Análise crítica do depoimento infantil em casos de abuso sexual intrafamiliar

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1. RESUMO

No que se refere aos direitos das crianças e dos adolescentes, esses eram considerados objetos de direito, sendo garantidos pela religião, pelos costumes e pela lei, perdurando isso até a promulgação do Estado Democrático de Direito, que passou a considerá-los como sujeitos de direitos. Na contemporaneidade, a premissa constante é garantir a todos os direitos estabelecidos pela lei, desde que presentes os elementos capazes de provar a ocorrência da violação do direito. Contudo, existem casos em que não é possível determinar a ocorrência do delito por meio de prova, a não ser pelo depoimento da vítima, principalmente no crime de estupro de vulnerável que, normalmente não deixa vestígios e é cometido na clandestinidade, impossibilitando que um terceiro presencie o fato. Ocorre que, com a revogação do crime de atentado violento ao pudor, os atos libidinosos passaram a ser considerados estupro, e tal mudança pode ser prejudicial nos casos intrafamiliares por corresponderem a 80% das notificações, por ser a pena aumentada pela metade, por poder ser falsamente intencionado ou mal interpretado tanto pela mãe como pelo profissional médico (psicólogo), podendo ainda ser sugestionado por eles, levando a criança a fantasiar um ato sexualizado que não existiu, sem falar na vontade de condenar de todos os envolvidos, inclusive da Justiça Criminal. Essas circunstâncias revelam a possibilidade de condenação do acusado, tendo como base, o depoimento da criança e o laudo psicológico, sendo que o fator determinante foi a prática de um ato libidinoso, fazendo-se então, necessário, relativizar o depoimento da criança nestes casos. Entretanto, se condenado em certos tipos de atos libidinosos (beijo lascivo, toque nas partes íntimas, masturbação não realizada pelo sujeito passivo), a pena se mostra desproporcional ao tipo penal, revelando a necessidade de um tipo penal adequado e equivalente.

Palavras-chave: vestígios; estupro de vulnerável; atos libidinosos; intrafamiliar.

ABSTRACT

With regard to the rights of children and adolescents, these were considered objects of law, being guaranteed by religion, by custom and law, this lasting until the promulgation of a democratic state, which now consider them as subjects of rights. In contemporary times, the constant premise is to ensure all rights established by law, since the present evidence capable of proving the occurrence of the violation of law. However, there are cases where it is not possible to determine the occurrence of the crime by evidence, unless on the testimony of the victim, especially in the case of rape of vulnerable which usually leaves no trace and is committed in secrecy, making it impossible for a third Witness the fact. It happens that, with the repeal of the offense of indecent assault, the sexual acts are now considered rape, and such change may be harmful intrafamiliy cases because they correspond to 80% of the notifications, the penalty to be increased by half, by power be falsely intentioned or misunderstood by both the mother and the medical professional (psychologist) and may also be suggestible for them, leading the child to fantasize of a sexualized act that did not exist, not to mention the willingness to condemn everyone involved, including Justice criminal. These circumstances reveal the possibility of conviction of the accused, based on the testimony of the child and the psychological report, and the determining factor was the practice of a libidinous act, then making necessary, relativize the child's testimony in these cases . However, if convicted of certain types of sexual acts (lustful kiss, touch the private parts, masturbation not held by the taxpayer), the penalty is disproportionate to the criminal type shows, revealing the need for an appropriate type and equivalent criminal.

Keywords: traces; rape vulnerable; lascivious acts; intrafamily.

2. INTRODUÇÃO

Este trabalho faz observação ao Direito Processual Penal e ao Direito Penal, Das Provas e Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual, respectivamente, incluindo Direito Civil e Psicologia, estando ambos dirigidos a Análise Crítica do depoimento infantil em casos de abuso sexual intrafamiliar.

O abuso sexual intrafamiliar corresponde a 80% dos casos conhecidos, sendo que, normalmente, não são encontrados vestígios determinadores do fato, por corresponderem a um ato libidinoso, que, por ser cometido na clandestinidade, impossibilita que um terceiro presencie o fato, como também pode ser intencionalmente falso, mal interpretado ou fantasiado, restando, dessa forma, o depoimento da criança como meio probatório, corroborado por laudo psicológico. Entretanto, entendemos, ser necessário relativizar esse depoimento nestes casos, sendo este o objeto de estudo (AZAMBUJA, 2011).

É notório que o depoimento da criança vítima de crime contra a dignidade sexual tem presunção de veracidade, sendo assim entendido, de forma pacífica pela doutrina majoritária e tribunais, principalmente se acompanhados de laudo médico. Contudo, mesmo sendo necessária a presença desses profissionais, fica evidenciada a falta de capacitação, a influência e o despreparo no emprego de técnicas, não podendo deixar de mencionar que, muitas vezes, a alegação do abuso é feita pela mãe em decorrência de problemas conjugais, por envolver a guarda ou a revisão de guarda da criança, ou pela sugestionabilidade, que pode levar a criança a fantasiar o suposto abuso (AMENDOLA, 2009).

Sendo o Ministério Público competente por zelar pelos direitos e garantias legais estabelecidos à criança e ao adolescente, cabe a ele oferecer a denúncia da ocorrência de abuso sexual, se suficientes forem as provas. Entretanto, mesmo munido de poucas evidências capazes de determinar o abuso sexual intrafamiliar, o Ministério Público tem representado, pois o objetivo é garantir à criança ou adolescente como sujeito de direito, e não como objeto de direito como era determinado até poucas décadas atrás. Contudo, na constante busca de garantir direitos, pode ocorrer a violação de direito alheio, seja pela difícil constatação da prática do ato libidinoso, ou pelo método de depoimento adotado, e, não menos importante, pela estigmatização do acusado, mesmo sendo inverídica a alegação de abuso sexual, por estar relacionado à família (AMENDOLA, 2009).

Para garantir a criança e adolescente como sujeito de direito não foi fácil, até porque não era de interesse do Estado e se tratava de uma tendência baseada nos costumes e na religião, e as leis existentes não se referiam a essa classe. Sendo assim, de forma degradativa, o aspecto objeto de direito foi suprimido por sujeito de direito decorrente de Tratados Internacionais, referentes a essa classe, e da promulgação da Constituição Federal de 1988 e da Lei específica (8.069/90) Estatuto da Criança e Adolescente (AZAMBUJA, 2011).

Empolgado na busca de resultado para melhor atender às necessidades das crianças e adolescentes, sendo determinante os princípios da Prioridade Absoluta à Infância e o Princípio do Interesse Maior da Criança, o legislador, em 07/08/2009, anuncia a Lei 12.015, que alterou o Título VI do Código Penal antes denominado "Dos Crimes Contra os Costumes" para "Dos Crimes contra a Dignidade sexual". Essa lei criou um novo tipo penal, Estupro de Vulnerável (217-A), e revogou o art. 214 que tratava do atentado violento ao pudor.

Pela nova composição, os atos libidinosos caracterizam estupro, crime hediondo, além de ter a pena acrescida de metade se for ascendente (pai), padrasto, companheiro, ou qualquer outro, que tiver autoridade sobre a criança. Entretanto, existem tipos de atos libidinosos que não refletem a cominação da pena que lhe é atribuída, revelando, assim, o quanto pode ser danosa uma alegação de abuso sexual intrafamiliar, tendo o depoimento da criança presunção de veracidade, por falta de provas materiais (vestígios), ou testemunhais, podendo ser intencionalmente falso, mal interpretado ou fantasiado, com o objetivo de todos os envolvidos em condenar o acusado (NUCCI, 2013).

Contudo, mesmo não sendo falsa a alegação de abuso sexual, a aplicação da pena em casos de toque nas partes íntimas, beijo lascivo, masturbação do sujeito ativo não realizado pelo sujeito passivo se mostra desproporcional, principalmente se relacionado ao grupo familiar, fazendo necessário um tipo penal equivalente.

A metodologia utilizada é procedente de pesquisas em doutrinas, jurisprudências e julgados, sendo essas as fontes utilizadas para obtenção de dados referentes a todos os assuntos previstos, que, de forma explícita, são capazes de remeter um melhor entendimento da narrativa a seguir.

3. PROVA

A prova é o elemento essencial para o oferecimento da denúncia, além de ser o principal embasamento para que o juiz crie seu convencimento sobre a ocorrência do fato, podendo absolver ou condenar o acusado. Dessa forma, de início, mostraremos a essencialidade da prova, como fator determinante em casos de abusos sexuais intrafamiliares contra crianças, perpretados pela prática de um ato libidinoso.

3.1. CONCEITO

“O termo prova origina-se do latim - probatio -, que significa ensaio, verificação, inspeção, exame, argumento, razão, aprovação ou confirmação” (NUCCI, 2013, p. 360).

A prova vincula-se à verdade e à certeza, que se ligam à realidade, todas voltadas, entretanto, à convicção de seres humanos. O universo no qual estão inseridos tais juízos do espírito ou valorações sensíveis da mente humana precisa ser analisado tal como ele pode ser e não como efetivamente é (NUCCI, 2009, p.13).

Para Tourinho Filho (2013, p. 563) “[...] provar é, antes de mais nada, estabelecer a existência da verdade. É demonstrar a veracidade do que se afirma, do que se alega; vale dizer, portanto, que ela se destina ao convencimento do juiz”.

Os crimes sexuais contra crianças geralmente são cometidos na clandestinidade, longe dos olhares de outras pessoas, ficando a própria criança vítima do abuso sexual encarregada de encaminhar e estabelecer a verdade do crime que foi vítima, pois, raramente, na prática do ato libidinoso são encontrados vestígios que poderiam ser determinantes para o convencimento do juiz.

3.2. CLASSIFICAÇÃO OU ELEMENTOS DA PROVA

Podemos classificar a prova em relação ao objeto, efeito ou valor, sujeito e forma. Para Capez (2002, p. 262) “o objeto da prova nada mais é do que o fato cuja existência carece ser demonstrada”. Assim a prova deve ser:

Direta: quando, por si, demonstra um fato, ou seja, refere-se diretamente ao fato probando.

Indireta: quando alcança o fato principal por meio de um raciocínio lógico-dedutivo, levando-se em consideração outros fatos de natureza secundária, porém relacionados com o primeiro, como, por exemplo, no caso de um álibi (CAPEZ, 2002, p. 262).

A ocorrência de prova direta, nos casos de abuso sexual praticado contra criança no âmbito familiar, normalmente não é detectada por se tratar de um ato libidinoso, restando, então, os fatores secundários, normalmente é utilizado o profissional médico na busca de alcançar o fato principal.

A prova deve ser em razão do efeito ou valor:

Plena: trata-se de prova convincente ou necessária para a formação de um juízo de certeza no julgador; prevalecerá o princípio do in dubio pro reo. Não plena ou indiciária: trata-se de prova que traz consigo um juízo de mera probabilidade, vigorando nas fases processuais em que não se exige um juízo de certeza, como na sentença de pronúncia, em que vigora o princípio do in dubio pro societate. (CAPEZ, 2002, p. 262).

Hoje, os crimes sexuais praticados contra crianças, uma vez oferecida a denúncia, mesmo que prevalecesse o princípio in dubio pro reo, que não é o caso, restará a este a estigmatização, devido à acusação, e o juízo, de mera probabilidade, é de condenar o acusado, fatos que serão constatados no decorrer do estudo.

A prova em relação ao sujeito:

Pode ser pessoal ou real. A primeira é toda afirmação pessoal consciente, destinada a fazer fé dos fatos afirmados, p. ex., o testemunho, o interrogatório,a declaração da vítima. Diz-se real, quando a prova emerge do próprio fato: a mutilação de um membro, a exibição de uma arma, uma fotografia (TOURINHO FILHO, 2013, p. 565).

Constatar a prova real de um ato libidinoso, na escassez de vestígios, praticamente é impossível, restando a prova pessoal, feita através do depoimento da vítima, que é o sujeito passivo. Devido à clandestinidade do ato sexualizado, raramente existe outro tipo de prova, material, documental ou testemunhal.

Quanto à forma:

A prova pode ser pessoal, significando a afirmação feita por uma pessoa: testemunho, interrogatório, declaração; documental, que é a afirmação feita por escrito; e material, “consiste em qualquer materialidade que sirva de prova ao fato probando”: o instrumento do crime, os producta sceleris, as coisas apreendidas, os exames periciais. (TOURINHO FILHO, 2013, p. 565).

3.3. MEIOS DE PROVA

“É tudo quando possa servir, direta ou indiretamente, à comprovação da verdade que se procura no processo: testemunha, documento, perícia, informação da vítima, reconhecimento, tudo são meios de prova” (TOURINHO FILHO, 2013 p. 565).

Importante saber que somente são admitidas as provas compreendidas como lícitas, ficando, dessa forma, as provas ilícitas ou as derivadas das ilícitas como inadmissíveis no processo, tendo por base a Constituição Federal vigente.

3.4. FONTE DE PROVA

Fonte de prova é "tudo quanto pode ministrar indicações úteis, cujas comprovações sejam necessárias. Assim, a denúncia, embora não seja elemento ou meio de prova, é uma fonte desta, uma vez que contém indicações úteis, exigindo comprovação” (TOURINHO FILHO, 2013, p. 565).

3.5. ÔNUS DA PROVA

“Ônus da prova é, pois, o encargo que têm os litigantes de provar, pelos meios admissíveis, a verdade dos fatos” (CAPEZ, 2002, p. 265).

“Portanto, cabe provar a quem tem interesse em afirmar. A quem apresenta uma pretensão cumpre provar os fatos constitutivos; a quem fornece a exceção cumpre provar os fatos extintivos ou as condições impeditivas ou modificativas” (CAPEZ, 2002, p. 265).

“No processo penal, como regra, o ônus da prova é da acusação, que apresenta a imputação em juízo através da denúncia ou queixa-crime” (NUCCI, 2013, p. 367). O Ministério Público é o órgão competente para oferecer a denúncia quando a vítima de crime sexual for uma criança ou um adolescente, sendo, a ação penal pública incondicionada, independente de violência real, como prevê a súmula 608 do STF. Entretanto, mesmo sendo insuficientes os fatos constitutivos, a imputação do crime sexual intrafamiliar às vezes é realizada, motivada pelo desejo de condenar, cabendo ao acusado provar o contrário.

4. FAMÍLIA, ONDE TUDO COMEÇA

Neste capítulo iremos perceber que é na família onde começa toda a discussão sobre o nosso tema. A evolução do conceito de família passou por grandes modificações desde os primórdios aos dias de hoje, e essas modificações foram determinantes para a problemática referente à alegação de abuso sexual intrafamiliar ou incesto familiar, que agora corresponde ao crime de estupro.

Na antiguidade clássica, as famílias Gregas e Romanas foram constituídas e influenciadas por religiões primitivas, e isso cadenciou numa organização política que tinha como princípio básico uma autoridade, que abrangia todos que a ela estavam submetidos. O pater familias (WOLKMER, 2010).

“O pater familias era, ao mesmo tempo, chefe político, sacerdote e juiz, constituindo-se, assim, a família como unidade da sociedade antiga” (WOLKMER, 2010, p. 114).

Na sociedade antiga, afirma Cretella Junior (apud AMENDOLA, 2009, p. 27), que ao pater familias cabia: “ius vitae ac neci – direito de vida e morte; ius expondendi – direito de abandonar os filhos recém-nascidos; ius vendendi – direito de vender o filho; poder de emancipar; e noxae deditio – direito de repassar a vingança ao filho”.

Além da grande autoridade que o pai exercia naquela época, em relação às crianças, conferida pelos costumes e princípios religiosos, também existiram práticas que "envolviam inúmeras formas de violência à criança, referendadas pela própria legislação, como demonstram o Código de Hamurábi (1728-1686 a.C), as Leis de Rômulo (Roma), a Lei das XII Tábuas” (AZAMBUJA, 2011, p. 24).

O Código de Hamurábi permitia ao pai cortar a língua do filho adotivo, se este dissesse que seus pais adotivos não eram seus pais biológicos, e ainda arrancar seus olhos se ele tivesse algum intuito de voltar à casa dos pais biológicos. Segundo a Lei das XII Tábuas, com o aval de cinco vizinhos, podia o pai matar o filho recém-nascido se fosse constatada alguma sequela. Os adultos ainda acreditavam que, através de castigos físicos e espancamentos, poderiam modelar as crianças conforme seus anseios (AZAMBUJA, 2011).

Entretanto, a taxa de mortalidade na Idade Média era muito alta em relação ás crianças; dessa forma, devido à pouca expectativa de vida da criança, os adultos não criavam vínculos afetivos com elas; inclusive, os cuidados quanto à higiene e alimentação eram conferidos a amas de leite, e a infância terminava por volta dos sete anos, tendo por base o domínio da palavra da criança (AMENDOLA, 2009).

Somente por volta do século XVI, surge um novo relacionamento referente à criança, como mencionam Ariès e Duby (apud AZAMBUJA, 2011, p. 24) que, “por sua ingenuidade, gentileza e graça, se tornava uma fonte de distração e de relaxamento para o adulto, um sentimento que podemos chamar de paparicação”.

Com o surgimento da escola, no início do século XVIII, e a importância que a Igreja dava ao sentimento de família, surgiu uma nova modalidade de família: a família nuclear burguesa, composta pelo casal e pelos filhos. Na Europa, as grandes transformações socioeconômicas do final do século fizeram os seres humanos serem mais valorizados devido à sua importância na indústria, tendo referência a mão de obra. Nessa época, os pais objetivavam um desenvolvimento saudável dos filhos, passando estes de ônus a um investimento (AMENDOLA, 2009).

Entretanto, a nova modalidade de assistência médica, a pediatria, passou a dar mais atenção às crianças e à família. Segundo Amendola (2009, p 29), “com a difusão da medicina doméstica, entre o fim do século XVIII e as últimas décadas do século XIX, os médicos higienistas passaram a influenciar as relações familiares”. Segundo Brito (apud AMENDOLA, 2009, p. 29), “[...] ao pai caberia a subsistência material da criança, e à mãe, a educação”.

Tendo a Medicina europeia por aliada, as mulheres redefiniram seus papéis, desde suas características emocionais e sexuais, às sociais. Tornaram-se responsáveis pelos cuidados infantis, como aleitamento, que, de atribuição das amas, passou a ser considerado vocação natural das mães, e pela inserção dos filhos ao meio social. Portanto, o ato de amamentar passou a ser premissa básica do amor materno (AMENDOLA, 2009, p. 29).

Segundo Amendola (2009, p. 29), “a responsabilização das mães pelos cuidados dos filhos ocorreu em linha ascendente ao longo dos séculos XIX e XX, concomitantemente à valorização da infância”; a ideia do amor materno fez com que a mãe se dedicasse aos cuidados da criança e do lar, ocasionando uma revolução no bojo familiar.

Na França, em 1970, com a reforma legislativa, surgiu uma nova ideia de pai:

[...] o pátrio poder, que havia deixado de ser um direito natural para ser reconhecido em suas relações com a sociedade, foi excluído, fazendo desaparecer o pater familias e, consigo, o direito especificamente paterno, para fazer surgir uma autoridade a ser exercida em comum acordo e fundamentada na igualdade entre homens e mulheres, visando ao interesse da criança. Portanto, o que caracterizou a lei de 1970 foram três conceitos centrais da reforma: o de ‘igualdade’ dos esposos e dos pais, o de ‘interesse da criança’, enfim, o de ‘controle judiciário’, que se tornou necessário para arbitrar eventuais conflitos entre pais e entre pais e filhos (HURSTEL, apud AMENDOLA, 2009, p. 30).

No Brasil, a concepção de família teve forte influência do Cristianismo e do modelo familiar europeu do século XVIII. Segundo Amendola (2009, p. 30), “a base da sociedade era a família patriarcal nascida na zona rural, cujo senhor do engenho possuía autoridade absoluta sobre seus familiares, agregados e escravos”.

Dessa forma, assim como nas famílias Gregas e Romanas, a entidade familiar brasileira tinha como gerenciador o pai, seguindo o modelo português.

Somente a partir da Promulgação da República, do fim da escravidão, do início do processo de industrialização, de urbanização, de modernização do país – eventos ocorridos nas ultimas décadas do século XIX - foi possível identificar, no Brasil, uma preocupação em destinar à família normas explícitas (AMENDOLA, 2009, p. 31).

O Código Civil de 1916 abordou o tema "família" como uma instituição jurídica e social reservada ao homem e à mulher que contraíssem casamento, sendo este de forma indissolúvel, hierárquica e patriarcal, cuja finalidade era procriação (AMENDOLA, 2009).

Devido ao grande processo de urbanização e de industrialização da época, as famílias rurais passaram a migrar para as cidades, na busca de ascensão social, mas o poder do pai sobre a família continuou persistindo. Nesse sentido, argumenta Almeida (apud AMENDOLA, 2009, p. 32) que “a mulher ‘reina’ no lar, dentro do privado da casa, delibera sobre as questões imediatas dos filhos, mas é o pai quem comanda em última instância”.

Não obstante, com o advento do capitalismo, do rápido avanço urbano e da redução econômica da família, foi necessário que a mulher, antes zeladora dos filhos e do lar, ingressasse no mercado de trabalho para a manutenção da família. Esse fato fragilizou de vez a estrutura da autoridade paterna (AMENDOLA, 2009).

Segundo Amendola (2009), as principais mudanças brasileiras em relação à família ocorreram nas décadas de 1960 e 1970. A autora menciona o anticoncepcional, a Lei 4.121, de 27.08.1962, que se referia ao Estatuto da Mulher Casada, que tratava da equiparação entre os cônjuges, e a Lei 6.515, de 1977, Lei do Divórcio.

“O Estatuto da Mulher Casada modificou a condição da mulher de relativamente incapaz para os atos da vida civil, para conferir-lhe a titularidade do pátrio poder, todavia restringindo seu exercício ao pai, sendo a mãe apenas uma colaboradora” (AMENDOLA, 2009, p. 32-33).

Por outro lado, a Lei do Divórcio teve extrema importância no Direito de Família. Segundo Amendola (2009, p. 33), a Lei substituiu o “desquite (processo que cessa os ônus matrimoniais, no entanto, não dissolve o vínculo do casamento) pela separação judicial”.

Apesar de a dissolução da sociedade conjugal ser permitida e concretizada a partir de 1977, essa sociedade guardava, ainda, resquícios do pensamento precursor evidentemente punitivo, estabelecendo a culpa pelo inadimplemento das obrigações específicas na Lei, a citar: fidelidade recíproca, dever de coabitação, de mútua assistência aos filhos (AMENDOLA, 2009, p. 34).

Referente à dissolução da sociedade conjugal, o art. 5º da Lei 6.515, de 1977, destaca que a “separação judicial pode ser pedida por um só dos cônjuges, quando imputar ao outro conduta desonrosa ou qualquer ato que importe em grave violação dos deveres do casamento e tornem insuportável a vida em comum”. No entanto, se a separação judicial for fundamentada nesse artigo, os filhos ficariam com o cônjuge que não houvesse dado causa, e se ambos fossem responsáveis pela separação judicial, os filhos menores ficariam em poder da mãe. Observa-se que o legislador tendenciou em deixar a guarda dos filhos com a mãe, pois esta ocupava o lugar de protetora, cuidadora e educadora dos filhos.

Com o advento da nova Constituição Federal, tendo como premissa básica o princípio da igualdade, o art. 5º, I, enuncia que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”, acabando com a terminologia pátrio poder.

Atendendo aos princípios constitucionais de igualdade e isonomia entre homens e mulheres, garantidos pela nova Constituição, o Código Civil de 2002 deu nova nomenclatura à estrutura familiar, denominada, agora, de Poder Familiar (AMENDOLA, 2009). Esses princípios foram extremamente importantes, pois “outorgaram à esposa o direito de decidir conjuntamente com o marido sobre as questões de interesse do casal e dos filhos, substituindo o poder decisório do marido (Pátrio Poder) pela autoridade conjunta (direitos e deveres)” (AMENDOLA, 2009, p. 36).

O CC, de 2002, com o intuito de garantir efetivamente o exercício da parentalidade, “além de eliminar o critério da perda da guarda por culpa na separação judicial, valorizando, sobretudo, as relações de afinidade e afetividade para sua fixação, tenta extinguir os privilégios da mãe na atribuição da guarda dos filhos” (AMENDOLA, 2009, p. 39). Dentro dessa premissa, define o art. 1.584 do CC, de 2002, que “decretada a separação judicial ou o divórcio, sem que haja entre as partes acordo quanto à guarda dos filhos, será ela atribuída a quem revelar melhores condições para exercê-la”. Se não bastasse, a CF de 1988 garantiu, de forma implícita, o direito de a criança conviver e ser educada pelo pai, sendo depois ampliada pela Lei 8.069/90.

Na perspectiva de estar próximos das crianças, menciona Amendola (2009, p. 40) “que alguns pais têm procurado a justiça na tentativa de assegurar, por lei, o direito ao convívio e à educação dos filhos, configurando, por vezes, uma disputa pela guarda entre os genitores”.

A partir desse momento, surge a problemática. Quando mães fazem acusações contra ex-companheiros ou ex-cônjuges de abusarem sexualmente dos filhos, devido ao término da relação ou pela disputa e revisão de guarda, podendo nestes casos ocorrer a sugestionabilidade da mãe sobre os filhos, na alegação do abuso. Existe, ainda, a possibilidade de uma má interpretação de um ato sexualizado deduzido não só pela mãe, mas também pelo profissional da medicina, requisitado este nos casos de abuso sexual infantil. Entretanto, para provar a ocorrência do abuso sexual, será necessário ouvir o depoimento da criança. Nesses casos, até quando o depoimento é confiável?

Analisaremos também as mudanças que ocorreram no Código Penal Brasileiro no (Título VI), em virtude da Legislação específica referente à criança e ao adolescente, na busca de garantir efetivamente os direitos inerentes a esse grupo da sociedade.

5. ABUSO SEXUAL INTRAFAMILAR

De início, devemos considerar criança “pessoa de até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade” (art. 2º, 8.069/90), lembrando que, no Código Penal Brasileiro, o art. 217-A faz menção à vulnerabilidade de pessoa menor de quatorze anos.

5.1. CONCEITO

Os abusos sexuais não trazem um conceito determinativo; sendo assim, são várias as formas de definir o abuso sexual, podendo ser conhecida como violência sexual, abuso sexual e, ainda, vitimização sexual (AZAMBUJA, 2011). De certo, é que essas definições sempre estiveram na esfera familiar, como demonstrou a história, entretanto, “eram vistos como o exercício, pelos pais, de seus direitos sobre os filhos, assegurados pelas leis, pelos costumes e pelos princípios religiosos” (RANGEL, 2011, p. 29), como já vimos.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) classifica o abuso sexual infantil:

como qualquer atividade sexual (incluindo intercurso vaginal / anal, contato gênito-oral, contato gênito-genital, carícias em partes íntimas, masturbação, exposição a pornografias ou a adultos mantendo relações sexuais) envolvendo uma criança incapaz de dar seu consentimento (AZAMBUJA, 2011, p. 91).

No Brasil, instituições também desenvolveram um conceito para violência sexual. Segundo a Associação Brasileira Multidisciplinar de Proteção à Infância e à Adolescência (ABRAPIA), a violência sexual é:

uma situação em que uma criança ou adolescente é usado para gratificação sexual de um adulto ou adolescente mais velho, baseado em uma relação de poder incluir desde carícias, manipulação na genitália, mama ou ânus, exploração sexual, voyeurismo, pornografia e exibicionismo, até o ato sexual com ou sem penetração, com ou sem violência física (AMENDOLA, 2009, p. 53).

Depois de conceituado, podemos, entender que o abuso sexual intrafamiliar é:

aquela praticada por agressor que faz parte do grupo familiar da vítima, considerando-se não apenas a família consanguínea, como também as famílias adotivas e socioafetivas, onde se incluem os companheiros da mãe e do pai, ou, ainda, pessoas da confiança da criança (AZAMBUJA, 2011, p. 90).

Rangel (2011, p. 25) considera o “abuso sexual intrafamiliar ou incesto abusivo as relações com conotação sexual entre pais e filhos, crianças ou adolescentes, no interior da família, sejam os laços que os unem consanguíneos, afins ou civis”. Em contrapartida, Costa (apud AMENDOLA, 2009, p. 58-59) explica que o “[...] incesto não é um crime autônomo, ou seja, não existe o crime de incesto. Ele é considerado um agravante para os crimes de estupro e atentado violento ao pudor”. O crime de atentado violento ao pudor foi revogado pela Lei 12.015/09, contudo sua formalidade foi implantada dentro do crime de estupro, podendo considerar que o enunciado acima presume validade nos dias de hoje. Convém mencionar que o abuso sexual infantil intrafamiliar abrange todas as classes sociais, entretanto, as que possuem poder aquisitivo maior encontram possibilidades de camuflar o fato, restando maiores constatações nas classes baixas, por dependerem dos serviços prestados pelo Estado (AMENDOLA, 2009).

NOTIFICAÇÃO DO ABUSO SEXUAL INTRAFAMILIAR

Caracterizar o abuso sexual intrafamiliar é extremamente complicado. Contudo, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em observação aos Princípios do Interesse Maior da Criança e da Prioridade Absoluta à Infância, vem, em seu art. 5º, enunciar que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punindo, na forma da lei, qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”.

Sendo assim, fica o Conselho Tutelar de cada município encarregado de zelar pelo cumprimento dos direitos das crianças e dos adolescentes, além de encaminhar ao Ministério Público notícia de fato que constitua infração administrativa ou penal contra os direitos da criança e do adolescente (art. 131-136, ECA). Dessa forma, quando houver suspeita ou ocorrência de violência contra criança, de forma imediata e obrigatória deverá ser comunicado ao Conselho Tutelar. Segundo Torres (apud AMENDOLA, 2009, p. 74), “a esta comunicação obrigatória denomina-se notificação compulsória, cujo objetivo é promover a manutenção de direitos”.

O termo notificação, por vezes, é usado como sinônimo de denúncia, pois ambos podem ser compreendidos como uma comunicação a respeito de um fato, em particular da violência contra a criança. Entretanto, o termo notificação compulsória remete à comunicação com vistas à execução de um registro, que pode ser uma ficha padronizada usada em alguns Estados e Municípios, documento este capaz de desencadear um complexo de ações específicas (investigação, intervenção familiar), com o único propósito: colocar em prática os direitos da criança e interromper a produção e a reprodução da violência intrafamiliar (AMENDOLA, 2009, p. 74).

Mencionamos acima que o fato é noticiado ao Ministério Público, que, encontrando fundamentos, fará a denúncia, buscando a responsabilização do acusado e reparação da vítima, através de uma ação penal pública, pois é de sua competência “[...] zelar pelo efetivo respeito aos direitos e garantias legais assegurados às crianças e adolescentes (art. 201, VIII, ECA)”. Essa, então, é a diferença entre a notificação e a denúncia.

Segundo Amendola (2009), tendo a família, a sociedade e o poder público dever de assegurar os direitos das crianças e dos adolescentes, encontram eles três portas de entrada para noticiar o abuso sexual, sendo elas:

Porta de Entrada do Fluxo de Atendimento – referente às queixas não notificadas – composta pelas instituições executoras de políticas sociais, como os serviços de saúde, escolas, bem como os programas de proteção especial, ONG, Disque-denúncia; Porta de Entrada de Fluxo de Defesa dos Direitos – referente àquelas notificadas – composta pelos Conselhos Tutelares, Varas de Infância e Juventude, Ministério Público, Defensoria Pública e centro de Defesa e, finamente;

Porta de Entrada do Fluxo de Responsabilização – composta pelas Delegacias de Polícia, Delegacias de Proteção à Criança e ao Adolescente, Delegacia da Mulher, Varas Criminais e Ministério Público (FALEIROS; COLS, apud AMENDOLA, 2009, p. 75).

Portanto, Amendola (2009, p. 75) define as portas de entrada como caminhos da denúncia, que são o “trajeto a ser seguido por crianças e seus familiares, a partir do ingresso da notificação de abuso sexual na rede de proteção e defesa dos direitos da população infanto-juvenil”.

Depois de termos visto o funcionamento da notificação, devemos considerar que, além de ser difícil detectar o abuso sexual por falta de evidências para comprovação do fato, muitas vezes o abuso não existiu, e é nesses casos, quando a acusação é falsa que “a criança geralmente ingressa no caminho da denúncia, acompanhada por sua mãe guardiã, pela porta de entrada do fluxo de defesa de direitos” (AMENDOLA, 2009, p. 79).

No entanto, na porta de entrada do fluxo de atendimento há uma exceção em

relação aos programas de proteção especial e às ONGs, muitas vezes procuradas pelas mães denunciantes na intenção de obter comprovação do abuso sem, contudo, passar por atendimento médico pediátrico e exame de corpo de delito, que nada constatariam (AMENDOLA, 2009, p. 79).

Contudo, mesmo em casos em que crianças não sofreram o abuso sexual, a notificação ou a denúncia poderá ocorrer. Segundo Amendola (2009, p. 80), “psicólogos do Núcleo de Psicologia do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro têm descrito um aumento de casos de queixas infundadas de abuso sexual no curso de processos em Varas de Família”. Nessa perspectiva, alerta Shine (apud AMENDOLA, 2009, p. 80) ser necessário “distinguir o que são falsas alegações motivadas por uma má interpretação, daquelas que são realizadas intencionalmente”; e acrescenta:

Teremos más interpretações motivadas por um estado de ânimo da mãe que leva a cogitar tal ato vindo do ex-companheiro, e outras, intencionalmente falsas, caracterizando, claramente, uma atuação psicopática que subordina o bem-estar da criança e do adulto acusado a algum interesse próprio (SHINE, apud AMENDOLA, 2009, p. 80).

Sendo assim, podemos entender que as alegações motivadas por uma má interpretação, são aquelas que têm por base o comportamento e sintomas desenvolvidos pela criança, sendo observados tanto pela mãe e até mesmo pelo profissional da medicina, mas esses sintomas ou comportamentos nem sempre se relacionam ao abuso sexual. As alegações intencionais seriam aquelas em que não existem os sintomas ou comportamentos; contudo, a mãe, com raiva do término da relação conjugal, ou por disputa de guarda dos filhos, busca atingir o ex-companheiro ensejando falsas alegações em uma das portas de entrada, fatos todos esses já mencionados acima.

Feita a notificação de suspeita ou ocorrência de abuso sexual em uma das portas de entrada, “para encaminhar um pedido de representação ao MP, é preciso produzir provas de materialidade da ocorrência de abuso sexual”, requisito essencial à propositura da ação (AMENDOLA, 2009, p. 80).

5.2. REPRESENTAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Depois de produzidos os elementos necessários para a caracterização de abuso sexual (intrafamiliar) contra a criança, eles serão remetidos ao Ministério Público para a devida representação. Entretanto, pode o

Ministério Público entender que as evidências apresentadas foram mal produzidas, sendo um impedidor para a instauração de um pedido de providências (investigação). Tal fato poderia resultar na interrupção do caminho da denúncia, pela improcedência das acusações (AMENDOLA, 2009, p. 81).

Os estudos de Márcia Ferreira Amendola apontam exatamente o contrário:

[...] mesmo munido de poucas ou precárias evidências, o MP tem instaurado muitos pedidos de providência. Tal procedimento remeteria à necessidade de elaborar mais e melhores provas, ou seja, provas irrefutáveis, obrigando crianças e seus genitores a circularem, novamente, pela rede de atendimento - a fim de que realizem inúmeras intervenções como: estudo social, entrevistas de revelação, exames médicos e psiquiátricos. Essa circulação que envia a criança para uma e outras tantas entrevistas de revelação do abuso para reformulação do abuso, que é repassada, recontada e revivida pelas crianças abusadas – o que se determinou se chamar de revitimização – é criada, contada, sugerida, recriada pela mãe-guardiã e por toda equipe de profissionais, até ser fixada no imaginário infantil, podendo-se assim revitimizar as crianças que foram abusadas e violentar aquelas que não foram (AMENDOLA, 2009, p. 81).

O que se pode observar é que o Princípio do Interesse Maior da Criança e da Prioridade Absoluta à Infância busca garantir seus direitos, elencados na CF e na Legislação específica. Entretanto, às vezes, o desejo de garantir direitos pode violar direitos, como a acusação de um inocente, devido à necessidade de garantir o que determina a Legislação específica, a Constituição Federal e os Tratados Internacionais.

Caso o Ministério Público consiga juntar evidências suficientes para provar o abuso sexual infantil (intrafamiliar), que não é o caso, oferecerá a denúncia. Por outro lado, se houver “ausência de elementos irrefutáveis de prova que sustentem a suspeição do acusado pela ocorrência de crime, a Vara Criminal deve fazer primar o benefício da dúvida, conhecido pelo principio in dubio pro reo” (AMENDOLA, 2009, p. 81).

Embora, este princípio se julgue pela indeterminação do fato e encerramento do processo, tal fato não significa que o acusado seja inocente, restando duas opções possíveis: ou o sujeito é o agressor em que não foi possível juntar provas para indiciá-lo pelo crime cometido, ou é o suspeito que, mesmo sendo inocente de fato, por não haver cometido o crime, levará consigo a mácula da acusação e da suspeição (AMENDOLA, 2009, p. 82).

A mácula da suspeição e da acusação corresponde à estigmatização do suposto abusador, ou seja, que relação terá os vizinhos e a comunidade para com a pessoa que foi noticiada ou denunciada por abuso sexual infantil? Percebemos que, pela grande repercussão que envolve esse assunto, mesmo que o acusado seja absolvido, carregará ele a mancha de estuprador, sendo criminalizado pelo fato, pois o abuso sexual, como já vimos, é caracterizado por:

uma situação em que uma criança ou adolescente é usado para gratificação sexual de um adulto ou adolescente mais velho, baseado em uma relação de poder incluir desde carícias, manipulação na genitália, mama ou ânus, exploração sexual, voyeurismo, pornografia e exibicionismo, até o ato sexual, com ou sem penetração, com ou sem violência física (AMENDOLA, 2009, p. 53).

Ressalte-se que trataremos do assunto estupro de vulnerável, mais à frente, no capítulo referente à Criança como Sujeito de Direito.

Segundo Amendola (2009, p.82), “percorrendo os caminhos da denúncia, é possível determinar uma relação de fatores que interagem no processo da notificação, por vezes interferindo ou interrompendo este percurso”. Os fatores de interferência ou interrupção são:

O despreparo dos profissionais de saúde e educadores;

A divergência de suas práticas;

O uso de diferentes termos para designar o mesmo episódio;

A crença pessoal pelos profissionais de que toda denúncia de abuso sexual é verdadeira;

O conluio da família para negar o abuso ou para fazer acusações infundadas;

O receio dos profissionais pelas obrigações legais e transtornos advindos da notificação de casos de suspeitos de violência;

O excesso de trabalho e burocracia;

O sigilo profissional (AMENDOLA, 2009, p. 82).

Pode-se perceber, claramente, através desses fatores, que pode haver, sim, erros no conjunto da notificação ou da denúncia, vindo eles acarretar prejuízos para o suposto acusado do abuso; pois, mesmo não existindo provas materiais (vestígios) ou testemunhais, haverá o laudo psicológico e o depoimento da criança, tendo ambos valor de prova. Dessa forma, dificilmente, o acusado será beneficiado pelo princípio in dubio pro reo, por se tratar de um caso intrafamiliar.

6. DEPOIMENTO DA CRIANÇA VÍTIMA DE ABUSO SEXUAL INTRAFAMILIAR

O Código de Processo Penal, em seu art. 201, relata que sempre que for possível, será perguntado ao ofendido sobre as circunstâncias do crime e o possível autor e as provas que possa indicar. Ofendido ou vítima, segundo Nucci (2013, p. 470), “é o sujeito passivo ou a vítima do crime, ou seja, a pessoa que teve diretamente o seu interesse ou bem jurídico violado pela prática da infração penal”.

6.1. O DEPOIMENTO DA CRIANÇA NA FALTA DE VESTÍGIOS

O abuso sexual intrafamiliar corresponde a 80% dos casos noticiados e apresenta uma maior dificuldade de constatação e identificação. A falta de vestígios é o principal problema. Segundo Azambuja (2011, p. 97) [...] “somente em uma minoria de casos, o exame físico conduz ao achado definitivo de abuso sexual, o que acaba por dificultar a investigação pelos profissionais da saúde menos capacitados”.

Conforme dispunha o art. 158 do Código de Processo Penal, “quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado”.

Segundo Nucci (2013, p. 386-387), “vestígio é o rastro, a pista ou o indício deixado por algo ou por alguém. O corpo de delito é a materialidade do crime, isto é a prova de sua existência”. Sendo, assim, a prova de materialidade que envolve violência sexual,

[...] sob o prisma médico legal, consiste na realização de prova pericial na vítima, onde o perito irá buscar evidências da prática de conjunção carnal ou de algum ato libidinoso diverso da conjunção carnal, tais como lesões próximas à genitália da vítima, presença de esperma, ruptura do hímen e eventuais lesões corporais que possam sugerir a prática delituosa (BENFICA; SOUZA, apud AZAMBUJA, 2011, p. 163).

Quando a infração deixar vestígios, é necessário o exame de corpo de delito, isto é, a comprovação dos vestígios materiais por ela deixados torna-se indispensável. O exame de corpo de delito pode ser direto (quando a inspeção é feita pelo perito) ou indireto, quando os vestígios desaparecem e ele é suprido por prova testemunhal (TOURINHO FILHO, 2013, p. 580).

Certamente, os crimes sexuais podem ou não deixar vestígios. Se forem constatados vestígios, entende-se ser mais fácil chegar a uma conclusão, entretanto, a prática do ato libidinoso normalmente não deixa vestígios. Sendo assim, que procedimento será adotado na falta de vestígios e de prova testemunhal?

Nos crimes sexuais não há necessidade de exame de corpo de delito (perícia), pois muitos desses delitos não deixam vestígios materiais. Exemplo: um estupro cometido com grave ameaça pode não deixar rastros visíveis da sua ocorrência. Nem por isso deixará de ser punido o autor, desde que, por outras fontes (ex.: prova testemunhal), seja possível comprovar a existência do crime. Na jurisprudência: STJ: “A configuração do crime de estupro prescinde da realização do exame do corpo de delito, sendo suficiente a manifestação inequívoca e segura da vítima, quando, em consonância com os demais elementos probatórios delineados no bojo da ação penal” (HC 8.720-RJ,6.ª T., rel. Min. Vicente Leal, 16.11.1999, v.u., DJ 29.11.1999, p. 126); TJSP: “O Tribunal de Justiça já decidiu ser inadmissível afirmar que o delito definido pelo art. 214 [hoje incorporado ao art. 213] do Código Penal de 1940, possa ser incluído no elenco daqueles que necessariamente deixam vestígios” (Ap.477.773-3/2, Mauá, 1.ª C., rel. Mario Devienne Ferraz, 21.03.2005, v.u., JUBI 108/05). Convém registrar a edição da Lei 12.015/2009, alterando as figuras típicas concernentes aos delitos sexuais. Apesar da introdução de novos tipos penais e da modificação de redação de outros, nenhuma alteração houve no tocante ao exame de corpo de delito: somente se faz o exame quando for viável, embora não seja elemento determinante para a prova do crime (NUCCI, 2013, p.392-393).

O que pode ser constatado é que na falta de prova testemunhal ou evidências físicas (vestígios) para detectar o delito, o depoimento da criança vítima de crime sexual tem valor probatório, principalmente em se tratando de atos libidinosos, que, quase sempre, não deixam vestígios, e são cometidos longe dos olhares de terceiros, logicamente podendo provar por outros meios, o que normalmente é conferido ao profissional da medicina. Dessa forma,

o Conselho Tutelar (ou as Varas de Família / Varas da Infância e Juventude que também recebem a notificação) solicita uma avaliação psicológica da criança (também chamado de Estudo de Revelação), a fim de que sejam elaborados laudos psicológicos atestando para a ocorrência de abuso sexual; portanto, provas documentais que passam a ser encaminhadas ao MP para abertura de processo de investigação (Amendola, 2009, p. 80).

Ressalte-se que as delegacias especializadas ou não, também solicitam a avaliação psicológica.

Segundo Amendola (2009, p. 61), existe “[...] uma série de sintomas e indicadores/sinais de abuso sexual na criança descrita e enumerada na literatura médica – e na literatura psicológica”. São sinais físicos ou médicos:

contusões; dificuldade para caminhar ou sentar; dilatação hímenal; distúrbios na alimentação; doenças sexualmente transmissíveis (DST); dor pélvica ou abdominal aguda; dor na garganta; encoprese; edemas e hematomas; enurese; gravidez em adolescentes; hímen rompido; lesões geniturinárias; presença de esperma na vagina, reto, pele ou roupas; sangramento ou prurido na área genital, anal e/ou genital; secreções vaginais (AMENDOLA, 2009, p. 61-62)

Por outro lado, os indicadores dados pela literatura psicológica dividem-se em comportamentais e de personalidade. São sinais comportamentais:

agressividade; ansiedade e medo; apatia; baixa autoestima; comportamento antissocial; comportamento sexual inapropriado para a idade e nível de desenvolvimento; comprometimento do apego; compulsão; conduta autolesiva; conduta regressiva; dificuldade de concentração e aprendizagem; distúrbio de apetite/ sono; fuga de casa; ideação suicida; imagem corporal distorcida; isolamento social e efetivo; masturbação excessiva; promiscuidade; transtornos de conduta; tristeza ou depressão; uso de drogas ou álcool (AMENDOLA, 2009, p. 61-62).

Os sinais da personalidade são:

altercação súbita de humor; ansiedade e medo; autoacusação; baixa autoestima; confusão de papéis; dificuldade com limites para si; dificuldade de relacionamento interpessoal; distorção da autoimagem; raiva nos relacionamentos; sensação de impotência; sentimento de traição; transtorno de estresse pós-traumático; transtorno de personalidade (AMENDOLA, 2009, p. 61-62).

Pode-se observar que os indicadores físicos são aqueles mais fáceis de constatar a materialidade do fato abusivo, diferente dos indicadores comportamentais e de personalidade, por não existir a materialidade do fato para provar o abuso sexual, podendo “levar o profissional a cometer erros de interpretação” (AMENDOLA, 2009, p. 51).

A elaboração e divulgação de inúmeras listas de indicadores de abuso sexual têm um efeito potencialmente antagônico, portanto, prejudicial àquilo que se propõe. Descontextualizando, o comportamento identificado nessas listas poderia servir à fabricação de identificadores falso positivos, ou seja, o profissional poderia identificar sintomas de abuso sexual em crianças que não foram abusadas, emitindo uma falsa impressão da ocorrência desse tipo de violência (DE YOUNG, apud AMENDOLA, 2009, p. 64)

Embora muitos especialistas reivindiquem que os sintomas não sexuais, tais como distúrbios do sono, terror noturno, enurese noturno, ansiedade e relutância em ir à escola são consistentes com o abuso sexual, estes mesmos sintomas também são comumente encontrados entre muitas crianças de idade pré-escolar que não foram abusadas (CECI; BRUCK, apud AMENDOLA, 2009, p. 64).

Determinar o psicólogo, na falta de testemunha ou de indicadores físicos, o abuso sexual em criança através de sinais de comportamento e de personalidade, onde esta é submetida a relações de divórcio, separação, disputas de guarda, a tendência é acarretar “[...] desconforto mental e físico, abrindo canal para a manifestação de sintomas ligados à depressão, como preocupação, insônia, apatia e retraimento social, que tendem a ser confundidos como consequências de abuso sexual” (AMENDOLA, 2009, p. 66), remetendo, a mãe e o psicólogo a uma má interpretação do fato.

É interessante o método utilizado pela literatura psicológica para discernir o fato abusivo, entretanto a possibilidade de erro na falta de indicadores físicos é evidente, levando alguns autores a criticar a atuação de psicólogos, que,

em resposta à demanda judicial para avaliação de crianças supostamente abusadas, têm apresentado seus dados fundamentados em listas de sintomas, observação de comportamento sexualizado e em protocolos padronizados de entrevistas semiestruturadas como se tais evidências fossem, cientificamente, comprovadas e pudessem, de forma inequívoca, corroborar ou contradizer uma acusação de abuso sexual. Na experiência dos autores, tais recursos tornam-se inúteis nos casos em que crianças, apesar do abuso sexual sofrido, não apresentam alterações aparentes de comportamento; e prejudiciais, nos casos em que o comportamento de crianças não abusadas é descrito como próprio de vítimas de abuso (CECI; HEMBROOKE, apud AMENDOLA, 2009, p. 65).

Percebe-se, claramente, o quanto é difícil diagnosticar, na falta de vestígios ou da testemunha, o abuso sexual intrafamiliar em crianças. Certo é que os métodos utilizados pelo profissional da psicologia, a fim de desvendar a ocorrência de abuso sexual em criança, podem acarretar prejuízos ao acusado, se houver má interpretação, principalmente dos sinais de personalidade e comportamento.

Entretanto, além da ausência de testemunhas, de evidências físicas (vestígios) e do diagnóstico baseado nos sinais psicológicos de comportamento e de personalidade, a acusação pode ser, “muitas vezes, pautada apenas no depoimento da denunciante, corroborado pela palavra da criança, sendo esta última ouvida, não raramente, na presença do responsável” (AMENDOLA, 2009, p. 80).

A esse respeito, alguns autores

afirmam que a intervenção psicológica mais empregada no atendimento às supostas vítimas de abuso sexual é a entrevista psicológica, com vistas à obtenção do depoimento da criança, este último considerado, pelas autoras, a principal forma de comprovação ou confirmação da violência sexual (HABIGZANG; KOLLER, apud AMENDOLA, 2009, p. 83).

Sendo assim, na ausência de testemunha e evidências físicas, deve o profissional da psicologia e o magistrado, relativizar a palavra da criança nos casos intrafamiliares, pois Monteiro Filho (apud AMENDOLA, 2009, p. 80), “reconhece que existe o risco de que pessoas sejam injustamente acusadas de abusar sexualmente de uma criança, em virtude da emissão de um diagnostico médico baseado em ausência de evidências físicas", sendo também esse o nosso entendimento.

6.2. O DEPOIMENTO DA CRIANÇA E A INFLUÊNCIA DO PROFISSIONAL DA PSICOLOGIA

Os crimes sexuais intrafamiliares contra crianças terão, sim, sua validez, se for possível constatar a materialidade do fato delituoso, que é observado, normalmente, através de exames periciais. Contudo, quando não há a materialidade, entra em cena a prova testemunhal; porém, nos crimes sexuais intrafamiliares, normalmente não há testemunhas que possam provar o acontecimento. Nesse caso, quando não for possível o exame de corpo de delito direto ou indireto (perícia), pode o profissional da psicologia emitir um diagnóstico que valerá como prova documental, seja através de uma lista de sintomas, ou observação de comportamento sexualizado, ou ainda, pela própria palavra da criança, sendo este ultimo a mais comum (AMENDOLA, 2009).

Na entrevista psicológica, que tem por base a palavra da criança, deve o profissional da psicologia “criar um ambiente facilitador que permita à criança revelar o abuso sexual a partir da produção discursiva, lúdica e gráfica, sem desenvolver sentimentos de culpa ou vergonha” (AMENDOLA, 2009, p. 87).

O propósito do psicólogo, durante a entrevista, é necessariamente fazer com que a criança relate o abuso supostamente sofrido. [...] As crianças precisam saber que nós conhecemos as razões pelas quais ela pode ser capaz se revelar [...]. Em termos práticos, precisamos enviar, de maneiras variadas e repetidas, a mensagem: eu sei que você sabe que eu sei. (FURNISS, apud AMENDOLA, 2009, p. 87).

Contudo, se o profissional da psicologia não atingir o propósito da entrevista depois da exposição de todos os meios para obtenção da revelação do abuso sexual, há quem sustente que,

mesmo quando a ausência da revelação persiste – seja pelo silêncio imposto pela criança, seja pelo fato de ela negar a ocorrência do abuso – o profissional deve se antecipar e presumir a alegação de abuso sexual como verdadeira, expectativa que se mantém justificada pela resistência, medo ou vergonha da criança em revelar o drama familiar (FURNIS, apud AMENDOLA, 2009, p. 88).

Entretanto,

o ato de insistir para que a criança revele o abuso sexual se justificaria, pois estaria baseado na crença de que as crianças que negam a ocorrência do abuso sexual podem estar mentindo. Contudo, o autor admite que a criança possa mentir ao acusar falsamente um membro da família de abuso sexual (FURNISS, apud AMENDOLA, 2009, p. 88).

Se analisarmos que a criança pode estar sendo sugestionada ou coagida pela mãe para alegar o abuso sexual intrafamiliar, e o profissional da psicologia através dessa alegação, diagnosticar que ocorreu o abuso sexual, tendo esse diagnóstico valor de prova, entende-se que o suposto acusado (pai), se denunciado, poderá ser condenado, tendo simplesmente por base o depoimento da criança influenciado ou mal interpretado pela mãe.

O psicólogo exerce um poder sobre a criança, na expectativa de obrigá-la a revelar o abuso.

Poder este entendido como uma ação essencialmente repressiva, cuja intenção é extrair o saber do outro, a partir da vigilância hierárquica, do olhar que fiscaliza, obriga e produz efeitos; [...] um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior ‘adestrar’; ou, sem dúvida, adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor (FOUCAUT, apud AMENDOLA, 2009,p. 89).

Dessa forma:

A criança está propensa a aceitar, direta ou indiretamente, o seu não-saber, podendo ser conduzida, pelas expectativas, crenças e, principalmente, pelo poder-saber do entrevistador, a acolher um discurso produzido para ser verdade. Assim, conforme a criança se submeta a este poder-saber, ela confessa que sofreu um abuso sexual (AMENDOLA, 2009, p. 89-90).

Pode-se entender que, forçadamente, o profissional da psicologia pode retirar da criança o que ele busca; no caso, o relato do abuso sexual. Entretanto, a criança, como já vimos, pode mentir, e, se ela revelar um falso abuso sexual, existi o risco do profissional da psicologia entender que o abuso ocorreu, considerando que esse era realmente o seu propósito, ou seja, o psicólogo teve influência direta na constatação do abuso sexual, seja pela imposição de seu discurso, ou por confirmar a narrativa da criança. Dentro dessa perspectiva,

[...] trazendo essas discussões para o cenário da separação conjugal, contexto em que muitas alegações de abuso sexual entre pais e filhos eclodem, podemos supor que a criança pode manter-se fiel às alegações da mãe-guardiã, que acusa o ex-companheiro, confirmando ou revelando o abuso (que nunca ocorreu) (AMENDOLA, 2009, p. 92).

Contudo, além de a criança manter-se fiel às alegações da mãe, Gardner (apud AMENDOLA, 2009, p. 94) “[...] explica que, no caso de haver litígio, o genitor-guardião seria capaz de programar os filhos para acreditar em uma história – de violência”.

A criança fantasia por natureza, podendo ser instigada por adultos a fazê-lo, ainda com maior precisão e riqueza de detalhes, sem ter maturidade suficiente para compreender o significado e as consequências da sua atitude. Podem, pois, essas pessoas querer a condenação de um inocente (NUCCI, 2013, p. 473).

As alegações de abuso sexual intrafamiliar, sejam elas fantasiadas, mal interpretadas ou intencionadas, são capazes de acarretar violação de direito, pois nos crimes sexuais, a palavra da vítima tem presunção de veracidade aliada a outros elementos probatórios; o problema é que os elementos poderão existir devido ao despreparo do profissional que está relacionado com a criança, devido a falta de evidências físicas, e por normalmente faltar a testemunha. Sendo assim, dentro destes moldes, é um absurdo valorizar o depoimento da criança, pois é

o especialista quem transforma essa palavra em um discurso educativo, médico, psicológico ou judiciário. A palavra da criança, transformada e modulada pela interpretação do adulto que lhe dará assistência, não raro, tende a expressar as impressões pessoais desse adulto que, muitas vezes, não hesita em condenar o autor do suposto abuso (THOUVENIN, apud AMENDOLA, 2009, p. 95).

Neste instante, iremos reapresentar uma entrevista ilustrada por Loury (apud AMENDOLA, 2009, p. 95) “realizada entre dois investigadores (I1; I2), especialistas do Departamento de Serviços da Infância e Família (Department of Youth Family Services – DYFS) e uma criança (C), supostamente vítima de abuso sexual”. O procedimento abaixo “não só desqualifica a palavra da criança como transforma o processo de revelação em um jogo de adivinha – no qual a criança é forçada e induzida a confessar o que está sendo solicitado pelo entrevistador” (LOWRY, apud AMENDOLA, 2009, p. 96).

I1: Ela colocou o garfo em seu ânus? Sim ou não?

C: Eu não sei, eu esqueci... eu te odeio.

I1: Ah, vamos lá, Peter, se você me responder só isso, você poderá ir.

C: Eu te odeio!

I1: Oh, não, você não me odeia.

C: Sim, eu te odeio.

I1: Você me ama, eu sei. Foi só isso que ela fez com você? O que ela fez com seu ânus?

I2: O que ela fez com seu ânus? Então você pode ir.

C: Eu esqueci.

I1: Conta pra mim o que a Kelly fez no seu ânus e então você poderá ir. Se você me disser o que ela fez com o seu ânus, vou deixar você ir.

C: Não.

I1: Por favor.

C: Tá bom, tá bom.

I2: Conta pra mim agora... o que Kelly fez no seu ânus?

C: Vou tentar lembrar.

I2: Ela colocou alguma coisa em seu ânus?

C: um garfo?

I2: Doeu muito? Sangrou?

C: não. (LOWRY, apud AMENDOLA, 2009, p. 96).

Pode-se perceber claramente que o profissional da psicologia é capaz de induzir a criança a dizer o que ele quer ouvir. Schacter (apud AMENDOLA, 2009, p. 96) “afirma que os entrevistadores tendem a elogiar e a dar prêmios quando as crianças fornecem-lhes as informações desejadas e manifestam desapontamento e reprovação quando elas não lhes respondem de acordo com as expectativas”. Isso confirma, que o profissional é despreparado e contrário os preceitos éticos.

6.2.1. Capacitação profissional

Existem várias técnicas para constatação do abuso sexual em crianças. As listas de sintomas, comportamento sexualizado, entrevistas e ainda discurso para produzir verdade. Contudo, apesar de não ser uma técnica, existe, ainda, o profissional que pode sensibilizar e deixar se envolver pelo fato, demonstrando seu despreparo profissional (AMENDOLA, 2009). Outros termos, como “divergência de suas práticas, o uso de diferentes termos para designar o mesmo episódio e a crença pelos profissionais de que toda denúncia de abuso sexual é verdadeira” (AMENDOLA, 2009, p. 82) remete-nos uma ideia de existir a possibilidade de o profissional influenciar, ou equivocar-se nos casos de abuso sexual intrafamiliar, em crianças.

Argumenta Azambuja (2011, p. 152), que “os profissionais, apesar dos esforços empreendidos nas últimas décadas não são capacitados para tratar das questões da violência, havendo grande ausência sobre este tema nos currículos superiores".

A pesquisa desenvolvida por Márcia Ferreira Amendola (2009) constatou que a maioria dos psicólogos não possui capacitação ou treinamento específico ao ingressar em instituições que avaliam casos de suspeita de abuso sexual, e nenhum dos psicólogos entrevistado receberam qualquer orientação de pessoa qualificada na área.

Segundo Amendola (2009, p. 162), nas entrevistas, “[...] os psicólogos procuram valorizar a palavra da criança, mesmo quando esta se recusa a falar”. E o intrigante é que a maioria dos psicólogos entrevistados “relataram guardar expectativas quanto à repercussão do laudo psicológico no âmbito judiciário, representada na resolubilidade da investigação do caso” (AMENDOLA, 2009, p. 166).

Ante o exposto, qual o sentido de valorizar a palavra da criança? É evidente que o psicólogo, pode agir na ignorância e querer prejudicar o suspeito, como pode falhar, devido seu despreparo perante a situação. A primeira situação, poderá acarretar prejuízo quando ele vê o laudo como um instrumento para solucionar o caso, levando-nos a entender que a maioria dos psicólogos fogem do objetivo principal, pois, como vimos em alguns momentos, seu foco é criminalizar o autor do fato, que, no caso, seria o pai. A segunda situação, também é prejudicial, deduzida no despreparo do profissional, pois o seu laudo tem valor de prova, colaborando com o depoimento da criança. Isso reafirma ainda mais, o que já foi dito, sobre o depoimento da criança em casos de abuso sexual intrafamiliar, ou seja, o depoimento, em qualquer âmbito deve ser relativizado, e não valorado, como é previsto pela doutrina e tribunais.

6.3. POSICIONAMENTO DA DOUTRINA E DA JURISPRUDÊNCIA, REFERENTE AO DEPOIMENTO DA CRIANÇA

A palavra da vítima tem grande importância em casos de crimes sexuais, uma vez que, normalmente, não existe testemunha, devido à clandestinidade da prática do ato e, por muitos casos, não deixarem vestígios para a caracterização do eventual delito, ou seja, do ato libidinoso. Dessa forma, fica evidente pela doutrina e pela jurisprudência, que a palavra da vítima tem grande valor probatório, ainda mais quando acompanhado de laudo médico, que é requisitado, na maioria das vezes em que envolver crime sexual praticado contra criança, apesar de discordarmos desse valor concedido, a esse depoimento.

Vejamos o que alguns renomados doutrinadores dizem a respeito do depoimento da vítima, em relação aos crimes sexuais, lembrando que equiparamos abuso sexual a estupro, devido à interpretação da nova lei.

Em certos casos, porém, é relevantissima a palavra da vítima do crime. Assim, naqueles delitos clandestinos qui clam comittit solent (crimes contra a liberdade sexual), que se cometem longe dos olhares de testemunhas, a palavra da vítima é de valor extraordinário, e, como bem frisou o Tribunal de Justiça de São Paulo, nos crimes sexuais, clandestinos pela própria natureza, a palavra da vítima, desde que firme, segura, coerente, verossímil e harmônica com os demais elementos de convicção carreados para o processo, constitui a melhor e mais precisa prova do delito, devendo prevalecer sobre a do acusado, empenhado em desmerecê-la para lograr absolvição (RT, 620/269). No mesmo sentido: RT, 718/389, 719/478 (TOURINHO FILHO, 2013, p. 606-607).

Nos casos de atos libidinosos contra a criança, há que se analisar essa questão da prevalência da palavra da criança sobre a do acusado, no que tange a laudo emitido por psicólogo após ouvir essa criança ou fazer observações de sinais de comportamento e de personalidade. É de imaginar que, podendo haver influência tanto do profissional quanto da mãe da criança, o que torna a acusação falsa, o prejuízo do acusado será, com certeza, imensurável.

Quando o crime que vitimou o ofendido é cometido às escondidas, onde não houve pessoa que o presenciou. É o que normalmente dá-se com os crimes contra os costumes (estupro, roubo). Nessa hipótese ocorre como derradeira à versão exclusiva da vítima, muitas vezes contrária com a negativa do acusado. [...] Não pode o magistrado e nem é concebido pela administração da Justiça, que, havendo somente as declarações da vítima a respeito da ocorrência delituosa e a negativa de seu indigitado autor, o réu seja absolvido por falta de prova (in dubio pro reo). Se assim fosse, não deveria ser proposta a ação penal, uma vez que haveria falta de justa causa para sua procedimentação.

Nesses delitos clandestinos, deve o magistrado, ao elaborar sua prestação jurisdicional, observar, de forma acurada, as palavras do ofendido, verificando se são elas coerentes, uniformes, enfim, destituídas de qualquer contradição ou hesitação e se são ditas de modo sincero e sério, notadamente nos crimes contra os costumes, quando então gozará de presunção de veracidade. Constatando o Juiz que sua versão merece fé e credibilidade, deverá dar provimento à pretensão punitiva. Caso contrário, deverá afastá-la, acolhendo a pretensão de liberdade (MOSSIM, 2005, p. 428).

A problemática, é a alegação da prática do ato libidinoso no bojo familiar, como conferir credibilidade à palavra da criança, sendo que ela poderá estar sendo influenciada pela mãe, ou pelo psicólogo. De uma afirmativa presume-se advir uma negativa; o detalhe é que nos crimes contra a dignidade sexual impreterivelmente, a “Justiça Criminal continua a buscar, na palavra da vítima, obtida através de inquirição, elementos para embasar uma decisão condenatória que relaciona a inquirição da criança com o resultado da sentença” (AZAMBUJA, 2011, p. 161); isso quer dizer que o magistrado não faz as verificações necessárias para que o direito de ambas as partes sejam garantidos.

Nos crimes de estupro e atentado violento ao pudor, delitos geralmente cometidos na clandestinidade, a palavra da vítima tem significativo valor probante. Incidência da súmula 83/STJ” (EDcl no AgRg no AREsp 151680-TO, 5.ª T.,rel. Marco Aurélio Bellizze, 23.10.2012, v.u.) A palavra da vítima, em crimes de conotação sexual, constitui relevante elemento probatório, mormente quando se mostra coerente com o restante da prova produzida e, em razão da pouca idade da ofendida, está respaldada por avaliações e laudos psicológicos, médicos psiquiátricos. Precedentes do STJ HC 63.658-RS, 5.ª T ., rel. Napoleão Nunes Maia Filho, 07.08.2007, v. u (NUCCI, 2013, P. 975-976).

Como vimos, se acompanhada de outros elementos, a palavra da vítima, nos crimes sexuais, tem valor probatório. Entretanto, já mencionamos que normalmente os crimes sexuais praticados contra crianças exigem um diagnóstico psicológico, por falta de evidências físicas e por normalmente não haver testemunhas, porém esses laudos podem mostrar-se diferentes à realidade, ou seja, aplicando o profissional a técnica sobre a criança, poderá dar continuidade a uma alegação de abuso sexual intencionada, fantasiada, ou mal interpretada pela mãe ou por ele. Nesses casos, a palavra da criança deve ser relativa, não devendo ter valor extraordinário, nem presunção de veracidade, muito menos, constituir relevante valor probatório, pois é percebível, dentro do que foi exposto, ocorrer procedimentos equivocados, podendo ensejar uma acusação ou prisão ilegal.

A doutrina majoritária é incisiva em conferir valor probatório ao depoimento da criança nos crimes sexuais, se existentes outros elementos probatórios. O posicionamento do STF e STJ a esse respeito é pacífico, devido a clandestinidade da prática do ato, e por vezes não existir evidências físicas que poderiam ser determinantes. Acompanhe a decisão do Ministro do STF referente ao valor atribuído ao depoimento da criança.

Decisão: Trata-se de agravo interposto contra decisão de inadmissibilidade de recurso extraordinário que impugna acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Na espécie, o recorrente foi denunciado pela prática do delito previsto no art. 214 c/c 224, ambos do Código Penal, por ter, em tese, praticado atos libidinosos diversos da conjunção carnal com uma criança de 7 anos (eDOC 1, p. 2). Sobreveio a condenação, na qual o réu recebeu a pena de 6 (seis) anos de reclusão, em regime inicial fechado (eDOC 2, p. 5-9). Irresignada, a defesa interpôs apelação criminal, a qual restou desprovida, nos seguintes termos da transcrita abaixo: “APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA A LIBERDADE SEXUAL. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. PRELIMINARES DE FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO, OFENSA AO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL E NULIDADE DA SENTENÇA FACE O INTERROGATÓRIO TER SE DADO NO INÍCIO, RECHAÇADAS. PALAVRA DA VÍTIMA EM CONFORMIDADE COM OS DEMAIS ELEMENTOS DE PROVA. ESPECIAL RELEVÂNCIA. ORIENTAÇÃO PACIFICADA. PRECEDENTES DO STJ E DESSA CORTE. AUTORIA E MATERIALIDADE DO DELITO COMPROVADAS. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.” (eDOC 2, p. 110). [...] 4. Questão de ordem acolhida para reconhecer a repercussão geral, reafirmar a jurisprudência do Tribunal, negar provimento ao recurso e autorizar a adoção dos procedimentos relacionados à repercussão geral” (AI-QO-RG 791.292, de minha relatoria, Pleno, DJe 13.8.2010). No que tange aos aspectos probatórios e do pleito da desclassificação, ainda da leitura dos autos, verifica-se que o Tribunal de origem, ao decidir pela manutenção da condenação do recorrente, considerou presentes os elementos de autoria e materialidade delitivas. Confira-se trecho do acórdão recorrido: “É importante ressaltar, que no caso dos autos a materialidade do delito por vezes é frágil demais, uma vez que raramente deixa vestígios. Neste sentido, é cediço o entendimento de que a prova testemunhal, inclusive a palavra da vítima possui especial valor probatório na comprovação do cometimento do delito em questão, desde que coerente e firme. (...) No caso presente, não há exame de corpo de delito, devendo ser apurado os demais elementos probatórios colhidos, principalmente a prova testemunhal. Veja-se que, tanto na fase policial, quanto em juízo, a vítima relata que, no dia dos fatos, sofreu o alegado constrangimento consubstanciado em um beijo na boca e a passada de mão em suas partes íntimas, conforme transcrevo: ‘QUE na data de 25p.p, estava junto com seus pais no centro comunitário da Linha São Judas Tadeu, interior da cidade de Barra Bonita, comunidade onde residem; QUE naquele dia tinha um almoço comunitário e futebol; QUE por volta das 18h00min, a depoente, sua irmã Eduarda e outra amiguinha de nome ‘Fabi’ brincavam dentro do campo de futebol; QUE como já estava escurecendo resolveram ir para dentro do salão onde se encontravam os seus pais; QUE Eduarda e Fabi foram na frente e a depoente mais atrás; QUE neste momento um homem chamou a depoente pedindo que esta o ajudasse a levar as cadeiras para dentro do clube; QUE a depoente então foi até onde se encontrava o tal homem, a fim de ajudá-lo; QUE no local não tinha nenhuma cadeira; QUE ato contínuo, o tal homem se aproximou e a pegou no colo; QUE deu-lhe um beijo na boca e começou a passar a mão sobre a sua vagina; [...]"’(fl. 07) E em juízo relatou da seguinte forma: ‘[...] que estavam voltando do campo, quando o acusado a chamou para levar as cadeiras; que ele pegou a depoente no colo, tentou beijar na boca e colocou a mão por baixo da calça [...]’ (fl. 42). A mãe da infante relata como esta agiu após o ocorrido: ‘[...] que passado um tempo, lá pelas 18:30, Jenifer procurou pela depoente e ela estava bastante nervosa, agitada e disse para a depoente que queria ir para casa; que Jenifer falava isso insistentemente [...];que no caminho Jenifer passou a dizer que não iria dormir sozinha e que estava com medo e iria dormir com a depoente [...]’. Como se não bastasse, observa-se que o depoimento de Beatriz Resener, profissional designada para acompanhar a vítima após o ocorrido, corrobora para as afirmações da mesma, ao passo que as tornam mais consistentes, conforme se verifica: ‘[...] que ela apresentava um quadro de pânico devido a uma situação de estresse, de susto bem grande que deve ter tido; que apresentava medo intenso; que também apresentava transtorno de sono e ansiedade; [...]’ Portando, nesta seara, encontram-se fortes elementos que indiquem que o crime praticado pelo réu tenha se consumado. Acerca da autoria do delito, insiste o apelante em dizer que somente foi utilizada a palavra da vítima como cunho decisivo para a sua condenação. Primeiramente, conforme já respaldado acima, a palavra da vítima sustentada pelos demais elementos probatórios colhidos possui relevante valor para ensejar a sanção ao agente nos casos de crimes sexuais, como é o caso dos autos. Neste raciocínio, vislumbro que a autoria da prática do delito de atentado violento ao pudor praticado pelo acusado contra a vítima J.C.R. está comprovada, senão vejamos (...) Muito embora alegue o acusado que a vítima foi controversa em seus depoimentos, uma vez que a denúncia relata que ele a teria levado para trás da igreja para a prática dos atos, sendo que em seu depoimento em juízo, a menor nada diz a respeito, bem como o fato de que F.C., amiga de J.C.R., ter dito que não era o réu quem tinha solicitado ajuda para levar as cadeiras, verifico que a vítima afirma categoricamente que fora o acusado quem cometeu os atos libidinosos. (…) Diante destas conclusões, a atribuição de grande valor probatório na palavra da vítima foi a medida tomada da mais acertada pela magistrada, visto que acompanha os demais elementos de prova produzidos, conforme orientações jurisprudenciais unânimes neste sentido” (eDOC 2, p. 117-122). (Processo: ARE 830274 SC; Relator (a): Min. GILMAR MENDES; Julgamento: 21/08/2014; Publicação: DJe-164 DIVULG 25/08/2014, PUBLIC 26/08/2014; Parte (s): JP JOÃO CARLOS DALMAGRO JUNIOR E OUTRO (A/S); MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA; PROCURADOR GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SANTA CATARINA; EVERTON GIOVANI DA ROSA; stf. jusbrasil.com.br/jurisprudencia/25251285/recurso-extraordinario-comagravo-are-830274-sc-stf).

Fazendo observação a decisão, percebe-se que, para declarar a sentença condenatória, o meio utilizado como prova, foi simplesmente o depoimento da criança, colaborado pelo entendimento de somente um profissional da psicologia, contrariando a afirmação, de que, não era o réu, quem pediu ajuda. Onde está o princípio in dubio pro reo? De fato, a “Justiça Criminal continua a buscar, na palavra da vítima, obtida através de inquirição, elementos para embasar uma decisão condenatória que relaciona a inquirição da criança com o resultado da sentença” (AZAMBUJA, 2011, p. 161). Esperamos que estes posicionamentos mudem, não da para conferir total credibilidade ao depoimento de uma criança na falta de testemunhas, ou de evidências físicas, mesmo acompanhado de laudo, devendo sua fala ser relativa, nos casos intrafamiliares que faltarem esses meios de prova.

6.4. MÉTODOS DE DEPOIMENTO

A partir do momento em que é notificado o abuso sexual intrafamiliar em uma das portas de entrada, a criança, vítima do abuso sexual, pode ser ouvida por até nove vezes sobre o mesmo fato (AMENDOLA, 2009).

Essa circulação, que envia a criança para uma e outras tantas entrevistas de revelação do abuso, para reformulação das acusações, ocasiona uma repetição incessante das histórias de um suposto abuso, que é repassada, recontada e revivida pelas crianças abusadas – o que se determinou por chamar de revitimização – e criada, contada, sugerida, recriada pela mãe guardiã e por toda a equipe de profissionais, até ser fixada no imaginário infantil, podendo-se, assim, revitimizar as crianças que foram abusadas e violentar as que não foram (AMENDOLA, 2009, p. 81).

A premissa acima descrita refere-se ao chamado método tradicional de inquirição para a elucidação do fato. Contudo, observando o anseio de garantir a não revitimização à criança vítima de abuso sexual, surge, em 2003, o projeto Depoimento sem Dano (DSD), outro método de inquirição que é utilizado em alguns Estados como, por exemplo, o Rio Grande do Sul (AMENDOLA, 2009).

A sistemática permite a realização de audiência, simultaneamente, em duas salas interligadas por equipamentos de som e imagem. Em recinto reservado, a vítima presta depoimento a uma Psicóloga ou Assistente Social. Na sala de audiências ficam Juiz, Promotor, Advogado e partes. O magistrado faz as inquirições por intermédio do profissional que se encontra com a vítima que, dessa forma, não se expõe a outras pessoas. Simultaneamente, é efetivada a gravação de som e imagem em CD, que é anexado aos autos do processo judicial TJRS, 2007 (AMENDOLA, 2009, p. 101-102).

Relata Amendola (2009, p. 101) que o “[...] Depoimento sem Dano, prevê a possibilidade de produção antecipada de prova no processo penal, antes do ajuizamento da ação, para evitar que a criança seja revitimizada”. Neste sentido, o art. 156, I do CPP diz que é facultado, ao juiz de ofício, "ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas, consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida”. O fato é que, no método de depoimento tradicional, a criança é inquirida por até nove vezes, sendo que, no Depoimento sem Dano, a criança, através do psicólogo, é inquirida pelo magistrado em sala separada, sendo esse depoimento gravado e utilizado quando necessário, configurando, assim, a diferença entre os dois métodos. Há revitimização na primeira, e não há revitimização da criança na segunda. Entretanto, não há como acreditar que a

proteção à criança e ao adolescente se fará reduzindo todas as falas e práticas a uma racionalidade única e totalizante. Um depoimento não é “sem dano” apenas porque a inquirição do juiz foi feita por um psicólogo e gravada em sala separada, obtendo-se uma suposta verdade objetiva dos fatos (ARANTES, apud AMENDOLA, 2009, p. 103).

“[...] A audiência jurídica não é o mesmo que entrevista ou atendimento psicológico, haja vista que o psicólogo não deve se orientar pelas necessidades do processo, pretendendo esclarecer a verdade real dos fatos” (ARANTES, apud AMENDOLA, 2009, p. 103).

O método de Depoimento sem Dano repercute entre os profissionais da psicologia, visto que o psicólogo não executa seu serviço, mas é determinado “a ter uma função de ‘duplo', de ‘instrumento’, ou boca humanizada do juiz” (ARANTES, apud AMENDOLA, 2009, p. 103).

Fácil é evidenciar, que, nos casos de abuso sexual infantil, a expectativa é a de condenação do suposto abusador. Digamos, também, que este método equivale a mais um item que mostra o despreparo profissional, incluindo também o juiz, pois a palavra da criança não é só analisada pelo psicólogo, segundo Azambuja (2011, p. 161), a “Justiça Criminal continua a buscar, na palavra da vítima, obtida através de inquirição, elementos para embasar uma decisão condenatória que relaciona a inquirição da criança com o resultado da sentença”.

Ante o exposto, observe-se a quantidade percentual de condenação ou absolvição do acusado referente ao Depoimento Tradicional e Depoimento sem Dano, tendo como um total 74 processos (AZAMBUJA, 2011).

“Em 81,08% (60), a inquirição foi pelo método tradicional; em 12,16% (9), pelo método depoimento sem dano; e, em 6,7% (5) a vítima foi inquirida duas vezes: na forma tradicional e através do método depoimento sem dano” (AZAMBUJA, 2011, p. 168).

Dos 79,27% (65) casos em que ocorreu a inquirição pelo método tradicional, onde se inclui aqueles que contaram com dupla inquirição, em 69,23% (45) houve a condenação do abusador e, em 30,77% (20), a absolvição. Na totalidade dos casos em que a vítima foi inquirida através do método depoimento sem dano (14 casos), em 100% o resultado da sentença foi condenatório (AZAMBUJA, 2011, p. 168).

Feita a análise comparativa entre os métodos de depoimentos; qual deles seria o mais eficiente? O método de depoimento tradicional, em que há acentuado percentual de absolvição, entretanto tem como característica a revitimização da criança, ou, o método depoimento sem dano, que, supostamente, não gera a revitimização da criança, mas tem 100% de condenação?

Deve-se entender que o método de depoimento tradicional é o que demonstra mais eficiência, por conter uma margem de condenação e outra de absolvição, enquanto que, no método depoimento sem dano, não houve absolvição, restando a seguinte pergunta: será que dos 14 casos em que o depoimento da criança foi feito pelo método depoimento sem dano, todos os condenados eram realmente abusadores?

No método depoimento sem dano, o objetivo principal é a não revitimização da criança, sendo garantido pela Constituição Federal de 1988, pela Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança de 1989 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.068/90), através dos Princípios do Interesse Maior da Criança, e da Prioridade Absoluta à infância (AZAMBUJA, 2011). Entretanto, o que percebemos é que, na busca de garantir direitos inerentes à criança, às vezes poderá haver a restrição de direitos de uma outra pessoa inocente, garantidos também pela CF de 1988. Sendo assim, não é de difícil percepção que ambos os métodos de depoimentos apresentados correspondem à violação de direitos. O método de depoimento tradicional gera revitimização da criança, sendo ingenuidade não mencionar a possível condenação de um inocente, principalmente nos casos referentes ao Direito de Família, onde, na maioria das vezes, não são encontrados vestígios do abuso sexual, e não há testemunha; enquanto que no método depoimento sem dano, assim como Arantes, entende-se existir a ocorrência da revitimização da criança, sendo espantosos os 100% de condenação na utilização desse método, lembrando que somente alguns Estados o adotam.

É inegável a busca constante em garantir direitos, entretanto não se deve esquecer de que já existe direito garantido; sendo assim, o meio mais eficaz para garantir direitos não só à vítima de abuso sexual infantil, mas também ao suposto abusador, seria necessária a análise do caso por, no mínimo, três profissionais (psicólogos) capacitados e éticos. Esse seria o meio de garantir uma maior eficiência para a constatação ou não do abuso, tendo uma garantia maior de direitos inerentes às partes, levando em conta a falta de supervisão e a influência direta do psicólogo nos casos.

O procedimento aconteceria a partir da notificação. Feita a notificação, a criança seria remetida aos profissionais, sendo que somente um profissional fará o procedimento, ficando os demais em salas separadas; e, ao final dos procedimentos, cumulariam seus posicionamentos. Consequentemente, o acusado do abuso também seria avaliado, sendo que, nos casos referentes ao Direito de Família, seria necessária a avaliação também da genitora. Depois disso os profissionais remeteriam um parecer final, acompanhado da gravação de áudio e vídeo (AMENDOLA, 2009).

Contudo, como não é esse o procedimento adotado, deve-se continuar entendendo que o método de depoimento tradicional é o mais eficaz, por garantir um percentual mínimo de absolvição. Isso não quer dizer que devamos compactuar com o abuso sexual, ou que todas as alegações sejam falsas, ou não se de a devida importância a revitimização da criança; a preocupação é que alguém pode ser condenado por influência, ou mau entendimento de todos os profissionais envolvidos em casos de abuso sexual infantil, que é de difícil constatação, onde os profissionais não são capacitados, onde existam tendências em condenar o acusado, valendo-se do depoimento da vítima.

7. A CRIANÇA COMO SUJEITO DE DIREITO

Literalmente, as crianças não eram sujeitos de direitos, como pôde ser constatado no capítulo II. O Brasil, por ter sido colônia de Portugal, abarcava os mesmos conceitos de direitos referentes à criança como era o costume da época colonial. A criança era vista como objeto de direito, e essa ideologia perdurou até os anos de 1980, apesar de haver legislações próprias como o 1º Código de Menores de 1927 e o 2º Código de Menores de 1979, também conhecido como Doutrina da Situação Irregular (AZAMBUJA, 2011).

O certo é que a vulnerabilidade da criança a fez receber um tratamento diferenciado pela lei brasileira, fazendo observações as Convenções e os Tratados Internacionais. Promulgada em 1988, a nova Constituição Federal, precipuamente no seu capítulo XII, elenca os direitos das crianças e as obrigações da família e do Estado para considerá-la como sujeita de direito e não como objeto de direito (AZAMBUJA, 2011).

Estabelece a nova Constituição Federal que é:

dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (art. 227, CF).

A Constituição Federal, em seu art. 227, § 4º, diz que “a lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e adolescente”. Observa-se que a Constituição Federal de 1988 “criou um sistema especial de proteção dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, nitidamente inspirado na concepção de proteção integral” (AZAMBUJA, 2011, p. 45).

Nesse sentido, menciona Machado (apud AZAMBUJA, 2011, p. 45) que a Doutrina de Proteção Integral “instala uma nova ordem na matéria, afinada com a contemporânea concepção de radical proteção aos direitos humanos”. Sabe-se que, mesmo com um novo paradigma trazido pela Constituição Federal de 1988, em relação aos direitos fundamentais, não só em relação às crianças, mas abarcando todos os grupos de pessoas, os Tratados Internacionais foram garantidos pelo próprio constituinte originário. Dessa forma, o art. 5º, § 2º da CF, de 1988, relata que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos Tratados Internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

Tendo por base a nova Constituição Federal, a Declaração dos Direitos Humanos e a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança de 1989, foi necessária uma revisão na legislação infraconstitucional, devido aos princípios da Dignidade da Pessoa Humana, Prioridade Absoluta à Infância e o Princípio do Interesse Maior da Criança. Dessa forma, como o Segundo Código de Menores (Doutrina da Situação Irregular), já não mais atendia aos preceitos determinados pela nova Constituição, foi revogado pela Lei 8.069 de 13/07/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), que foi o mais alto garantidor de direitos referentes a essa classe (AZAMBUJA, 2011). O Estatuto da Criança e do Adolescente:

introduziu profundas mudanças na forma de elaboração das políticas públicas voltadas à infância, com a criação de Conselho de Direitos e Conselhos Tutelares, que dão ênfase à integração das áreas de saúde, educação, habitação, trabalho, lazer e profissionalização. Entre as áreas que merecem atenção especial do legislador, está a criação de serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial às vítimas de negligencia, maus tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão. art. 87, III, ECA (AZAMBUJA, 2011, p. 49).

Outra mudança que também ocorreu com a entrada da Lei 8.068/90 foi a criação de outras leis que buscaram ampliar e reforçar a proteção e a garantia das crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. Entre as leis, a de maior importância é a Lei 12.015, de 07/08/2009 que substituiu a expressão Dos Crimes Contra o Costume para Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual (AZAMBUJA, 2011). Sendo assim, na busca de resultado para melhor atender às necessidades das crianças e dos adolescentes, sendo determinantes os princípios da Dignidade da Pessoa Humana, Prioridade Absoluta à Infância e o Princípio do Interesse Maior da Criança, a Lei 12.015/09 passou a considerar estupro o ato libidinoso, que era expresso pelo então revogado art. 214 (atentado violento ao pudor), e implantou ao art. 217-A (estupro de vulnerável) ambos do Código Penal Brasileiro (NUCCI, 2013).

Com a nova redação do crime de estupro, os atos libidinosos antes determinados como atentado violento ao pudor passaram a ser considerados estupro devido à integração desses crimes. Trazendo para o nosso tema de estudo, que é a análise crítica do depoimento infantil em casos de abuso sexual intrafamiliar, podemos perceber o iminente perigo a que o pai está exposto nos casos em que houver disputas pela guarda da criança ou separações conjugais.

Como vimos, a criança pode ser sugestionada e atender aos anseios da mãe, pode ser induzida ao erro, ou ser mal interpretada tanto pelo profissional da medicina como pela mãe, podendo esses fatos levá-la a fantasiar algum ato sexualizado, restando o seu depoimento para provar a ocorrência do fato, corroborado por laudo psicológico. O fato é que a Legislação, os Tratados e até mesmo o Constituinte Originário se dispuseram numa cronologia que prioriza o direito da criança, e essa prioridade, em casos de abuso sexual intrafamiliar, corrobora muitas vezes, para uma acusação de abuso sexual intencional, podendo o acusado ser condenado ou responder por fatos que não cometeu, ou ainda, ser estigmatizado devido à denúncia oferecida pelo Ministério Público, que, muitas vezes, é oferecida sem os elementos necessários para provar o fato (AMENDOLA, 2009).

A Lei 12.015/2009 inovou, e o legislador redigiu um artigo que se refere diretamente às vítimas de estupro menores de 14 anos, chamados vulneráveis. Para isso foi, necessário revogar o art. 224, do CP que tratava da presunção de violência quando a vítima fosse menor de 14 anos, alienada ou débil mental sabendo o agente, ou não podia por qualquer outra causa, oferecer resistência (NUCCI, 2013). Revogada a presunção de violência, passa então a vigorar o estupro de vulnerável, sendo determinado com a seguinte redação:

Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos. Pena - reclusão, de 8 a 15 anos. § 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência (art. 217-A, CP).

Depois da visualização do caput do art. 217-A, há de se destacar que, apesar de não ser caracterizado como um tipo penal, o abuso sexual equivale claramente ao crime de estupro de vulnerável, por considerar que o abuso sexual é

uma situação em que uma criança ou adolescente é usado para gratificação sexual de um adulto ou adolescente mais velho, baseado em uma relação de poder incluir desde carícias, manipulação na genitália, mama ou ânus, exploração sexual, voyeurismo, pornografia e exibicionismo, até o ato sexual com ou sem penetração, com ou sem violência física (AMENDOLA, 2009, p. 53).

Observa-se que estão presentes os elementos caracterizadores do estupro de vulnerável, inclusive alguns tipos de atos libidinosos. Nucci (2013, p. 969), considera ato libidinoso “o ato voluptuoso, lascivo, que tem por finalidade satisfazer o prazer sexual, tais como o sexo oral ou anal, o toque em partes íntimas, a masturbação, o beijo lascivo, a introdução dos dedos na vagina ou de outros objetos”.

Outro ponto a ser mencionado em relação à Lei 12.015/09 é a eliminação do termo vulnerabilidade relativa, ou seja, aquela que comportaria prova em contrário, restando somente à vulnerabilidade absoluta, sendo caracterizada por não comportar prova em contrário, o que quer dizer que independente do vulnerável aceitar, querer ou corresponder, o indivíduo que praticou o ato responderá pelo art. 217-A do CP (NUCCI, 2013).

A relação sexual pode ter sido ‘consentida’ pelo ofendido, que, após, não reclama e pode até ter apreciado. Entretanto, por regras de experiência, captadas pelo legislador, é vedada a prática sexual com tais pessoas, visto que a maioria não tem o discernimento suficiente, nem condições de autorizar o ato, logo, a vulnerabilidade de suas situações indica a presunção de ter sido violenta a prática do sexo (NUCCI, 2013, p. 869).

Observa-se que a nossa preocupação foi constantemente relacionada ao depoimento infantil em casos de abuso sexual intrafamiliar. A premissa básica detalhou-se na observação dos atos libidinosos que passaram a ser considerados estupro pela nova redação, e que, normalmente, são as fontes iniciadoras de acusação por parte da responsável (mãe) que mantém algum litígio com o pai, restando, por muitas vezes válido, o depoimento da criança, como espécie mantedora de direitos a ela inerentes.

Outra questão importante é o aumento da pena prevista para os crimes contra a dignidade sexual, não mencionando as qualificadoras já existentes. O art. 226, II do CP diz que “a pena é aumentada de metade se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou, por qualquer outro título, tem autoridade sobre ela”.

Em observação ao enunciado do presente artigo, concordamos que estamos diante de um abuso sexual intrafamiliar, ou seja, o tipo penal foi praticado por familiares, afins ou responsáveis. Veja.

Abuso sexual intrafamiliar é aquela praticada por agressor que faz parte do grupo familiar da vítima, considerando-se não apenas a família consanguínea, como também as famílias adotivas e socioafetivas, onde se incluem os companheiros da mãe e do pai, ou, ainda, pessoas da confiança da criança (AZAMBUJA, 2011, p. 90).

Dessa forma, sendo cometida a prática do ato sexual por alguém dos relacionados no art. 226, II do CP, obrigatoriamente a pena deverá ser aumentada pela metade.

Esse aumento de pena tem relação direta com o abuso sexual intrafamiliar e revela o quanto é perigoso uma alegação de abuso sexual intrafamiliar, que terá por fundamento probatório o depoimento da vítima (criança). Diz-se perigoso, pois, a “Justiça Criminal continua a buscar, na palavra da vítima, obtida através de inquirição, elementos para embasar uma decisão condenatória que relaciona a inquirição da criança com o resultado da sentença” (AZAMBUJA, 2011, p.161).

Obviamente que o novo tipo penal estupro de vulnerável, criado pela Lei 12.015/09 foi também contemplado pela Lei de Crimes Hediondos. Isso significa dizer que será cumprido inicialmente em regime fechado; é insuscetível de fiança, anistia, graça e indulto, sendo que a progressão de regime acontecerá depois de cumpridos 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for réu primário, e de 3/5 (três quintos) se for reincidente (8.072/90, art. 2º, I, II, §. 1º, 2º).

Ante o exposto, a reflexão nos remete ao cuidado que se deverá ter nos casos referentes ao artigo 217-A do CP, principalmente naqueles relacionados aos atos libidinosos no seio familiar, pois uma acusação intencionalmente falsa, má interpretada ou fantasiada, poderá possibilitar, através do depoimento da criança acompanhado de laudo psicológico, a condenação de um inocente, que, diretamente, concorrerá ao crime hediondo, aumento da metade da pena, não menos importante à estigmatização, mesmo sendo inocentado.

Convenhamos que alguns atos libidinosos não são de todo repulsivos e que a cominação da pena, de certo modo, seria desproporcional em comparação ao crime; essa metodologia revela a garantia dos direitos à criança e a adolescentes estabelecidas pelos tratados, convenções, Constituição Federal, Lei 8.068/90 e Lei 12.015/09.

Obviamente que direitos devem ser garantidos; entretanto, deve ser observada a proporcionalidade, pois um crime de estupro de vulnerável, tendo como propulsor um desses atos libidinosos (exemplos: toque em partes íntimas, a masturbação, o beijo lascivo) e que foi praticado por algum dos componentes do art. 226, II do CP, a pena mínima poderá chegar a 12 anos, sem falar nas desvantagens apregoadas na Lei 8.070/90. Dentro dessa premissa:

Vários magistrados expressam a dificuldade de adequar determinadas condutas em estupro, quando poderiam configurar uma mera importunação ofensiva ao pudor. Por outro lado, há situações visivelmente intermediárias, superiores, em gravidade à contravenção penal (art. 61, LCP), mas inferiores ao crime de estupro (art. 213, CP). É preciso criar uma figura intermediária, particularmente voltada aos atos libidinosos de menor gravidade, merecedores de punição, mas sem a contundência das penas previstas para o estupro. Ilustrando, voltemo-nos ao que relatamos em nossos crimes contra a dignidade sexual: Caso real que me foi relatado por juiz, cujos dados específicos devemos omitir, pois se encontra, ainda, em fase de julgamento. Um professor de música orienta suas alunas com 9,10 e 11 anos a irem às aulas sem calcinha e de saia. Enquanto tocam violino ou outro instrumento, são conduzidas a cruzar as pernas, de modo que o professor tenha acesso visível aos órgãos sexuais das infantes. Enquanto elas tocam, ele se masturba secretamente, embaixo da mesa, longe das vistas das meninas. Descoberta a situação, foi processado por estupro de vulnerável. Em tese, a tipificação está correta, pois envolve a prática de ato libidinoso, com menores de 14 anos. Entretanto, as meninas nem mesmo perceberam os atos praticados pelo professor. Seria viável condená-lo a uma pena de oito anos de reclusão, como delito hediondo? De outra parte, seria justo desclassificar para simples contravenção? Situações similares demandam tipificação intermediária, entre o crime e a contravenção. Embora possa o ato concreto ser considerado atentado ao pudor, hoje forma de estupro, padece da gravidade necessária para a faixa de punição do art. 217-A. Outro exemplo, citado no tópico relativo à discussão acerca de vulnerabilidade absoluta e relativa, no contexto do art. 217-A infra, demonstra a ocorrência de um beijo entre dois rapazes (um de 18; outro com 13 anos), classificado pela polícia judiciária como estupro, lavrando-se o auto de prisão em flagrante. Ora, mesmo que se fosse um beijo extraído à força (no caso concreto, fora consentido), não se justificaria prender um rapaz de 18 anos como se ele fosse autêntico estuprador. É preciso, em nosso entendimento, a formação de figura típica incriminadora, configurando um estupro privilegiado, para condutas mais brandas, merecedoras de penas igualmente mais amenas (NUCCI, 2013, p. 858).

Ao longo do trabalho, por todo instante foi demonstrada a possibilidade de ocorrer erros derivados de uma acusação de estupro, seja intencionada, fantasiada, mal interpretada, ou por falta de provas materiais e testemunhais, tendo, na maioria das vezes, como meio probatório, o depoimento da criança corroborado pelo laudo psicológico. Demonstramos, também, que seria necessário um conjunto de especialistas para determinar, através da palavra da criança, a ocorrência do abuso sexual, evitando que, o laudo seja a solução do caso, ou que ocorra um possível erro de interpretação devido ao despreparo do profissional. Agora, se o posicionamento dos especialistas indicarem culpa do acusado, com concordância do magistrado, depois de ouvida a criança, e o indivíduo ser condenado por estupro de vulnerável (intrafamiliar) em detrimento de alguns atos libidinosos (toque nas partes íntimas, masturbação não realizada pelo sujeito passivo e beijo lascivo), certamente se verificará a desproporcionalidade entre a pena e o crime cometido, fazendo-se necessário um tipo penal equivalente.

Não é objetivo observar a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do depoimento infantil, até porque, pelo Principio da Isonomia material, o seu aspecto positivo permite que a lei, "validamente, crie discriminações e privilégios", enquanto o aspecto negativo, analisa "diferenciações que não devem ser consideradas válidas" (KLIPPEL, 2009, p. 63). Contudo, dentro da perspectiva desse princípio, faz-se necessário um tipo penal proporcional a alguns tipos de atos libidinosos, e o depoimento da criança como prova nos casos de abuso sexual intrafamiliar deve ser relativo, dentro das análises detalhadas, referentes as acusações intencionadas, fantasiadas, má interpretadas, ou por faltarem provas materiais e testemunhais, ensejando uma evolução construtiva do direito.

8. CONCLUSÃO

A prova no processo penal é elemento determinante para apuração de um delito e, consequentemente, possibilita a reparação de um direito violado através da pena. Entretanto, existem crimes, principalmente os referentes à dignidade sexual, mais precisamente os atos libidinosos que, quase sempre, não deixam vestígios e, por serem cometidos na clandestinidade, impossibilitam que um terceiro tenha presenciado o fato, restando somente o depoimento da vítima como meio probatório.

No Direito de Família, são cada vez mais frequentes os divórcios ou separações, tendo como consequência disputas ou revisões judiciais pela guarda das crianças; constata-se ademais, que algumas mães acusam falsamente de abuso sexual os ex-cônjuges ou ex-parceiros, motivando obter o direito de guarda da criança, sem falar no poder de sugestionabilidade que ela detém, podendo induzi-la a revelar a ocorrência da prática de ato abusivo, ocasionando uma acusação de abuso sexual intrafamiliar.

Não obstante, se não todas, mas na maioria das alegações de abuso sexual infantil, a criança é remetida ao profissional da medicina, sendo mais comum ao psicólogo, para que seja formulado um laudo técnico que indique, através do emprego de técnicas padronizadas ou da palavra criança, a ocorrência do abuso sexual, servindo esse como meio de prova. Contudo, já se percebeu que muitos desses profissionais não detêm a capacitação necessária para diagnosticar tal ato, concorrendo na possibilidade, assim como a mãe da criança, de fazer uma má interpretação do fato, sem falar na possibilidade de agir na emoção devido às circunstâncias, podendo também ser influente. Tudo isso é suficiente para o Ministério Público oferecer a denúncia, pois o interesse de todos os envolvidos é de condenar o acusado mesmo sendo insuficientes as provas.

Na exigibilidade de garantir a criança como sujeita de direito, foi implantado, em alguns Estados, o método depoimento sem dano, que visa a não revitimização da criança, enquanto a técnica de depoimento tradicional provocaria a revitimização. Por outro lado, no método tradicional do depoimento, existe um percentual razoável de absolvição, enquanto que no método depoimento sem dano essa margem percentual não existe. Ante o exposto, fica evidente a possibilidade de ocorrer, principalmente no bojo familiar, uma acusação indevida, ocasionando, no mínimo, a estigmatização do acusado e se o método de depoimento utilizado for o depoimento sem dano ocorrerá o grande risco de o acusado ser condenado, pois a acusação sempre vai estar baseada num ato libidinoso, pelo fato de não terem sido encontradas evidências físicas, ou testemunhas.

A Lei 12.015/09 provocou várias alterações no Código Penal Brasileiro e uma delas foi considerar o ato libidinoso como estupro, e, como vimos, existe a probabilidade de uma acusação de prática sexual ocasionar uma condenação, tendo por base, o depoimento da criança. Entretanto, se realmente for constatada a prática do ato libidinoso, consequentemente ocorrerá a condenação do acusado. Ressalte-se que existem alguns tipos de atos libidinosos (ex: toque nas partes íntimas, masturbação não realizada pela vítima, beijo lascivo) que, comparados com a cominação da pena, se mostra desproporcional ao ato praticado, e se cometida por ascendente ou responsável, entre outros, será a pena acrescida de metade, e por ser um crime hediondo a aplicação da lei é diferenciada. Dessa forma, imagine-se o resultado que poderá resultar de uma alegação de abuso sexual intrafamiliar, determinado por um ato libidinoso, tendo sido utilizado, como meio de prova, o depoimento da criança, acompanhado do laudo emitido pelo psicólogo influente, ou despreparado.

Os fatores ponderados referentes a análise crítica do depoimento infantil em casos de abuso sexual intrafamiliar, certificam a necessidade de um conjunto de profissionais competentes, que, evitariam as acusações intencionadas, mal interpretadas ou fantasiadas; devendo o juiz relativizar o depoimento da criança como prova, nos casos intrafamiliares, e não tê-lo como fonte incriminadora, impossibilitando, desta forma, uma falsa acusação por falta de evidências físicas, ou por falta de prova testemunhal. Também faz-se necessário tipificar certos atos libidinosos, devido à desproporção da cominação da pena referente ao ato praticado, principalmente nos casos intrafamiliares. Essa seria a forma de o legislador garantir direitos sem violar direitos.

9. REFERÊNCIAS

AMENDOLA, Márcia Ferreira. Crianças no Labirinto das Acusações. 1. ed. Curitiba: Editora Juruá, 2009.

AZANBUJA, Maria Regina Fay. Inquirição da Criança Vítima de Violência Sexual Proteção ou Violação de Direitos. 1. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2011.

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 8. ed. São Paulo: Editora Saraiva,2002.

GUERRA, Paulo; ALBERTO, Isabel. O Abuso Sexual de Menores: Uma Conversa sobre Justiça Entre o Direito e a Psicologia. 2. ed. São Paulo: Editora Almedina, 2006.

KLIPPEL, Rodrigo. Teoria Geral do Processo Civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Ímpetos, 2009.

MOSSIM, Heráclito Antônio. Comentários ao Código de Processo Penal. 1. ed. São Paulo: Editora Manole, 2005.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 12. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 13. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

NUCCI, Guilherme de Souza. Provas no Processo Penal. 1. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.

RANGEL, Patrícia Calmon. Abuso Sexual Intrafamiliar Recorrente. 2. ed. Curitiba: Editora Juruá, 2011.

STF - RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO : ARE 830274 SC. Disponível em: . Acesso em 03 out. 2014.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 16. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2013.

WOLKMER, Antônio Carlos. Fundamentos da História do Direito. 5. ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2010.


Publicado por: Angelo da Silva Dias

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