumo. A necessidade de adaptação do capoeirista á lógica do mercado convoca um universo particular de alterações nas relações de poder entre mestre e aluno fetichizadas na graduação/titulação, associada à lógica da hierarquia militar, como ilustrado por Annunciato, 2006 e Silva, 2006.

O processo de militarização/desportivização da capoeiragem, refletindo a influência das tendências pedagógicas higienista/militarista (até a década de 1960) e tecnicista (década de 1970), incorporou em sua forma de ensino a influência dos Métodos Ginásticos e da Instituição Militar. Lembro que o auge da militarização na Educação Física corresponde à execução do projeto de sociedade idealizado pela ditadura do Estado Novo. (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 53).

Iniciado por Mestre Bimba, o fenômeno da regionalização capoeirana foi largamente difundido e ampliado nos anos de 1960 e 1970. A Capoeira Regional adentrou ao espaço das academias de ginástica das grandes metrópoles nacionais em busca de mercado. Disso resultou uma disseminação em larga escala de grupos capoeiristas que se subsumiram à lógica do modelo burguês de sociedade, incorporando as características competitivas das indústrias e demais corporações capitalistas. No rumo dos acontecimentos peculiares à globalização e ao multiculturalismo essa expansão dos grupos de Capoeiras ensejou o esparrame mundial da capoeiragem. Com efeito, a Capoeira hoje encontra-se alastrada por todo o planeta. Não só a Regional, mas também a Angola. Em busca de um reconhecimento e de uma dignidade que a burguesia nacional não colocou em sua agenda de prioridades, muitos dos mestres angoleiros, “da antiga”, se vêem obrigados a seguir os rumos dos mestres regionalistas. Esta é mais uma faceta do engolfamento da cultura popular pelas artimanhas da indústria.

Neste sentido, importa perceber que o desenvolvimento da capoeiragem ocorreu – e continua ocorrendo - no seio da luta de classes. Com isso, pretendo argumentar em favor da necessidade de uma atitude pedagógica para a Educação Física que se insira no projeto de transformação da sociedade. A tematização pedagógica da capoeiragem no interior das aulas de Educação Física, neste sentido, deve partir de um mergulho nas páginas de sua história de onde se possa perceber, no sopé dos lampejos da industrialização, a ressignificação da capoeiragem, pois, “[...] Compreender o fenômeno é atingir a essência.” (KOSIK, 2002, p 16).

6. Angola: uma capoeiragem para a Educação Física

Com fé e coragem para ensinar a mocidade do futuro estou apena zelando para esta maravilhosa luta que é deixada de herança “adequerida” da dança primitiva dos caboclos, de batuque, e “cadobré” originada pelos africanos de Angola ou Jejes; muitos “admira” essa belíssima luta quando dois camaradas “joga” sem egoísmo, sem vaidade; é maravilhosa e educada.

(Mestre Pastinha, 1889-1981)

Capoeira é “mardade"

(Mestre Bimba,1900-1974)

Na cultura afro-descendente, quem ensina é o velho, porque se percebe nele o valor da sabedoria acumulada ao longo dos anos. “Mestre” é a denominação que consagra aquele que repassa às novas gerações os saberes peculiares à sua identidade cultural. Quem denomina o mestre como tal não é a academia, mas os olhos do povo, que o reconhecem merecedor de tal distinção. Desse modo, de acordo com as diferentes especificidades culturais da afro-brailidade, existem mestres de Jongo, de Caxambu, de Côco, de Samba-de-roda, de Tambor-de-criola, de Batuque, de Capoeira.

No rastro dos signos da afro-descendência é possível estabelecer um diálogo entre Brasil e Angola. Através do tapete de memórias, imagens e mitos que, passando por um processo de reconversão, engendram velhos saberes convertidos em novas significações. Saberes que atravessando o Atlântico se fizeram o sal do alimento que manteve o africano, silenciado pela escravidão, culturalmente vivo em nosso país. Diferentemente do sábio da tradição ocidental, que esqueceu os pequenos prazeres do abandono no processo de abstração, o mestre, na cultura afro-descendente, nunca esquece as pequenas singularidades que emanam de energias da natureza chamadas de "orixás" (sagrados).

Quando os últimos raios de sol deixavam a Praça da Matriz em São Filipe, cidade fumajeira do Recôncavo Baiano, as crianças sumiam porta adentro à espera do café com pão que era engolido às pressas, porque estava quase na hora de Eulina começar a contar suas histórias. Eram histórias de reis, rainhas, casas mal-assombradas e bichos falantes. Eulina era uma mulher negra retinta, braços fortes e uma voz forte e doce que prendia a atenção da gente, o tempo que ela quisesse. [...] Eulina tinha braços tão fortes que agüentava torrar e pilar café todos os dias da semana. [...] Um jeito agradável de falar, um sorriso aberto, mostrando uma alegria retirada do fundo da sua alma negra, encantavam principalmente as crianças. Quando chegava a noitinha, depois de suas múltiplas atividades, chegava a hora do sagrado compromisso de contar histórias para as crianças da vizinhança. Naquela hora ninguém faltava, ninguém chegava atrasado, ninguém dava um pio. Nunca esqueci Eulina e suas histórias, porque eram interessantes e muitas vezes parecidas com a vida que a gente vivia. (MACHADO, 2007, p. 01)

A construção da pedagogia afro-brasileira não se encerra nas limitações da palavra escrita ou na domesticação de corpos inertes e mentes inflacionadas de informações pela monotonia tediante da sala de aula. O conhecimento deve ser construído corporalmente, afetuosamente, trecho a trecho, pois é no percurso que tudo acontece. Depois da construção, há que haver a sagração, que representa o mistério, o segredo, o silêncio que ocupa momentos preciosos na temporalidade e espacialidade da comunicação estética da tradição afro-descendente.

No universo tradicional da Capoeira Angola, tudo se movimenta e se aquieta; se agita e se acalma. Não na palavra, no gesto. Enquanto a cultura ocidental encontra na palavra pronunciada sua forma de expansão, a cultura afro-descendente se encontra e se reconhece na ginga de sua corporalidade. O ritmo dos tambores ponteia o movimento, os cânticos determinam os gestos e marcam a intensidade dos passos. Desta dança emergem vivências e simbologias interiores revestidos de emoção e afeto, gerando um reconhecimento maior da própria identidade na perspectivas do contato com o outro. Entretanto, como bem lembra Brandão (1986, p. 154), a identidade somente se torna presente na consciência e na cultura de um povo na medida em que este se vê ameaçado pelos mega-poderes da sociedade de classes.

[...] quando se fala de uma cultura popular, o que a caracteriza substancialmente é, entre os mais exaltados, o dado da absoluta opressão de classe, de que ela é a fala e o espelho e, entre os mais moderados, uma produção ativa feita por categorias de sujeitos cujo principal atributo é sua condição subalterna como classe ou outra qualquer fração social.

As danças populares afro-brasileiras e, no caso desta pesquisa a Capoeira, tidas como profanas, realizam-se geralmente em círculo. Na Capoeira deve-se harmonizar o clima do jogo com o momento da roda, ou seja, jogar de acordo com o toque dado pela orquestra, com o sentimento dos versos que estão sendo entoados pelo puxador da cantiga e pelo coro. No início do aprendizado o corpo não responde, mas aos poucos vão emergindo registros emocionais, somatório do universo vivenciado e do inconsciente coletivo, assumindo várias sensações e configurações decorrentes das imagens de lugares onde se desenvolvem experiências de vida, que se instauraram no corpo.

É relativamente comum se observar crianças de rua nas praças das metrópoles tentando aprender, imitando os gestos e golpes da Capoeira sem que ninguém lhes tenha ensinado nada. A aprendizagem primitiva da capoeiragem é espontânea e informal. O jogo de roda é precedido sempre por uma ladainha em reverência geralmente aos ancestrais ou às agruras do cotidiano. Possui um sentido sagrado e outro profano. A Capoeira Angola não é somente uma prática profana, mas um ritual. Sobre a dialética entre religiosidade e ritual dentro da cultura, Ribeiro Júnior (1982, p. 32) considera que:

[...] há divergências quanto ao componente religioso, como ingrediente necessário ao ritual. Entretanto, a questão central parece estar na forma como se entende o religioso. Rubem Alves alerta para que não se confundam os símbolos (auto-definidos como) religiosos com a própria religião. Se, inicialmente, é a religião que batiza como sagrados os símbolos que ela mesma cria, num segundo momento, tais símbolos passam a ser o caráter definitivo da religião. Substituindo uma abordagem essencialista da religião, R. Alves propõe outra, mais dinâmica em que “o religioso seria uma qualidade inerente ao símbolo ou à prática como tal, mas estaria relacionado com as suas funções... A função religiosa é uma integração entre biografia e historia, indivíduo e cosmos... (produzindo) uma integração emocionalmente satisfatória entre o indivíduo e a totalidade.

No universo do angoleiro suas expressões se confundem em um movimento de busca e captura de uma ancestralidade absolutamente marcada pela violência da mordaça histórica da escravidão. Em seus ritos reencena a experiência do homem africano, retornando aos seus valores, à sua fé, à sua identidade. Os ritos devolvem visibilidade ao afro-descendente e a sensação de recomposição pela festa, pelo lúdico, pela celebração do outro onde se encontram o visível e o invisível.

A reificação da Capoeira, na condição da Capoeira Regional, obstaculiza a manutenção das tradições presentes na capoeiragem tradicional. Obviamente que a cultura capoeirana – como toda a cultura - é dinâmica e não pode ser apreendida de forma estática e engessada. Contudo, sua transformação deve emanar do povo que a criou. Não se trata de uma busca por uma Capoeira pueril, imunizada, mas de uma prática corporal crítica que através da cultura do jogo de roda se constitua em referencial subversivo para a resistência à coisificação. O sentido de subversão aqui empregado refere-se à necessária estratégia de luta e resistência daqueles que ainda vivem oprimidos na escravidão factual não intermediada pela falsa liberdade de escolha difundida na contemporaneidade.

Ao encontro do pensamento dos autores da “Dialética do esclarecimento”, do ponto de vista da análise do esporte, comparece o jogo como possibilidade pedagógica para a Educação Física escolar, Neste sentido, em relação ao jogo presente na capoeiragem, um jogo permanente de perguntas e respostas corporais onde a ginga é o intérprete, a perspectiva do outro não como adversário, mas como “camará”, propicia uma nova sensibilidade. “Jogar” ao invés de “lutar” demanda a não finalização dos golpes traumáticos – que acabariam com o jogo, como acontece em várias lutas esportivizadas –, num constante reconhecimento do outro como necessário à brincadeira, à diversão. Esta perspectiva dionisíaca possibilita vislumbrar uma capoeiragem identificada com uma nova forma de entender o homem e a sociedade, para além da velocidade vertiginosa proclamada pela industrialização de tudo e de todos.

Refletir sobre o jogo na capoeiragem significa pensar com empatia, no rumo da diluição no outro, num processo mimético que reelabora as imposições competitivas de uma sociedade baseada na busca de resultados, na apologia à técnica e na revogação do afeto. Esta, contudo, é somente uma pré-elaboração acerca da possibilidade da inversão dos valores albergados na sociedade industrial. Ao renunciar à ira, apazigua-se a ira no outro. As manobras corporais são antes manobras de idéias, de valores, de sentidos e de percepções do outro, num imprescindível processo de permanente protesto contra a hegemonia. Nenhum dos dois jogadores na roda vence para que os dois vençam, num processo valorativo da imprevisibilidade.

Nos arraiais do poder hegemônico se acham assentados elementos capacitados à contra-hegemonia. A cultura popular, atravessada pelas contradições do capital, provoca critérios de avaliação a partir da perspectiva do oprimido. A recuperação da cultura aponta para a própria recuperação da existência urbana degradada pelos poderes da industrialização. A invenção do Samba na urbe do Rio de Janeiro do início do século XX referenda a cultura popular urbana como possibilidade de reconstrução do ser humano despedaçado. O alargamento das possibilidades de resistência resulta na possibilidade da criação de um projeto pedagógico para a Educação Física num frutuoso exercício de resistência e transformação. Neste sentido, refletir sobre a capoeiragem de Angola inserida no interior das contradições entre trabalho e capital significa perceber que:

A apropriação ativa e consciente do conhecimento é uma das formas de emancipação humana. Por isso mesmo, o domínio de conhecimentos permite ao professor tomar consciência de que não é um livro que o ajudará a enfrentar os problemas da sala de aula, mas a sua própria reelaborarão dos conhecimentos e de suas experiências cotidianas. (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 17-18)

É na empatia, na solidariedade e na cooperação que se encontram caminhos para a solução dos problemas sociais em ebulição na pós-modernidade. A resistência da cultura popular na voz da Capoeira Angola aos apelos sedutores da indústria cultural mundializada é anunciadora de uma vida que ainda não existe. As condições adversas do capitalismo presentes na desportivização e na mercadologização na cultura corporal de movimento obstaculizam as possibilidades de uma pedagogia integrada ao projeto social de superação do modo de produção capitalista. Nessa perspectiva, a introdução da capoeiragem angolana na escola através das aulas de Educação Física se apresenta como:

O confronto do saber popular (senso comum) com o conhecimento científico universal [...] fundamental para [...] instiga(r) o aluno a ultrapassar o senso comum e construir formas mais elaboradas de pensamento. Para Libâneo (1985, p. 40), não se trata de “oposição entre cultura erudita e cultura popular ou espontânea, mas uma relação de continuidade em que, progressivamente, se passa da relação imediata ao conhecimento sistematizado. (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 32).

Incluindo nesse item o desvelamento das condições materiais de existência em que se encontram subsumidas as massas populares pelo racismo, pelas reduzidas expectativas de vida para o trabalhador, pelos elevados índices de mortalidade infantil (filho de pobre não s e torna “anjinho”), pelo abismo vastíssimo entre ricos e pobres e, mais recentemente, pela sua transformação em escravos felizes diante da indústria cultural. No contrapelo dos rumos definidos severamente pelo poder hegemônico do capital, ladeados pela fratura cultural da Capoeira em Capoeira Regional, Pistrak (2003), de quem passo a me valer para apresentar uma postura pedagógica revolucionária baseada no materialismo histórico e construída sobre as condições presenciadas a partir da Revolução de 1917:

A essência destes objetivos é a formação de um homem que se considere como membro da coletividade internacional constituída pela classe operária em luta contra o regime agonizante e por uma vida nova, por um novo regime social em que as classes sociais não existam mais. Em termos mais concretos, é preciso que a nova geração compreenda em primeiro lugar, qual é a natureza da luta travada atualmente pela humanidade; em segundo lugar, qual o espaço ocupado pela classe explorada nesta luta; em terceiro lugar, qual o espaço que deve ser ocupado por cada adolescente; e, finalmente, é que cada um saiba, em seus respectivos espaços, travar a luta pela destruição das formas inúteis, substituindo-as por um novo edifício. (PISTRAK, 2003, p.31)

E complementa:

A educação comunista deve orientar a escola em função destes objetivos colocando-os na base do seu trabalho pedagógico. (PISTRAK, 2003, p. 31)

À guisa de poder concluir, reafirmo que admitidas as restrições impostas à cultura popular pela sociedade da globalização, a Capoeira Angola, inserida nos processos de formação cultural popular espontânea, pode assumir a tarefa estratégica de promover a conscientização do educando mediante uma revolução cultural radical que denuncie os vínculos opressivos da relação trabalho e capital de forma a contribuir para a construção de uma sociedade justa, lúdica, não aligeirada e, portanto, diferente da sociedade na qual nos encontramos.

9. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No Fio da Navalha

Todo educador deve ter definido o seu projeto político-pedagógico. Essa definição orienta a sua prática [...] a relação que estabelece com os seus alunos, o conteúdo que seleciona para ensinar e como o trata científica e metodologicamente, bem como os valores e a lógica que desenvolve nos alunos. É preciso que cada educador tenha bem claro: qual o projeto de sociedade e de homem que persegue? (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 26)

Mais do que unanimidades, as aquisições propiciadas por esta pesquisa são embrionárias, ecoadas de alguns poucos saberes que pude colher dentre os tantos diálogos entre capoeiragem, ancestralidade, ritualidade, transcendência, historicidade, etnia, tradição, cultura, política, educação, sociedade, enfim, entre o visível e o invisível, aquele que se mostra e faz presente e aquele que ainda precisa ser desvendado. Um processo encharcado nas paixões humanas presentes no universo ético/estético da capoeiragem e que desafiou as dificuldades em desvelar a vasta gama de conhecimentos que permearam e ainda permeiam o território da roda de Capoeira. De acordo com Geertz (1989, p. 07), fazer etnografia é como tentar ler (no sentido de ‘construir uma leitura de’) “um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado”. Ao encontro desta afirmação, esclareço que o enredo deste estudo não pretendeu desvelar de todo a realidade presente no complexo universo da capoeiragem, mas contextualizá-la a partir daquilo que, por hora, pôde ser estudado.

Com efeito, o itinerário histórico da Capoeira – sobretudo no que se refere à Capoeira baiana – encontra-se ainda bastante obscuro. A assertiva de Geertz fornece pistas para a compreensão das condições em que ocorrera a obstaculização dos fatos históricos: por ocasião do governo do presidente Deodoro da Fonseca, o então ministro da fazenda, Rui Barbosa, em 1890, à guisa de apagar de nossa história as lembranças da escravidão, determinou que se queimasse toda documentação referente ao período. Obviamente que a íntima relação mantida entre capoeiragem e escravidão não ficou imune a esse estranho procedimento de “limpeza” histórica. Disso resultou que o que se tem hoje concernente ao histórico da Capoeira é baseado em tradições orais, e poucos documentos que escaparam à famigerada incineração.

Partindo-se, todavia, desses parcos registros historiográficos agrupados ao que já se pôde colher da oralidade sabe-se, por exemplo, que por volta de 1538 chegaram ao mar da Bahia as primeiras levas de escravos africanos. A maior parte vinha de Angola, Benguela e Luanda e traziam em sua bagagem cultural as sementes do que mais tarde viria a ser a Capoeira. Tais informações são relevantes na medida em que balizam a via de acesso às especificidades do cenário constituído em pano de fundo deste estudo, que pretendeu privilegiar uma análise do universo político das partes (Regional e Angola) que participaram, ao longo do tempo, da elaboração do todo capoeirístico.

Se a configuração espaço-temporal apresenta semelhanças entre os estilos de Capoeira, este parâmetro, todavia, não se apresenta suficientemente capaz de revogar as disparidades entre as capoeiragens Angola e Regional. Assistindo uma roda de Capoeira Angola e outra de Capoeira Regional, imediatamente podem-se distinguir seus estilos, suas idiossincrasias e as diferenças entre eles. Essas diferenças se manifestam na ritualística que envolve desde a o espaço físico utilizado para a formação da roda até a musicalidade e os toques de berimbaus. Mas, a corporalidade é, sobretudo, o elemento que revoga em definitivo qualquer possibilidade romântica de agrupar angoleiros e regionalistas sob a égide de uma mesma e utópica capoeiragem. Sobretudo no que se refere aos fenômenos da militarização e da esportivização que, reluzindo da Educação Física sobre a capoeiragem, vai ensejar a origem e consolidação da Capoeira Regional nas décadas de 1930 e 1970, respectivamente.

As aquisições apresentadas nesta pesquisa são recorrentes dos campos de conhecimento presentes na capoeiragem e surgidas da Educação Física, área acadêmica no interior da qual este trabalho adquire seus contornos. Os estudos indicam a existência de uma submissão da Capoeira aos signos assumidos pela Educação Física na sua ação pedagógica e, por extensão, aos ditames históricos da lógica do capital. A marginalização sofrida pelos capoeiristas no Brasil dos períodos colônia e império teve seu berço na escravidão negra. Enquanto que o desejo de docilizar o mestiço identidário na figura emblemática do malandro carioca seguiu o cumprimento das disposições políticas militaristas, autoritárias e nacionalistas vigorantes no período getulista. Esses valores, ao serem incorporados pela Capoeira, a transfiguram em ginástica e, depois, na década de 1970, em esporte. Este é um processo absolutamente obediente aos padrões econômicos hegemônicos na sociedade brasileira nas referidas temporalidades.

Cumpre aqui fazer uma pausa para uma última pergunta ao multiculturalismo: identidade existe? Muitos estudos têm sido dedicados para se mensurar com que importância culturas populares realizam e traduzem o desejo de evidência do oprimido perante o opressor. O ritual, os mitos, as lendas e os costumes não são obedientes a uma necessidade multicultural de afirmação da diferença. Como drama ou farsa esta afirmação não existe sob a forma de um repertório definido e definitivo que demarca e estabelece territórios simbólicos de identidade, mas onde quer que ela seja construída identifica a condição subsumida do povo oprimido como classe social e econômica.

Afinal, a menos que nos pervertamos um dia em um “admirável mundo novo”, onde a própria diferença entre as pessoas e as pessoas é programada como uma absoluta e irredutível desigualdade, sempre entre eu e você, entre nós e o outro será preciso compreender e explicar a razão da diferença, seu sentido e as suas transformações. (BRANDÃO, 1986, p. 164)

Um projeto pedagógico que visa à colaboração com o processo de emancipação social deve pressupor que os deserdados da cultura sejam prioritariamente os herdeiros dela. O direito à cultura é o direito de acesso aos bens culturais de um povo. E a compreensão desses bens é um bom ponto de partida para a transformação das consciências rumo à construção da liberdade, de um novo mundo, onde não haja lugar para a exploração do homem pelo homem. Um mundo onde a cultura popular genuinamente brasileira seja privilegiada como forma de se valorizar a identidade rítmica de nossa gente, impressa no jongo, na capoeira, no samba, no frevo, na lambada, na pernada carioca, no batuque, no maxixe, o maculelê, no maracatú, no xote, no forró, no xaxado, enfim, num sem número de manifestações afro-brasileiras desse nosso Brasil amarelo, branco, negro, mulato, de todas as cores.

Algumas das características mais relevantes da Capoeira Angola e que podem ser bem aproveitadas por uma Educação Física progressista, crítica e voltada à superação do modelo social vigorante são: o jogo não competitivo, em que os capoeiristas procuram explorar ao máximo a movimentação evitando interrupções na dinâmica da roda; as esquivas, fundamentais na Angola, em que o capoeirista evita ao máximo o choque com o outro jogador, procurando trabalhar dentro dos golpes, aproveitando-se dos desequilíbrios e falhas na guarda do outro; a capacidade de improvisação, típica dos angoleiros, que sabem que os golpes e outras técnicas treinadas no dia-a-dia são um ponto de partida para a luta, mas precisam sempre ser moldadas rápida e criativamente à situação do momento; a valorização do ritual, que contém um enorme universo de informações sobre o passado de nossa arte-luta e que consiste em um grande patrimônio cultural. A antiga capoeira marcava-se por um grande respeito aos rituais tradicionais, diferentemente do que ocorre nos dias de hoje. (VIEIRA, MESTRE LUIZ RENATO, 1999)

Sob a influência do axé, ou campo energético, desenvolvido a partir do ritmo ijexá, herdado pela Capoeira diretamente do Candomblé, o seu praticante alcança um estado alterado de consciência em que o capoeira se comporta como parte integrante do conjunto harmonioso em se encontra inserido naquele momento. O capoeirista deixa então de perceber a si mesmo como individualidade consciente, fusiona-se ao ambiente em que se desenvolve a capoeiragem e passa a agir como parte integrante do ambiental, da roda, da orquestra de instrumentos e de tudo mais à sua volta. Neste processo não existe diminuição de consciência, mas sim uma ampliação do estado de consciência. Não há mais temporalidade e o capoeira passa a agira como se conhecesse ou percebesse simultaneamente o passado, o presente e o futuro. Este é um estado de transcendência, absolutamente subversivo em relação ao mundo pós-moderno da técnica, da apologia da racionalidade científica, da globalização e da indústria cultural, que obedece a uma lógica inequívoca e inflexível: a exploração do homem pelo capital.

Como podemos estabelecer um contato satisfatório com o outro se, nas condições ditadas pela sociedade atual, de opressão econômica, de renúncia sexual, de corrupção dos sentidos, perdemos o contato com nós mesmos? Talvez, fosse tarefa da escola ensinar às crianças, através de exercícios cuidadosamente construídos, como aguçar suas sensações e nelas distinguir entre desejos instintivos de amor e prazer e aqueles elaborados como subproduto da frustração por esperanças não realizadas e transformadas em impulsos destrutivos, de ódio e rancor. De fato, como considera Wilhelm Reich (1972), não há nada mais destrutivo do que a vida anulada por esperanças instintivas frustradas. O estado de receptividade sensorial nos liga ao meio em que vivemos. Quanto mais esta receptividade for refinada, atenta, sensível, melhor seremos informados e melhor nos corresponderemos com o mundo exterior, seja para dele nos protegermos, seja para acolhe-lo. Uma vez que a educação atual apologiza a educação daquilo que está acima do pescoço, desprezando os sentidos (corporais), tudo o que puder reeducar os sentidos restabelecerá certo equilíbrio. O movimento espontâneo renascerá quando o educando reaprender a tomar consciência de si mesmo, quando o ouvido perceber e distinguir os detalhes dos sons, quando o olhar conseguir ver no outro a beleza na simplicidade do menor gesto.

É estarrecedor perceber que a humanidade tem hoje as condições objetivas para erradicar da face da terra a fome e a miséria, mas que, entretanto, opta por perpetuar o sofrimento e a opressão. Não é fácil recusar aplausos à racionalidade inerente à sociedade tecnológica. Contudo, não se pode aplaudir a humilhação dos instintos e a revogação social da dignidade humana, da igualdade, da justiça, e da felicidade. Pensar o mundo de hoje é pensar o mundo da danação. Um mundo do descartável, onde as próprias pessoas são vistas como peças substituíveis. A lógica do capital é metabólica: a forma com que se explora o trabalho hoje é diferente daquela do século XIX. Hoje ela é mais sutil. Na Revolução Industrial os trabalhadores eram chicoteados; hoje são eles mesmos que se chicoteiam.

Diante do absurdo mundo contemporâneo, a desbarbarização da humanidade é o pressuposto imediato de sua sobrevivência. A necessária resistência a tudo aquilo que o capitalismo atual tem a nos oferecer nos remete à urgência de se enfrentar o seu vasto emaranhado de conceitos, na perspectiva de atingirmos um satisfatório entendimento do mundo e dos homens dentro dele. Para tanto, devemos olhar este mundo com os olhos da história, buscando nos cantos esquecidos das páginas de outrora os meios e elementos que o tornaram tal como ele se apresenta hoje.

Para além das análises apaixonadas, a educação que se tem é efetivada através de um conjunto de ações que procuram inserir nos indivíduos princípios, regras e habilidades de uma sociedade determinada, da qual eles são - ou serão – parte. Educar significa atingir o indivíduo na profundidade de seus hábitos, afetos e emoções primárias. Uma sociedade que se construa a partir de uma equilibrada distribuição de renda e onde possam existir políticas salariais que permitam uma existência digna e igualitária que só uma distribuição racional da riqueza pode proporcionar exige outra escola pública, distanciada da lógica da capital, onde a merenda ainda ocupa um lugar de absoluta relevância.

Reafirmo a necessidade de, admitidas as restrições impostas pelo momento histórico atual, a Educação Física escolar assuma a tarefa estratégica imediata de promover uma conscientização do educando pela via de uma educação radical que possa estabelecer, para além da sociedade baseada na indústria, os vínculos entre educação e emancipação de modo a contribuir para a construção objetiva de uma ordem social qualitativamente diferente da ordem social na qual nos encontramos, onde não haja lugar para a exploração econômica do homem pelo homem.

A necessidade de uma crítica radical ao mundo do capital, como postura intelectual, emana, nessas condições, do reconhecimento da impossibilidade de uma mudança estrutural na forma predatória pela qual a cultura popular tem sido tratada. Sem o enfrentamento das contradições reais sob as quais se materializam os novos problemas da educação, cultura, escola e sociedade continuarão a mercê da indústria. Isto porque o trabalho pedagógico é uma prática que não existe isoladamente da prática social. Conseqüentemente, as formas que o trabalho pedagógico costumeiramente assume na escola tendem a reproduzir os ideais de uma sociedade competitiva, voltada ao rendimento e mantida sob a égide do fetiche, da reificação e da alienação.

Concordando com os dizeres do COLETIVO DE AUTORES (1992, p. 26), creio na necessidade de que cada educador tenha bem claro:

  • Qual o projeto de sociedade e de homem que se almeja alcançar?;

  • Quais os interesses de classe que a escola defende em sua prática?;

  • Quais os valores morais, éticos e estéticos que a escola elege para consolidar prática político-pedagógica?;

  • Como a Educação Física tem articulado suas aulas no tocante a percepção da necessidade de se transgredir os valores e ideais desta sociedade?

O conceito de cultura corporal, segundo o Coletivo de Autores (1992), tem como base a história das atividades corporais, buscando desenvolver uma reflexão pedagógica, a partir da compreensão de que o ser humano carrega em sua corporalidade os signos e as marcas de sua sociedade na forma dos limites e das possibilidades de movimentação corporal que cada um apresenta. Visto sob esse prisma, o acúmulo de saberes acerca das atividades da cultura corporal, em especifico a Capoeira, é construído e produzido socialmente.

As capoeiragens (Angola e Regional), como produtos da atividade humana, cujas categorias, princípios e leis emergem da interação do ser humano com o meio social, econômico, político e cultural onde este se encontra inserido, pressupõe a existência de interesses antagônicos de classes sociais. Neste sentido, urge um fazer pedagógico em Educação Física capacitado a subsidiar os educandos com os meios e elementos de uma “ação prática, no sentido de transformar a sociedade de forma que os trabalhadores possam usufruir do resultado do seu trabalho” (COLETIVO DE AUTORES, 1992 p. 24) e, conseqüentemente, usufruir dos elementos da cultura corporal de movimento produzida historicamente pela humanidade, que são conhecimentos que ligam o homem ao que lhe é mais essencial, sua corporalidade, sua existência.

O professor de Educação Física, inclusive porque age de acordo com a formação recebida nos cursos de graduação, costuma, em geral, privilegiar o esporte em suas aulas em detrimento da cultura corporal de movimento. Desse modo, o saber apresenta-se num circuito repetitivo do status ontológico da sociedade de classes, desvinculando-se da necessidade de transformação social e reproduzindo o ideário competitivo levando o aluno a manter continuadamente a mesma prática alienada e alienante. É o que tem acontecido com a maior parte dos nossos colegas. Entretanto, vale ressaltar que assim o fazem porque não receberam, em seus cursos de formação e/ou capacitação, suficiente instrumentalização que lhes possibilitasse estruturar a sua própria prática pedagógica para atender às distintas formas de aprendizagem de seu alunado. No rumo deste entendimento, o PDE (Programa de Desenvolvimento Educacional) comparece de modo inusitado na história da educação pública em nosso país, preconizando uma política educacional inovadora de Formação Continuada para o quadro de professoras e professores da rede pública estadual de ensino. Propondo um conjunto de atividades articuladas e definidas a partir das necessidades da Educação Básica, busca na parceria com Ensino Superior a contribuição fraterna para a realização da qualidade desejada para a educação pública no Paraná. Em perseguição à utopia de uma educação crítica, coletiva, coletivista, transformadora e de qualidade, o PDE viabiliza o retorno do professor às Instituições de Ensino Superior e o contato deste profissional com os suportes tecnológicos necessários ao desenvolvimento de pesquisas pedagógicas que irão ensejar sua intervenção na realidade escolar de um modo revigorado, ressignificado a objetivação das possibilidades de transformação da realidade social.

No contexto de uma educação crítica e emancipatória, entendo que a culpabilidade das vítimas do desespero (você não se capacitou!) é o discurso produzido e reproduzido pelas ideologias liberal e neoliberal. Tem um elemento sistemático e de valor para o ser humano. Os operadores competentes do capitalismo só aumentam mais o trabalho escaneado do mundo atual. Na sociedade pós-moderna, a perspectiva de apropriação da Capoeira Angola pelas aulas de Educação Física aprecem na condição de: 1) resistência, isto é, a capacidade do ser humano de viver de forma sadia num mundo insano; e 2) superação, onde, dentro do o velho conflito entre o adaptar e o libertar, cabe a pergunta: é possível ser livre dentro da prisão? Resistir à adversidade. Esta é uma categoria que tem por função adaptar as pessoas à ordem do capital. É o gran discurso do individualismo. “Cada um por si e o mercado por todos”. Como ter uma vida sã num mundo insano? Verdadeiramente, isso não se pode fazer.

Diante da dilaceração das esperanças na contemporaneidade, a escola convida a um olhar esperançoso para a necessária transformação da realidade social. Daí a necessidade da grande tarefa pedagógica: não só qualificar para o trabalho, mas, ainda, de forma especial, educar criticamente o professor e o aluno. Nesse sentido, o papel fundamental da escola frente ao mundo capitalista contemporâneo é o da formação humana e não somente o da informação. A nova perspectiva da escola frente ao novo sentido do capital deve ser o de uma criticidade capaz de entender e enfrentar o dilaceramento social, com todos os transtornos – não só econômicos, mas, ainda, psíquicos – que o mundo global é capaz de produzir. Uma pesquisa que possa aferir como esse dilaceramento social se manifesta na escola é muito interessante. É o que procurei buscar nesta pesquisa: entender os paradoxos do modo de produção capitalista e seus reflexos na escola e, especificamente, na cultura corporal de movimento aqui representada pela Capoeira, para que desse entendimento se possa almejar o enfrentamento necessário às políticas de opressão e desigualdade. Um enfrentamento que não signifique, emprestando as palavras de Adorno em “Mínima Moralia”, jogar fora a criança com a água do banho, ou seja, renunciar aos avanços tecnológicos que o capitalismo foi capaz de produzir. Entretanto, há que se socializar essas novidades. Digo socializar e não sociabilizar somente. O bolo já está pronto. E aguarda há algum tempo. É preciso reparti-lo igualmente entre todos. Antes que venha a apodrecer.

Os estudos realizados neste trabalho apresentaram novas perspectivas, novos caminhos e a necessidade de estudos futuros que possam contemplar algumas das tantas faces do tema tratado que não puderam ser aqui exploradas satisfatoriamente. Finalizo este trabalho deixando ainda entreaberta a caixa de Pandora da questão racial em nosso país. O racismo é sem dúvida uma chaga aberta, um dilema pós-moderno da humanidade, que se espraia pelo universo da luta pela constituição de novas relações sociais; uma chaga impregnada pela luta de classes. Neste sentido, para não concluir, gostaria de dizer que a capoeiragem dos angoleiros, no que tange a possibilidade da renúncia aos ditames do capital apresenta-se como perspectiva pedagógica à um projeto Educação Física subsidiária de um novo modelo social onde não haja lugar para a desigualdade e para a exploração do homem pelo homem. De conformidade com Paixão da Rocha (2006, p. 125), penso na necessidade de unificar as reivindicações que trazem em seu âmago a busca pela igualdade e pela emancipação humana, isto é, a incorporação da luta pela construção de novas relações sociais de produção ladeada pela luta contra a opressão do racismo.

O fenômeno do racismo e a questão racial são permeados por uma série de determinações; algumas delas ainda necessitam serem exploradas, discutidas e analisadas. Especialmente, gostaria de averiguar uma questão. [...] Todas as reivindicações que tragam em seu cerne a busca pela igualdade real e pela emancipação humana devem ser incorporadas na luta para a construção de novas relações sociais e na construção de novas relações de produção. Na perspectiva da aliança entre a questão racial e a questão de classe, concluímos este trabalho lembrando a solidariedade e ação dos trabalhadores.

ANEXOS

CANTIGAS TRADICIONAIS DE CAPOEIRA ANGOLA

10. Eu sou Angoleiro

Eu sou Angoleiro

Angoleiro e o que eu sou
Eu sou Angoleiro

Angoleiro de valor
Eu sou Angoleiro

Angoleiro Salvador

Eu sou Angoleiro
Angoleiro sim senhor

Eu sou Angoleiro

Meu mestre me ensinou

Eu sou Angoleiro

11. A Bananeira caiu

O facão bateu em baixo
A bananeira caiu
O facão bateu em baixo
A bananeira caiu
Cai cai bananeira
A bananeira caiu

12. Tamanduá, como vai coroa

Tamanduá, como vai coroa

Tamanduá, como vai coroa

Tamanduá, como vai coroa

Tamanduá
Como vai coroa
Tamanduá

Como vai coroa
Tamanduá
Como vai coroa
Tamanduá
Como vai coroa
Tamanduá
Como vai coroa

13. A cobra morde

Ia passando no caminho

Ia passando no caminho

Uma cobra me mordeu

Meu veneno era mais forte

Foi a cobra que morreu

Essa cobra me morde
Senhor São Bento
Essa cobra me morde

Senhor São Bento
Olha a cobra mordeu

Senhor São Bento
Ô que cobra malvada

Senhor São Bento
Que cobra ligeira

Senhor São Bento
Ela é venenosa

Senhor São Bento

14. Adão, Adão

Adão, Adão
Oi cadé Salomé, Adão
Oi cadé Salomé, Adão
O foi pra Ilha de Marè
Adão, Adão
Oi cadé Salomé, Adão
Oi cadé Salomé, Adão
O Salomé foi passeia
Adão, Adão
Oi cadé Salomé, Adão

15. Adeus, Adeus

Adeus, adeus
Boa viagem
Eu vou embora
Boa viagem
Eu vou com Deus
Boa viagem
E com Nossa Senhora
Boa viagem
Adeus
Boa viagem
Adeus
Boa viagem
Adeus, Adeus
Boa viagem
Adeus

16. Ai! Ai! Aidê!

Ai! Ai! Aidê!
Aidê! Aidê! Aidê!
Ai! Ai! Aidê!
Joga bonito que eu quero ver
Ai! Ai! Aidê!
Joga bonito que eu quero aprender

17. São Bento me Chama

Ai, ai, ai, ai
São Bento me chama
Ai, ai, ai, ai
São Bento me leva
Ai, ai, ai, ai
São Bento me prenda
Ai, ai, ai, ai
São Bento me solta
Ai, ai, ai, ai
Me chamou que vou
Ai, ai, ai, ai
São Bento me qué.
Ai, ai, ai, ai
Pra jogar capoeira
Ai, ai, ai, ai
E me joga no chao
Ai, ai, ai, ai
E se joga no chão
Ai, ai, ai, ai

18. Cajuê

Vo Manda lecô
Cajuê
Vo Manda loiá
Cajuê
E menina Linda
Cajuê
Venha me buscar
Cajuê
Leco
Cajuê
Loia
Cajuê

19. Camungerê

Camungerê
Como ta como ta
Camungerê
Como vai voismicê
Camungerê
Eu vou bem de saúde
Camungerê
Pra mim é um prazer
Camungerê

20. Dona Maria Como Vai Você

Vai você, vai você
Dona Maria como vai você
Vai você, como vai você
Dona Maria como vai você
Olha joga ligeiro que eu quero ver
Dona Maria como vai você
Joga bonito que eu quero aprender

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Publicado por: Giancarlo

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